Jerrigan refreou a sua montada, detendo-a a poucos passos do rancho «Cem Milhas». No pátio estava um vaqueiro, velho, enrugado, que o olhou temeroso com vontade de se lançar a correr.
— Procuro o senhor Jory — disse Buck, sem desmontar. — Não está aqui.
— Onde se encontra?
— Não sei.
— Se mente, passará um mau bocado.
— Nunca menti, senhor Jerrigan. O patrão saiu esta manhã muito cedo, sem dizer onde ia e ainda não voltou.
Buck não duvidou das informações do seu interlocutor. Sabia conhecer na cara dos homens se diziam ou não a verdade.
— Está bem —admitiu —. Quando regressar, diga-lhe que o procuro para o matar; que esteja prevenido, porque onde quer que o encontre o tombarei.
O velho abriu grotescamente a boca e os olhos. Jerrigan, sem lhe dar importância, picou as esporas e afastou-se, seguindo o caminho que o conduziria ao rancho de Theodore.
Também ali lhe afirmaram que o patrão se encontrava ausente, acrescentando que o poderia encontrar em Sugarloat. Para lá se dirigiu. A sua primeira visita foi para o xerife, a quem contou o que sucedera aquela manhã, a fim de que realizasse as diligências oportunas, se é que queria dar trabalho ao coveiro. O representante da Lei sentia por Buck um respeito sem limites, e murmurou:
— De tudo isso, o único lamentável é a morte dos seus rapazes e, em especial, de Henry Keyes. — Sim...
— O resto... Foi uma boa obra a sua liquidando esses assassinos e ladrões de gado.
Jerrigan despediu-se, dedicando-se a procurar Theodore. As perguntas que a esse respeito fazia eram respondidas com mal dissimulado temor. Havia na voz do mulato algo especialíssimo que arrepiava. Um rapazinho informou-o, finalmente:
— O senhor Levinson entrou há pouco no «Bar do Francês».
Jerrigan atirou-lhe um dólar de prata e dirigiu-se ao local indicado. Prendeu o cavalo a uma das argolas cravadas na parede e, empurrando as portas, entrou no estabelecimento. A concorrência não era muito numerosa. Buck, sem se preocupar com os olhares que lhe dirigiam, correu a vista ao redor, descobrindo Theodore, sentado, só, ante um copo de conhaque. Lentamente dirigiu-se para ele, parando a curta distância.
— 0lá, Levinson. Venho informá-lo do resultado da sua canalhada.
Theodore ergueu-se rapidamente, mostrando um medo invencível.
— Não sei o que quer dizer.
— Mente!
O insulto soou como uma chicotada. Os clientes voltaram-se para os dois homens e, em seguida, como num movimento de baixa-mar, foram-se recolhendo nos cantos.
— Afirmo-lhe...
— Não procure pretextos. Eu sei tudo. Você e Charles Jory organizaram um acto criminoso, valendo-se de ladrões de gado, que custou a vida a muitos homens, entre os quais, Henry Keyes, o meu melhor amigo —. Voltou-se para os assistentes, sem perder Theodore de vista —. Escutem todos: este tipo, em união com outro da sua igualha, chamado Charles Jory, que sem dúvida conhecem, levaram a efeito uma manobra das que não têm perdão.
Referiu-se em grandes rasgos ao drama e disse como final, enfrentando novamente Levinson:
— Venho liquidar a nossa conta. Como sou superior em tudo, quero dar-lhe vantagem. Não levarei a mão ao revólver sem que você tenha puxado o seu.
Theodore suava copiosamente. Sentia nos próprios ossos o fogo do olhar do mulato. Ânsias homicidas apressavam o latejar do seu coração. Considerava-se hábil no manejo do revólver, e a vantagem que acabavam de lhe oferecer pareceu-lhe mais que suficiente para obter o êxito. Pensou que aquela fanfarronada ia ser a última do seu inimigo. Procurando assegurar-se ainda mais, quis entretê-lo com a conversa:
— Não há direito, Jerrigan, que queira resolver as questões a tiro. Você prejudicou-nos bastante, e, no entanto, nós...
