As deliberações acabavam de se iniciar no domicílio de Theodore Levinson, homem de meia idade e intenções duvidosas.
Eram cinco os reunidos. Todos tinham propriedades na comarca de Anglers inn, se bem que nenhum se tivesse ocupado até então em atendê-las diretamente. Residiam ali, em Phoenix, ocupados em diversos negócios e disfrutando uma vida bastante menos dura que a dos ganadeiros em toda a extensão da palavra.
Por vezes faziam visitas aos respetivos ranchos e davam instruções, voltando depressa às suas ocupações na cidade. Mas isso, que tão cómodo lhes havia sido em tempos passados, estava-se-lhes tornando impossível de sustentar.
Os assuntos do gado estavam sofrendo uma grande crise, sendo o culpado disso um tal Buck Jerrigan, instalado na comarca há questão de uns dois anos, o máximo, o qual sustentava uma concorrência ruinosa, tanto pelos seus conhecimentos na matéria como pelas suas maneiras de se desenvolver.
De início, Theodore Levinson e os seus amigos fizeram pouco caso dos toques de alerta dos seus capatazes; mas pouco a pouco, em virtude de a situação ir tomando caracter alarmante, dirigiram os seus olhares para aqueles extremos, começando a padecer dos primeiros sintomas de inquietação,
Os seus ranchos tinham muita importância; grande parte das suas receitas provinha dos mesmos; não podiam permitir que se afundassem. Adotavam medida após medida para contrabalançar os efeitos do amplo labor desenvolvido por Jerrigan. Tarefa inútil. O odioso intruso ria--se deles, tornando-lhes cada vez mais difícil o normal desenvolvimento do que sempre deslizara sem tropeços dignos de menção.
Alguns dos agora reunidos haviam realizado junto do perigoso indivíduo várias tentativas encaminhadas a chegar a um acordo. Era absurdo que, podendo viver em paz, sem se prejudicarem, existisse aquela pugna que só servia para os prejudicar; mas. Buck Jerrigan não tomara em consideração tais argumentos, respondendo que não lhe importava ganhar pouco desde que o fizesse a seu gosto.
Georgina entrou apressada e sufocada na habitação, interrompendo as discussões.
— Boas tardes, amigos.
Ergueram-se todos. Imediatamente se destacou do grupo, para a receber, Charles Jory, noivo da recém-chegada. Era o protótipo do homem altivo e valentão.
— Georgina! Tu aqui?
— Que tem de particular? Não está convocada uma reunião dos rancheiros de Anglers inn?
— Esperávamos o teu irmão,
— Meu irmão já nada tem a ver com os meus interesses&
As feições de Charles Jory refletiram alegria.
— Magnífico! — exclamou. Ela olhou-o duramente.
— Magnífico, porquê? Trata-se de um simples acordo entre mim e ele que a ninguém deve interessar no mínimo pormenor — dirigiu-se a todos
—: Bem... Se lhes parece, continuem. Lamento ter-me atrasado uns minutos, mas tive um certo percalço na rua.
— Um percalço? — perguntou Jory, denotando sumo interesse.
— Nada de importância. Um estúpido peão saiu não sei donde, pouco faltando para se meter entre as patas dos meus cavalos. O imbecil apoderou-se das rédeas e, depois de se Salvar milagrosamente, atirou-mas à cara. Tive de parar na farmácia para que me pusessem álcool.
— Quem é esse homem? — rugiu Charles —. Gostaria de lhe fazer pagar cara essa barbaridade.
— Não te preocupes. Nunca o vi nem creio voltar a vê-lo. Vamos ao que interessa.
Sentou-se. Os demais imitaram-na.
— Dizia a estes amigos — explicou Theodore — que havendo-me inteirado, casualmente, de que Buck Jerrigan se encontra em Phoenix, enviei--lhe uma carta pedindo-lhe que comparecesse a esta entrevista. A verdade é que não confiava no êxito da tentativa, mas ontem tive a grata surpresa da sua resposta afirmativa. Virá aqui hoje. Por isso os convoquei.
— Mas... creem deveras que a situação é assim tão desesperada?
— Se não desesperada, muito grave, pelo menos.
Ernest Ryan, um velho e pacífico rancheiro, de modos suaves, disse paternalmente à rapariga:
— Creio que escolheu um bom momento para deitar sobre si a direção dos seus assuntos. Nada tenho a objetar contra Denny, mas... os problemas difíceis resolvem-se melhor pelos próprios interessados. De todos os modos, não se preocupe demasiadamente. Procuraremos seguir adiante... embora a tarefa seja dura. Buck Jerrigan é um sujeito incompreensível. Dir-se-ia que goza com o mal dos seus semelhantes. As suas atividades, segundo as minhas notícias, não se reduzem só a Anglers inn. Em diversos lugares do Estado levou diversas pessoas à ruína. Possui uma enorme riqueza; conta com colaboradores da sua absoluta confiança, os quais, seguindo as suas diretrizes, afastam quantos o enfrentam.
— Eu opino — trovejou Gus Huberd, outro dos afetados, que se destacava pela sua iracúndia — que tudo o que não seja empregarmo-nos a fundo é perder o tempo. Esse Jerrigan é um mau bicho e os maus bichos esmagam-se. Uma bala bem dirigida resolveria o problema.
Georgina envolveu-o num olhar de reprovação.
— Acalme-se, Gus! — aconselhou Hilary Hogson, o quinto dos congregados —. Os atos violentos costumam trazer más consequências. Estamos em Phoenix e não em plena pradaria, onde as questões se resolvem a tiro.
Gus Huberd riu-se:
— Você vai dizer que os revólveres não soam na cidade!