— Mas as minhas jogadas não estiveram envoltas em sangue, à exceção dos casos Zuquer e Huberd, os quais procuraram a minha morte, encontrando a sua. Vamos! Comece!
— Não se precipite; oiça-me antes com calma; quero que saiba...
Julgando o inimigo interessado no que dizia, «sacou» rápido. A bala cravou-se no chão. Jerrigan havia-se--lhe adiantado, dando-lhe um tiro na mão direita e outro no coração.
—Tem o suficiente — foi o frio comentário que fez, vendo Theodore dobrar-se e derrubar uma mesa com o peso do corpo. Voltou-se para as testemunhas —: Alguma objeção a fazer sobre a legalidade da luta?
Por sinais, uns, e de forma quase inaudível os restantes, todos responderam em sentido negativo. Jerrigan guardou o revólver e alcançou a porta, sem acrescentar uma só palavra e sem que ninguém lhe dissesse nada.
Desatou, vagarosamente, o cavalo e afastou-se a passo lento. Pela segunda vez parou nesse mesmo dia ante a fazenda de Charles, perguntando por ele e obtendo a mesma resposta: não havia regressado, nem sabiam onde estava.
— Digam-lhe quando vier — recomendou ao vaqueiro que o recebeu — que me agradará enviá-lo, o mais depressa possível, a fazer companhia ao seu amigo Theodore.
O pobre homem tremeu. Já ali havia chegado a notícia da sorte corrida por Levinson e, embora não sentisse nenhum afeto por Charles, produziu-lhe calafrios aquela calma com que o matador anunciava o seu propósito. Quis dar uma resposta e os sons afogaram-se-lhe na garganta. Buck tomou a direção do «Cruzes de Ouro». Logo que o divisou, a sua fronte encheu-se de rugas: a meio da porta, firme, olhando para o caminho, encontrava-se Georgina. Havia descoberto Jerrigan e, encontrando-se só, não quisera recebê-lo em casa nem dar-lhe a sensação de que o temia. Assim, guardando na algibeira um pequeno revólver, decidira ir ao encontro do inimigo.
O mulato saltou da sela e avançou olhando firmemente a jovem.
— Que deseja?
— Duas coisas. Uma, encontrar o seu noivo. Há bastante horas que o procuro.
— Não está aqui.
— Não sabe onde se esconde?
— Charles nunca se escondeu de ninguém!
— Celebro-o. Isso me faz esperar que tão depressa saiba o meu interesse em o encontrar acorra a dar-me a cara. A segunda coisa é anunciar-lhe de antemão que me proponho afundá-la já em todos os sentidos, sem olhar a meios. O que fiz até agora contra si, pode considerá-lo como coisa sem importância em comparação com o que a espera. É a única que tenho ao meu alcance, sendo você uma mulher. Daria até a salvação da minha alma, se é que ela tem salvação, para que se tornasse num homem para a derrubar com um tiro como fiz a Theodore Levinsun, como penso fazer com Charles Jory!
A rapariga sentiu que as pernas lhe fraquejavam, não por medo, mas ao impulso de estranhas sensações. A voz rouca do seu interlocutor feria e a expressão dos seus olhos causava profundo mal-estar. Apoiou-se a uma das colunas de madeira que sustinham a parreira.
— Você é um louco monstruoso!
— Monstruoso, ahn?... — riu —. Vocês, pelo contrário, são excelentes pessoas. Organizam a matança de homens valentes, generosos, que fazem tudo por cumprir o seu dever, e -ficam entre os bastidores para saborearem cobardemente o triunfo. Mas esse triunfo converteu-se em derrota. Os meus homens já estão quase vingados: Só me falta destruir você e Charles Jory.
Ela cambaleou, sentindo punhaladas nas fontes; ignorava o dramático acontecimento, se bem que tivesse motivos para pressentir algo de horrível.
—Não entendo nada; não compreendo... — respondeu.
E o seu tom angustioso deu uma nota de verdade a tais manifestações. Buck não o viu ou não o quis ver. Sabia que a jovem sofria, e com selvagem prazer gozava a tortura:
— Não entende nada! Não sabe nada... Quer dizer-me onde estão os seus vaqueiros?
— Os meus vaqueiros? Ainda me pergunta? Vem divertir-se com a sua façanha de ter-no-los levado?
— Bem sabe que não aludo aos que despediu e sim aos outros.
— Os outros!... Espanta o seu cinismo! Olhe as consequências de também os ter levado!
Com passo inseguro encaminhou-se para o pavilhão próximo. Jerrigan seguiu-a instintivamente. A jovem empurrou a porta e apontou uma tarimba sobre a qual havia um corpo imóvel.
— Jess Wolf!
— Jess Wolf, sim. Quis impedir a partida desses «cow-boys» e crivaram-no de balas. Encontrei-o esta manhã perdendo sangue. Só pode pronunciar o que lhe acabo de dizer. Pode ufanar-se da sua obra, em vez de lançar acusações!
Jerrigan, voltando as costas à jovem, inclinou-se sobre o ferido, intensamente pálido, que respirava entrecortadamente.
— Quem fez o curativo a este homem?
— Eu!
— Não tem ideia sequer destas coisas. Traga imediatamente ligaduras, álcool e algodão.
Georgina permaneceu imóvel, o queixo empertigado, agressiva e hostil. Ante tal atitude, Jerrigan procurou o que necessitava. No pavilhão havia de tudo. E como se ignorasse a presença da mulher, levou a cabo um tratamento minucioso e inteligente. As suas mãos férreas pareciam de seda.
Vendo-o actuar, Georgina, inconscientemente, foi-se humanizando. Parecia-lhe estar observando outra pessoa, de feições suaves e nobres sentimentos aflorando-lhe nos olhos.
— O médico deve tomar conta deste homem — disse, sem a olhar —. Irei buscá-lo.
Ela recobrou novamente as suas maneiras duras:
— Não é necessário. Já o foi procurar um vizinho que passou aqui há pouco.
— Porque não o fez imediatamente?
— Estou só, completamente só, e não queria deixá-lo morrer sem ninguém ao lado -- arrependeu-se das suas explicações e mudou de tom: — E não tenho de lhe dar contas dos meus atos.
Jerrigan olhou-a com dureza. Havia terminado de fazer tudo quanto estava ao seu alcance a favor de Jess e, alcançando a porta, murmurou:
— Se é verdade que nada sabe do ocorrido, pergunte a Charles Jory quando o vir; arranque-lhe a confissão das suas infâmias. Ele é o responsável do que aconteceu a Jess... e da enorme tragédia desta manhã.
— Não acredito! Você empenha-se em o caluniar!
Buck mediu-a de cima abaixo com o olhar, e respondeu:
— É muito possível que renuncie à ideia de matar o seu noivo, a fim de que vocês casem. Será a melhor maneira de castigar ambos.
Afastou-se a grandes passadas. A rapariga, aturdida ainda, atontada pelo furacão dos seus pensamentos, deixou-se cair sobre um marco de pedra e ficou a vê-lo afastar-se. Perdeu a noção do tempo. Escurecia quando o galope de una cavalo a fez reagir. Reconheceu no cavaleiro um dos médicos de Sugarloat e acorreu a recebê-lo.
— Oh, doutor!... Com quanta impaciência o esperava... Entre, tenha a bondade.
— Quem fez o primeiro tratamento a este homem? — quis saber o médico, apenas viu c ferimento de Jess uma coisa perfeita.
Georgina esteve tentada a confessar-se autora, mas retificou, dizendo:
— Buck Jerrigan. O semblante do velho médico exteriorizou assombro:
— Ele esteve aqui?
— Admira-se?
— Muito. E, sobretudo que tenha vindo nesse plano, depois do sucedido. — Ignora-o?