— Soam, sim, mas, geralmente, as complicações são maiores.
— Ora! — protestou o belicoso Huberd — Todo o trabalho que me dessem fosse pôr um ponto final de chumbo neste pesadelo!
Georgina bateu na mesa:
— Senhor Huberd: somos pessoas decentes, educadas, corretas. Como lhe pode ocorrer falar de determinações próprias de bandoleiros indesejáveis?
Charles apaziguou-a:
— Não te aborreças, Georgina. O amigo Gus não pensou, certamente, em qualquer ação dessas; mas sim em fazer ver a esse Jerrigan que não se pode jogar com os nossos interesses, e que, se continua com essa tática, nos encontrará em todos os terrenos. Eu próprio me sinto capaz de empunhar um «Colt», sempre que ele se encontre na minha frente e nas mesmas condições.
Bateram à porta e um empregado de Theodore Lavinson, depois de obter licença, disse:
— O senhor Jerrigan espera.
Emudeceram durante vários segundos.
— Que entre — autorizou Theodore.
Georgina abriu muito os olhos e teve de levar a mão à boca para conter a exclamação prestes a escapar-se-lhe. Aquele, o homem a quem pouco antes estivera a ponto de atropelar e que a tratara com tanta desconsideração, era Buck Jerrigan! Ele avançou, não demonstrando conhecer a jovem, e saudou as pessoas que conhecia:
— Theodore Levinson, Hilary Hogson e Ernest Ryan.
O dono da casa iniciou as apresentações dos outros:
— A senhora Georgina Mallard, o senhor Jory, o senhor Huberd...
Buck fez uma inclinação de cabeça perante a jovem e apertou as mãos de Gus e Charles.
— Creio que não é a primeira vez que nos vimos, senhora — disse, colocando-se na frente da rapariga: — Não. se recorda de me ter encontrado antes?
A pergunta tinha tanta ironia desdenhosa, que o orgulho de Georgina se reacendeu:
—É possível — respondeu, displicente.
— Não está certa... apesar de apenas ter decorrido uma escassa meia hora?... É natural: quando se vai de carro, dificilmente se concede atenção aos aborrecidos peões que intercetam o caminho. E se qualquer desses peões é um mulato, menos ainda, embora se tenha estado a ponto de o esmagar sob as patas dos animais. Porque você acertou, minha senhora: Sou mulato. Filho de um branco e de uma negra. E creia de que me sinto verdadeiramente orgulhoso de que minha mãe fosse negra.
Ficaram em suspenso as testemunhas da cena. O panorama acabava de lhes ser oferecido em tintas fortes.
— Não me interessam as suas preferências —replicou ela, altiva.
Charles reagiu antes dos demais e perguntou a sua noiva:
— Pelos vistos, foi este homem quem te atirou as rédeas à cara.
— Tive essa honra — apressou-se Buck a responder.
Georgina interpôs-se, rápida:
—O senhor Jerrigan não pretendeu, sem dúvida, fazer-me dano. Deve-se à casualidade o facto das rédeas me terem dado na cara.
— De todos os modos...
— Por favor, Charles; não se fala mais no assunto.
Buck sorriu de modo enigmático.
— Não se falará mais no assunto — respondeu Jory — se este senhor te pedir desculpa e tu a aceitares.
— Tem graça! — exclamou Jerrigan, mostrando, ao acentuar o seu frio sorriso, os dentes brancos, apertados, que rebrilhavam ao estabelecer contraste com a cor morena do seu rosto —. Quase atropelam uma pessoa, deitando-lhe em cima dois cavalos fogosos e em seguida pretendem acto de contrição. Não penso fazê-lo, menina Mallard; não penso fazê-lo, senhor Jory.
Voltou-lhes as costas. Charles deu um passo para ele. 'Georgina agarrou-o, ordenando-lhe, em voz baixa:
— Quieto!
Levinson, Ryan e Hogson apressaram-se a fazer todos os possíveis para aliviarem a tensão do momento. Maldita casualidade! Tanta gente habitava Phoenix e logo haviam de chocar Georgina e o homem a quem lhes interessava persuadir!
— Bem, senhores — atalhou-os Jerrigan, diver-tido — as minhas ocupações são muitas e o tempo escasso. Digam-me o objetivo com que me convidaram para esta reunião.
— Pode supô-lo — respondeu Theodore — Procuramos resolver o problema comum que a todos nos afeta.
— A senhora Mallard também está interessada no assunto?
A interessada encarou-o.
— Ignora-o? Não sabe que o rancho «Cruzes de Ouro» é meu?
Ele voltou-se ligeiramente:
— Queria que mo confirmasse. Na realidade, dá trabalho saber quem são os proprietários daquelas herdades. Nunca se veem por ali e eu não costumo aborrecer-me com investigações.
Tomou a palavra Ernest Ryan. Era o mais autorizado não só pelos anos — roçava os cinquenta e cinco — como pela sua capacidade e temperança. Expressou-se em termos conciliadores, pondo em evidência as razões que, em seu entender, existiam para que cessasse aquela concorrência prejudicial, e esforçando-se por declarar os benefícios para todos dum acordo, uma espécie de união que lhes permitiria obter bons lucros coletivos.
Buck deixou-o falar a. seu gosto, sem o interromper uma vez sequer, e voltou-se depois para Levinson, o qual, reforçando as frases do seu companheiro, deixou transparecer algumas ameaças para o caso em que da reunião nada resultasse de satisfatório.
Falou seguidamente Gus Huberd, que, ultrapassando-se muito a Theodore, gritou destemperadamente falando de luta de morte, de guerra sem quartel. Hilary Hogson utilizou a sua vez, dulcificando os conceitos do seu antecessor e insistindo nas mesmas argumentações de Ernest Ryan.
Buck quando o último orador havia concluído, voltou-se ligeiramente para Georgina e Charles:
— Têm algo a acrescentar ao exposto?
A rapariga só dificilmente continha a sua ira. Parecia-lhe humilhante que aqueles homens dessem tal cúmulo de explicações a um mulato, por muito que fosse o seu poderio, e insofrível que este os observava com aquele ar de superioridade.
— Está tudo dito — murmurou.
Jory nem sequer respondeu. Jerrigan abandonou o seu lugar e, acendendo um, cigarro, engoliu o fumo como se quisesse conservá-lo para sempre. Com uma mão negligentemente metida num bolso, foi apoiar-se a uma janela próxima. Olhou para as pessoas reunidas e falou pausadamente:
— Vim a esta entrevista com a esperança de ouvir algo interessante, novo, construtivo; algo que manifestasse que haviam estudado o problema geral e que se dispunham a resolvê-lo como requer; isto é, sentindo que o nosso país necessita do entusiasmo de todos os seus filhos, seja qual for o trabalho a que se dediquem. Vejo que não é assim. Tudo o que lhes ocorre é propor-me que cesse a minha tarefa e que me torne vosso aliado para vender caro. Por que razão, em vez de aqui estarem tranquilamente deixando o trabalho a cargo dos capatazes, não tiveram a precaução de enfrentarem as circunstâncias?
— A que chama você «enfrentar»? — perguntou Levinson.
— Procurar, como eu, a maneira de embaratecer os preços sem se prejudicar.
— Isso é uma brincadeira? — inquiriu Gus, agressivo.
— Nada de brincadeiras. A segurança de que não me podem fazer sombra, porque quando quiserem despertar já será tarde, movo-me a ministrar-lhes umas pequenas lições gratuitas. Que fazem os senhores quando o gado cai exausto devido às secas? Lamentarem-se e deixarem-no morrer. Naturalmente, como isso significa uma perda considerável, veem-se obrigados a tê-la em conta e a sobrecarregarem os preços. Como procuram que as reses engordem? Recorrendo aos métodos primitivos, e desesperando-se quando os pastos escasseiam. Para que aborrecerem-se estudando a maneira de resolver estes e outros problemas?
Ouviram-no inquietos e com o máximo de atenção. Ainda sabendo que o jovem os acusava comentando factos que, ao fim e ao cabo, a ele nada lhe interessavam, não se atreviam a replicar-lhe. Buck acrescentou dando outra longa fumaça:
— Continuam velando pela pureza das raças vacuns de origem inglesa: «Augus», «Hereford», «Shorthorn»... Nada de misturas... Horror aos mestiços! Pois bem: nesta questão que nos ocupa, as misturas são a melhor defesa do ganadeiro. Ouviram falar da raça chamada «Brahaman»? Talvez não. Pouco lhes deve preocupar o que não seja ganhar sem esforço! A pouca curiosidade que tivessem sentido lhes teria facilitado ver muitos exemplares em qualquer dos meus ranchos. Procede da índia. É um animal de estrutura férrea, grande papada, cornos abertos e orelhas pendentes. O «brahaman» é insensível às mais fortes e opostas temperaturas: suporta secas prolongadas, reproduz-se em tipos híbridos de grande peso; é imune às enfermidades correntes e desenvolve-se com assombrosa rapidez. O cruzamento bem administrado de touros «Brahaman» com vacas «Augus» produz novilhos que ao serem desmamados pesam já mais de duzentos e trinta quilos, enquanto os puros, os «Augus», apenas roçam os duzentos e os outros, os puros «Hereford» não chegam a esta última cifra. Que lhes parece? Como lhes disse antes, trata-se de uma pequena lição grátis. Estudem e trabalhem se querem saber mais, embora me pareça que de pouco lhes serviria. Isto e muitas outras coisas que omito, porque não se trata aqui de uma conferência, permitem-me vender mais e melhor que todos vocês juntos.
— E levar-nos à ruína! — bramou Gus Huberd.
— Exatamente — admitiu Jerrigan com a maior naturalidade —. Levá-los à ruína. Creio que não tardarei muito a consegui-lo.
Houve um momento de surpresa. A desfaçatez com que o mulato expunha o seu propósito deixou-os boquiabertos. Antes que se repusessem, ele continuou:
— Apesar de tudo, ao pedirem-me ontem que viesse a esta reunião, predispus-me favoravelmente. Não tenho nenhum ódio pessoal a nenhum dos presentes. As minhas atividades são também necessárias noutros pontos e pensei deixá-los tranquilos uma temporada. Sinto dizer-lhes que mudei de parecer — olhou diretamente para Georgina, como se os demais tivessem deixado de existir —. Continuarei em Anglers inn, atuando conforme me interessar, sem relações nem convénios com ninguém.
— Isso é a guerra! — exclamou Theodore.
— Naturalmente — disse Jerrigan — é a guerra.
Charles ergueu-se, gritando:
— Basta. Não compreendo como sofremos tudo quanto ouvimos da boca deste salva vidas e fazendas!
— Aconselho-o — insinuou Buck — a medir as suas palavras. Pode ser que se arrependa...
— Nunca me arrependo do que faço ou digo! Você é um insolente; um mulato — recalcou — desprezí...
Não terminou o insulto: o braço de Jerrigan estendeu-se como impelido por uma mola e o seu punho foi embater contra o queixo do ofensor, o qual, vendo miríades, de estrelas, caiu sem sentidos.
Elevou-se enorme clamor. Buck, como se Jory o pudesse ouvir, disse, entre dentes:
— O único ser desprezível que aqui está és tu, branco vaidoso. Não quero suportar a tua presença.