— Jerrigan disse palavras soltas; muitas delas incompreensíveis para mim. Gabou-se de ter dado morte ao senhor Levinson e vinha procurar Charles, o meu noivo. De facto, no dia de hoje estão acontecendo coisas inexplicáveis.
O médico narrou, então, tudo quanto se dizia na povoação, desde o tresmalho do gado, com todas as suas consequências, divulgado pelo xerife, até à dramática luta entre Buck e Theodore. Georgina estava pasmada.
— Ignoro — terminou o velho médico — se o seu noivo terá ou não a ver com o assunto; mas, recomendo-lhe que não se ponha ao alcance de Jerrigan. É o homem mais temível de quantos conheci na minha já longa existência, e tudo lhe parecerá pouco para vingar a morte de Henry Keyes e dos demais rapazes.
Enquanto falava tinha tirado da maleta o necessário para dar um reconfortante a Wolf. Fê-lo ingerir e conseguiu que este experimentasse um ligeiro alívio.
— Voltarei amanhã, cedo — prometeu, despedindo-se —. Eu mesmo trarei o que faz falta para ver se salvamos este homem.
— Eu velarei por ele.
— Está só?
— Completamente.
Denny apareceu à porta:
— Não tão só, rapariga.
Iluminou-se o semblante da mulher. Nunca como então lhe resultava tão agradável a presença do seu irmão. Explicou este:
-- Não me foi possível vir em todo o dia. Passaram-se tantas coisas!... Mas aqui me tens disposto a não te abandonar toda a noite.
Georgina, com Os olhos húmidos, abraçou-o:
— Obrigado, Denny!
— De quê? Cumpro a minha obrigação. Nos momentos difíceis nunca devemos deixar de escutar a voz do sangue. — Ele proferiu estas palavras, emocionado, com sinceridade.
E Georgina esqueceu, embora transitoriamente, todo o mal que lhe havia feito aquele louco sem escrúpulos, para o considerar outra vez, única e exclusivamente, seu irmão.
— Agradeço-te muito a atenção.
— Não falemos mais no assunto.
O médico partiu, repetindo a promessa de voltar na manhã seguinte e fazendo as recomendações oportunas sobre o capataz. Os dois irmãos saíram para o pátio e deram explicações sobre os sucessos do dia.
Georgina viu confirmado o que Jerrigan dissera e o médico ampliara depois. Admitiu, então, a possibilidade de que Charles estivesse envolvido no assunto, e novamente experimentou para com ele uma aversão que chegava aos limites do ódio. Denny, como noutras ocasiões, sem querer, contra a sua própria vontade, fez o elogio de Jerrigan, descrevendo as suas reações corajosas e enérgicas.
— É um homem — terminou — que se não fosse mulato mereceria o respeito e a admiração de todo o mundo!
O funeral das vítimas foi um grande acontecimento. As mais relevantes personalidades das povoações limítrofes acorreram sem vacilações, não porque tivessem muito gosto nisso, mas porque Buck lhes escrevera como aviso de que «gostaria muito de os ver render o último tributo àqueles pobres mulatitos». E como quase todos tinham motivos para não querer inimizades com aquele homem, apressaram-se a fazer acto de presença. Aquilo constituía uma espécie de oferenda sem palavras que Jerrigan fazia aos seus amigos mortos.
Terminado o acto, depois de receber os pêsames de quantos formaram a numerosa comitiva, expôs o desejo de que o deixassem só no cemitério. Foi obedecido. Lentamente passeou por entre as tumbas recém-abertas, murmurando frases ininteligíveis até se deter no lugar onde acabavam de sepultar Keyes e deixou-se cair sentado sobre a terra:
— Bem, Henry; não nos separámos tanto como parece. Eu virei aqui com frequência e conversaremos; porque tu escutarás a minha voz e eu a tua, embora nem um nem outro descerremos os lábios...
Pelas faces de Jerrigan deslizavam lentamente grossas lágrimas, que o abrasavam como se fossem gotas de chumbo derretido.
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