Ergueu-o sem o menor esforço, e antes que os demais o pudessem impedir, atirou-o pela janela que, afortunadamente para aquele, encontrava--se a pouca altura da rua. Gus e Theodore, saindo do espanto, levaram as mãos aos revólveres, mas abstiveram-se de os tirar dos coldres: a mão de Buck fechava-se já sobre um «Colt» de considerável tamanho.
— Serenidade, senhores — disse — não me obriguem a prejudicá-los mais que a conta.
— Saia depressa daqui! -- gritou Georgina, cujas feições se encontravam alteradas —. Maldita a hora em que os meus amigos tiveram a ideia de falarem consigo!
— Reconheço que foi uma má lembrança —respondeu Buck —. Depois disto não creio que pensem insistir.
Sem perder nenhum de vista, saiu a porta. Gus Hubert, após ligeira vacilação, seguiu-o. Hilary Hogson e Ernest Ryan procuraram impedi-lo:
— Não faça loucuras! Espere!
— Deixe-me sair!
Aos empurrões conseguiu chegar à porta.
— O assunto não foi bem encaminhado —lamentou-se Theodore.
Georgina que, dominada pela fúria, respirou com dificuldade, encarou todos os outros rancheiros:
— Charles teve razão! Buck Jerrigan não passa de um miserável mulato! Porque descemos a conceder-lhe tal superioridade?
Ernest replicou um pouco acremente:
— Parece-me, Georgina, que deveria refrear um pouco a sua soberba. Você é a pessoa menos indicada para nos repreender. Por sua culpa, bem claro o vimos na atitude de Jerrigan, perdemos a ocasião de pôr a salvo os nossos interesses.
A rapariga retrocedeu, como se lhe tivessem batido. Nos rostos de Levinson e Hogson podia também ler-se uma censura.
— Talvez não se tenha perdido tudo — disse, sarcástica —. Procurem-no, roguem-lhe, submetam-se, deem-lhe o flanco. Eu defender-me-ei até ao último minuto! Possivelmente, se procederem assim, voltará o seu ódio sobre a minha pessoa, deixando-os tranquilos e felizes.
Theodore interveio:
— Não somos capazes de o fazer... nem adiantávamos nada. As coisas chegaram hoje a um extremo que não admite solução pacífica. Lutaremos juntos sem que nada nos detenha.
Gus Huberd reapareceu, cabisbaixo. Todos o olharam.
— Não está só, como pensava — resmungou, respondendo a uma pergunta que lhe dirigiram —. Uma espécie de gigantesco orangotango aguardava-o à porta.
— Belo! — comentou Theodore Usa guarda-costas! Não é tão valente, então, como quer dar a entender.
— Acho absurdo que a paixão nos cegue —protestou Ryan —. Não é valente? Esteve aqui, só, na nossa frente, desafiando-nos, deitou Jory abaixo com maior facilidade... E ainda chamam cobarde a quem assim se comporta? O facto de que se faça acompanhar por algum amigo na prevenção de alguma traição não denota cobardia, mas sim prudência.
Irritou-se Huberd:
— Você defende-o com muito calor!
— Ponho as coisas no seu lugar, simplesmente. Só os insensatos cerram os olhos ante os méritos do inimigo. Disse-o antes e repito-o agora: Buck Jerrigan é perigoso, muito perigoso.
Gus renunciando à discussão com o velho rancheiro, dirigiu-se à rapariga:
— O seu noivo está voltando a si. Ela saiu, pressurosa. O rápido desenvolvimento dos acontecimentos, o interesse destes, a sua própria indignação e, também, o mau efeito que lhe produziu ver Charles ser batido ao primeiro soco de Jerrigan, haviam-lhe contido os impulsos de ocorrer imediatamente para comprovar os efeitos da queda. Efetivamente, o infeliz Jory, recobrava a noção das coisas, entre um numeroso grupo de gente. Georgina chegou até ele, observando com desgosto que Denny o agarrava e lhe prestava auxílio.
— Olá, irmãzinha...
— Que fazes aqui?
— Uma obra de caridade. Passava casualmente quando este bólido saiu pela janela e julguei-me na obrigação de o socorrer.
Mentia. Estivera vagueando pelos arredores desde o princípio, desejoso de averiguar algo que lhe pudesse ser útil. Acrescentou ante o mutismo da jovem:
— Não farias nada de mais agradecendo-me. É o teu noivo... embora agora não o pareça. Digo-o pela pouca pressa que tiveste em saber o que lhe sucedia.
— Não necessito que ninguém me dê lições —replicou colérica, por seu irmão lhe falar em tom tão mordaz, diante de todos aqueles curiosos. Inclinou-se sobre Jory, — Como te encontras?
O interrogado pestanejou, dizendo: Não sei...
— Tem um «galo» bastante respeitável —disse Denny —. Vá lá que a janela é baixinha.
— Cala-te e ajuda-me a levá-lo para o carro.
— Não achas que me devias pedir com outra voz?
Georgina julgou que ia rebentar. Tentou erguer Charles, mas sem o conseguir.
— Deixa-me, irmãzinha, deixa-me. Apesar de tudo, sou um bom rapaz.
Levantou Jory, o qual fazia esforços para recuperar as forças.
— Apoia-te no meu braço — disse ela.
Tropeçando como um embriagado, apesar da ajuda que lhe prestavam, Charles chegou ao veículo. Denny acomodou-o.
— Acompanho-os, irmãzinha bonita?
Não é necessário que te incomodes.
Denny encolheu os ombros. O carro partiu, com as rédeas manejadas por Georgina. Atrás ficavam o sorriso irónico de Denny e os comentários jocosos dos curiosos.
Eram cinco os reunidos. Todos tinham propriedades na comarca de Anglers inn, se bem que nenhum se tivesse ocupado até então em atendê-las diretamente. Residiam ali, em Phoenix, ocupados em diversos negócios e disfrutando uma vida bastante menos dura que a dos ganadeiros em toda a extensão da palavra.
Por vezes faziam visitas aos respetivos ranchos e davam instruções, voltando depressa às suas ocupações na cidade. Mas isso, que tão cómodo lhes havia sido em tempos passados, estava-se-lhes tornando impossível de sustentar.
Os assuntos do gado estavam sofrendo uma grande crise, sendo o culpado disso um tal Buck Jerrigan, instalado na comarca há questão de uns dois anos, o máximo, o qual sustentava uma concorrência ruinosa, tanto pelos seus conhecimentos na matéria como pelas suas maneiras de se desenvolver.
De início, Theodore Levinson e os seus amigos fizeram pouco caso dos toques de alerta dos seus capatazes; mas pouco a pouco, em virtude de a situação ir tomando caracter alarmante, dirigiram os seus olhares para aqueles extremos, começando a padecer dos primeiros sintomas de inquietação,
Os seus ranchos tinham muita importância; grande parte das suas receitas provinha dos mesmos; não podiam permitir que se afundassem. Adotavam medida após medida para contrabalançar os efeitos do amplo labor desenvolvido por Jerrigan. Tarefa inútil. O odioso intruso ria--se deles, tornando-lhes cada vez mais difícil o normal desenvolvimento do que sempre deslizara sem tropeços dignos de menção.
Alguns dos agora reunidos haviam realizado junto do perigoso indivíduo várias tentativas encaminhadas a chegar a um acordo. Era absurdo que, podendo viver em paz, sem se prejudicarem, existisse aquela pugna que só servia para os prejudicar; mas. Buck Jerrigan não tomara em consideração tais argumentos, respondendo que não lhe importava ganhar pouco desde que o fizesse a seu gosto.
Georgina entrou apressada e sufocada na habitação, interrompendo as discussões.
— Boas tardes, amigos.
Ergueram-se todos. Imediatamente se destacou do grupo, para a receber, Charles Jory, noivo da recém-chegada. Era o protótipo do homem altivo e valentão.
— Georgina! Tu aqui?
— Que tem de particular? Não está convocada uma reunião dos rancheiros de Anglers inn?
— Esperávamos o teu irmão,
— Meu irmão já nada tem a ver com os meus interesses&
As feições de Charles Jory refletiram alegria.
— Magnífico! — exclamou. Ela olhou-o duramente.
— Magnífico, porquê? Trata-se de um simples acordo entre mim e ele que a ninguém deve interessar no mínimo pormenor — dirigiu-se a todos
—: Bem... Se lhes parece, continuem. Lamento ter-me atrasado uns minutos, mas tive um certo percalço na rua.
— Um percalço? — perguntou Jory, denotando sumo interesse.
— Nada de importância. Um estúpido peão saiu não sei donde, pouco faltando para se meter entre as patas dos meus cavalos. O imbecil apoderou-se das rédeas e, depois de se Salvar milagrosamente, atirou-mas à cara. Tive de parar na farmácia para que me pusessem álcool.
— Quem é esse homem? — rugiu Charles —. Gostaria de lhe fazer pagar cara essa barbaridade.
— Não te preocupes. Nunca o vi nem creio voltar a vê-lo. Vamos ao que interessa.
Sentou-se. Os demais imitaram-na.
— Dizia a estes amigos — explicou Theodore — que havendo-me inteirado, casualmente, de que Buck Jerrigan se encontra em Phoenix, enviei--lhe uma carta pedindo-lhe que comparecesse a esta entrevista. A verdade é que não confiava no êxito da tentativa, mas ontem tive a grata surpresa da sua resposta afirmativa. Virá aqui hoje. Por isso os convoquei.
— Mas... creem deveras que a situação é assim tão desesperada?
— Se não desesperada, muito grave, pelo menos.
Ernest Ryan, um velho e pacífico rancheiro, de modos suaves, disse paternalmente à rapariga:
— Creio que escolheu um bom momento para deitar sobre si a direção dos seus assuntos. Nada tenho a objetar contra Denny, mas... os problemas difíceis resolvem-se melhor pelos próprios interessados. De todos os modos, não se preocupe demasiadamente. Procuraremos seguir adiante... embora a tarefa seja dura. Buck Jerrigan é um sujeito incompreensível. Dir-se-ia que goza com o mal dos seus semelhantes. As suas atividades, segundo as minhas notícias, não se reduzem só a Anglers inn. Em diversos lugares do Estado levou diversas pessoas à ruína. Possui uma enorme riqueza; conta com colaboradores da sua absoluta confiança, os quais, seguindo as suas diretrizes, afastam quantos o enfrentam.
— Eu opino — trovejou Gus Huberd, outro dos afetados, que se destacava pela sua iracúndia — que tudo o que não seja empregarmo-nos a fundo é perder o tempo. Esse Jerrigan é um mau bicho e os maus bichos esmagam-se. Uma bala bem dirigida resolveria o problema.
Georgina envolveu-o num olhar de reprovação.
— Acalme-se, Gus! — aconselhou Hilary Hogson, o quinto dos congregados —. Os atos violentos costumam trazer más consequências. Estamos em Phoenix e não em plena pradaria, onde as questões se resolvem a tiro.
Gus Huberd riu-se:
— Você vai dizer que os revólveres não soam na cidade!
— Soam, sim, mas, geralmente, as complicações são maiores.
— Ora! — protestou o belicoso Huberd — Todo o trabalho que me dessem fosse pôr um ponto final de chumbo neste pesadelo!
Georgina bateu na mesa:
— Senhor Huberd: somos pessoas decentes, educadas, corretas. Como lhe pode ocorrer falar de determinações próprias de bandoleiros indesejáveis?
Charles apaziguou-a:
— Não te aborreças, Georgina. O amigo Gus não pensou, certamente, em qualquer ação dessas; mas sim em fazer ver a esse Jerrigan que não se pode jogar com os nossos interesses, e que, se continua com essa tática, nos encontrará em todos os terrenos. Eu próprio me sinto capaz de empunhar um «Colt», sempre que ele se encontre na minha frente e nas mesmas condições.
Bateram à porta e um empregado de Theodore Lavinson, depois de obter licença, disse:
— O senhor Jerrigan espera.
Emudeceram durante vários segundos.
— Que entre — autorizou Theodore.
Georgina abriu muito os olhos e teve de levar a mão à boca para conter a exclamação prestes a escapar-se-lhe. Aquele, o homem a quem pouco antes estivera a ponto de atropelar e que a tratara com tanta desconsideração, era Buck Jerrigan! Ele avançou, não demonstrando conhecer a jovem, e saudou as pessoas que conhecia:
— Theodore Levinson, Hilary Hogson e Ernest Ryan.
O dono da casa iniciou as apresentações dos outros:
— A senhora Georgina Mallard, o senhor Jory, o senhor Huberd...
Buck fez uma inclinação de cabeça perante a jovem e apertou as mãos de Gus e Charles.
— Creio que não é a primeira vez que nos vimos, senhora — disse, colocando-se na frente da rapariga: — Não. se recorda de me ter encontrado antes?
A pergunta tinha tanta ironia desdenhosa, que o orgulho de Georgina se reacendeu:
—É possível — respondeu, displicente.
— Não está certa... apesar de apenas ter decorrido uma escassa meia hora?... É natural: quando se vai de carro, dificilmente se concede atenção aos aborrecidos peões que intercetam o caminho. E se qualquer desses peões é um mulato, menos ainda, embora se tenha estado a ponto de o esmagar sob as patas dos animais. Porque você acertou, minha senhora: Sou mulato. Filho de um branco e de uma negra. E creia de que me sinto verdadeiramente orgulhoso de que minha mãe fosse negra.
Ficaram em suspenso as testemunhas da cena. O panorama acabava de lhes ser oferecido em tintas fortes.
— Não me interessam as suas preferências —replicou ela, altiva.
Charles reagiu antes dos demais e perguntou a sua noiva:
— Pelos vistos, foi este homem quem te atirou as rédeas à cara.
— Tive essa honra — apressou-se Buck a responder.
Georgina interpôs-se, rápida:
—O senhor Jerrigan não pretendeu, sem dúvida, fazer-me dano. Deve-se à casualidade o facto das rédeas me terem dado na cara.
— De todos os modos...
— Por favor, Charles; não se fala mais no assunto.
Buck sorriu de modo enigmático.
— Não se falará mais no assunto — respondeu Jory — se este senhor te pedir desculpa e tu a aceitares.
— Tem graça! — exclamou Jerrigan, mostrando, ao acentuar o seu frio sorriso, os dentes brancos, apertados, que rebrilhavam ao estabelecer contraste com a cor morena do seu rosto —. Quase atropelam uma pessoa, deitando-lhe em cima dois cavalos fogosos e em seguida pretendem acto de contrição. Não penso fazê-lo, menina Mallard; não penso fazê-lo, senhor Jory.
Voltou-lhes as costas. Charles deu um passo para ele. 'Georgina agarrou-o, ordenando-lhe, em voz baixa:
— Quieto!
Levinson, Ryan e Hogson apressaram-se a fazer todos os possíveis para aliviarem a tensão do momento. Maldita casualidade! Tanta gente habitava Phoenix e logo haviam de chocar Georgina e o homem a quem lhes interessava persuadir!
— Bem, senhores — atalhou-os Jerrigan, diver-tido — as minhas ocupações são muitas e o tempo escasso. Digam-me o objetivo com que me convidaram para esta reunião.
— Pode supô-lo — respondeu Theodore — Procuramos resolver o problema comum que a todos nos afeta.
— A senhora Mallard também está interessada no assunto?
A interessada encarou-o.
— Ignora-o? Não sabe que o rancho «Cruzes de Ouro» é meu?
Ele voltou-se ligeiramente:
— Queria que mo confirmasse. Na realidade, dá trabalho saber quem são os proprietários daquelas herdades. Nunca se veem por ali e eu não costumo aborrecer-me com investigações.
Tomou a palavra Ernest Ryan. Era o mais autorizado não só pelos anos — roçava os cinquenta e cinco — como pela sua capacidade e temperança. Expressou-se em termos conciliadores, pondo em evidência as razões que, em seu entender, existiam para que cessasse aquela concorrência prejudicial, e esforçando-se por declarar os benefícios para todos dum acordo, uma espécie de união que lhes permitiria obter bons lucros coletivos.
Buck deixou-o falar a. seu gosto, sem o interromper uma vez sequer, e voltou-se depois para Levinson, o qual, reforçando as frases do seu companheiro, deixou transparecer algumas ameaças para o caso em que da reunião nada resultasse de satisfatório.
Falou seguidamente Gus Huberd, que, ultrapassando-se muito a Theodore, gritou destemperadamente falando de luta de morte, de guerra sem quartel. Hilary Hogson utilizou a sua vez, dulcificando os conceitos do seu antecessor e insistindo nas mesmas argumentações de Ernest Ryan.
Buck quando o último orador havia concluído, voltou-se ligeiramente para Georgina e Charles:
— Têm algo a acrescentar ao exposto?
A rapariga só dificilmente continha a sua ira. Parecia-lhe humilhante que aqueles homens dessem tal cúmulo de explicações a um mulato, por muito que fosse o seu poderio, e insofrível que este os observava com aquele ar de superioridade.
— Está tudo dito — murmurou.
Jory nem sequer respondeu. Jerrigan abandonou o seu lugar e, acendendo um, cigarro, engoliu o fumo como se quisesse conservá-lo para sempre. Com uma mão negligentemente metida num bolso, foi apoiar-se a uma janela próxima. Olhou para as pessoas reunidas e falou pausadamente:
— Vim a esta entrevista com a esperança de ouvir algo interessante, novo, construtivo; algo que manifestasse que haviam estudado o problema geral e que se dispunham a resolvê-lo como requer; isto é, sentindo que o nosso país necessita do entusiasmo de todos os seus filhos, seja qual for o trabalho a que se dediquem. Vejo que não é assim. Tudo o que lhes ocorre é propor-me que cesse a minha tarefa e que me torne vosso aliado para vender caro. Por que razão, em vez de aqui estarem tranquilamente deixando o trabalho a cargo dos capatazes, não tiveram a precaução de enfrentarem as circunstâncias?
— A que chama você «enfrentar»? — perguntou Levinson.
— Procurar, como eu, a maneira de embaratecer os preços sem se prejudicar.
— Isso é uma brincadeira? — inquiriu Gus, agressivo.
— Nada de brincadeiras. A segurança de que não me podem fazer sombra, porque quando quiserem despertar já será tarde, movo-me a ministrar-lhes umas pequenas lições gratuitas. Que fazem os senhores quando o gado cai exausto devido às secas? Lamentarem-se e deixarem-no morrer. Naturalmente, como isso significa uma perda considerável, veem-se obrigados a tê-la em conta e a sobrecarregarem os preços. Como procuram que as reses engordem? Recorrendo aos métodos primitivos, e desesperando-se quando os pastos escasseiam. Para que aborrecerem-se estudando a maneira de resolver estes e outros problemas?
Ouviram-no inquietos e com o máximo de atenção. Ainda sabendo que o jovem os acusava comentando factos que, ao fim e ao cabo, a ele nada lhe interessavam, não se atreviam a replicar-lhe. Buck acrescentou dando outra longa fumaça:
— Continuam velando pela pureza das raças vacuns de origem inglesa: «Augus», «Hereford», «Shorthorn»... Nada de misturas... Horror aos mestiços! Pois bem: nesta questão que nos ocupa, as misturas são a melhor defesa do ganadeiro. Ouviram falar da raça chamada «Brahaman»? Talvez não. Pouco lhes deve preocupar o que não seja ganhar sem esforço! A pouca curiosidade que tivessem sentido lhes teria facilitado ver muitos exemplares em qualquer dos meus ranchos. Procede da índia. É um animal de estrutura férrea, grande papada, cornos abertos e orelhas pendentes. O «brahaman» é insensível às mais fortes e opostas temperaturas: suporta secas prolongadas, reproduz-se em tipos híbridos de grande peso; é imune às enfermidades correntes e desenvolve-se com assombrosa rapidez. O cruzamento bem administrado de touros «Brahaman» com vacas «Augus» produz novilhos que ao serem desmamados pesam já mais de duzentos e trinta quilos, enquanto os puros, os «Augus», apenas roçam os duzentos e os outros, os puros «Hereford» não chegam a esta última cifra. Que lhes parece? Como lhes disse antes, trata-se de uma pequena lição grátis. Estudem e trabalhem se querem saber mais, embora me pareça que de pouco lhes serviria. Isto e muitas outras coisas que omito, porque não se trata aqui de uma conferência, permitem-me vender mais e melhor que todos vocês juntos.
— E levar-nos à ruína! — bramou Gus Huberd.
— Exatamente — admitiu Jerrigan com a maior naturalidade —. Levá-los à ruína. Creio que não tardarei muito a consegui-lo.
Houve um momento de surpresa. A desfaçatez com que o mulato expunha o seu propósito deixou-os boquiabertos. Antes que se repusessem, ele continuou:
— Apesar de tudo, ao pedirem-me ontem que viesse a esta reunião, predispus-me favoravelmente. Não tenho nenhum ódio pessoal a nenhum dos presentes. As minhas atividades são também necessárias noutros pontos e pensei deixá-los tranquilos uma temporada. Sinto dizer-lhes que mudei de parecer — olhou diretamente para Georgina, como se os demais tivessem deixado de existir —. Continuarei em Anglers inn, atuando conforme me interessar, sem relações nem convénios com ninguém.
— Isso é a guerra! — exclamou Theodore.
— Naturalmente — disse Jerrigan — é a guerra.
Charles ergueu-se, gritando:
— Basta. Não compreendo como sofremos tudo quanto ouvimos da boca deste salva vidas e fazendas!
— Aconselho-o — insinuou Buck — a medir as suas palavras. Pode ser que se arrependa...
— Nunca me arrependo do que faço ou digo! Você é um insolente; um mulato — recalcou — desprezí...
Não terminou o insulto: o braço de Jerrigan estendeu-se como impelido por uma mola e o seu punho foi embater contra o queixo do ofensor, o qual, vendo miríades, de estrelas, caiu sem sentidos.
Elevou-se enorme clamor. Buck, como se Jory o pudesse ouvir, disse, entre dentes:
— O único ser desprezível que aqui está és tu, branco vaidoso. Não quero suportar a tua presença.
Ergueu-o sem o menor esforço, e antes que os demais o pudessem impedir, atirou-o pela janela que, afortunadamente para aquele, encontrava--se a pouca altura da rua. Gus e Theodore, saindo do espanto, levaram as mãos aos revólveres, mas abstiveram-se de os tirar dos coldres: a mão de Buck fechava-se já sobre um «Colt» de considerável tamanho.
— Serenidade, senhores — disse — não me obriguem a prejudicá-los mais que a conta.
— Saia depressa daqui! -- gritou Georgina, cujas feições se encontravam alteradas —. Maldita a hora em que os meus amigos tiveram a ideia de falarem consigo!
— Reconheço que foi uma má lembrança —respondeu Buck —. Depois disto não creio que pensem insistir.
Sem perder nenhum de vista, saiu a porta. Gus Hubert, após ligeira vacilação, seguiu-o. Hilary Hogson e Ernest Ryan procuraram impedi-lo:
— Não faça loucuras! Espere!
— Deixe-me sair!
Aos empurrões conseguiu chegar à porta.
— O assunto não foi bem encaminhado —lamentou-se Theodore.
Georgina que, dominada pela fúria, respirou com dificuldade, encarou todos os outros rancheiros:
— Charles teve razão! Buck Jerrigan não passa de um miserável mulato! Porque descemos a conceder-lhe tal superioridade?
Ernest replicou um pouco acremente:
— Parece-me, Georgina, que deveria refrear um pouco a sua soberba. Você é a pessoa menos indicada para nos repreender. Por sua culpa, bem claro o vimos na atitude de Jerrigan, perdemos a ocasião de pôr a salvo os nossos interesses.
A rapariga retrocedeu, como se lhe tivessem batido. Nos rostos de Levinson e Hogson podia também ler-se uma censura.
— Talvez não se tenha perdido tudo — disse, sarcástica —. Procurem-no, roguem-lhe, submetam-se, deem-lhe o flanco. Eu defender-me-ei até ao último minuto! Possivelmente, se procederem assim, voltará o seu ódio sobre a minha pessoa, deixando-os tranquilos e felizes.
Theodore interveio:
— Não somos capazes de o fazer... nem adiantávamos nada. As coisas chegaram hoje a um extremo que não admite solução pacífica. Lutaremos juntos sem que nada nos detenha.
Gus Huberd reapareceu, cabisbaixo. Todos o olharam.
— Não está só, como pensava — resmungou, respondendo a uma pergunta que lhe dirigiram —. Uma espécie de gigantesco orangotango aguardava-o à porta.
— Belo! — comentou Theodore Usa guarda-costas! Não é tão valente, então, como quer dar a entender.
— Acho absurdo que a paixão nos cegue —protestou Ryan —. Não é valente? Esteve aqui, só, na nossa frente, desafiando-nos, deitou Jory abaixo com maior facilidade... E ainda chamam cobarde a quem assim se comporta? O facto de que se faça acompanhar por algum amigo na prevenção de alguma traição não denota cobardia, mas sim prudência.
Irritou-se Huberd:
— Você defende-o com muito calor!
— Ponho as coisas no seu lugar, simplesmente. Só os insensatos cerram os olhos ante os méritos do inimigo. Disse-o antes e repito-o agora: Buck Jerrigan é perigoso, muito perigoso.
Gus renunciando à discussão com o velho rancheiro, dirigiu-se à rapariga:
— O seu noivo está voltando a si. Ela saiu, pressurosa. O rápido desenvolvimento dos acontecimentos, o interesse destes, a sua própria indignação e, também, o mau efeito que lhe produziu ver Charles ser batido ao primeiro soco de Jerrigan, haviam-lhe contido os impulsos de ocorrer imediatamente para comprovar os efeitos da queda. Efetivamente, o infeliz Jory, recobrava a noção das coisas, entre um numeroso grupo de gente. Georgina chegou até ele, observando com desgosto que Denny o agarrava e lhe prestava auxílio.
— Olá, irmãzinha...
— Que fazes aqui?
— Uma obra de caridade. Passava casualmente quando este bólido saiu pela janela e julguei-me na obrigação de o socorrer.
Mentia. Estivera vagueando pelos arredores desde o princípio, desejoso de averiguar algo que lhe pudesse ser útil. Acrescentou ante o mutismo da jovem:
— Não farias nada de mais agradecendo-me. É o teu noivo... embora agora não o pareça. Digo-o pela pouca pressa que tiveste em saber o que lhe sucedia.
— Não necessito que ninguém me dê lições —replicou colérica, por seu irmão lhe falar em tom tão mordaz, diante de todos aqueles curiosos. Inclinou-se sobre Jory, — Como te encontras?
O interrogado pestanejou, dizendo: Não sei...
— Tem um «galo» bastante respeitável —disse Denny —. Vá lá que a janela é baixinha.
— Cala-te e ajuda-me a levá-lo para o carro.
— Não achas que me devias pedir com outra voz?
Georgina julgou que ia rebentar. Tentou erguer Charles, mas sem o conseguir.
— Deixa-me, irmãzinha, deixa-me. Apesar de tudo, sou um bom rapaz.
Levantou Jory, o qual fazia esforços para recuperar as forças.
— Apoia-te no meu braço — disse ela.
Tropeçando como um embriagado, apesar da ajuda que lhe prestavam, Charles chegou ao veículo. Denny acomodou-o.
— Acompanho-os, irmãzinha bonita?
Não é necessário que te incomodes.
Denny encolheu os ombros. O carro partiu, com as rédeas manejadas por Georgina. Atrás ficavam o sorriso irónico de Denny e os comentários jocosos dos curiosos.
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