Horácio apoiou-se à parede, junto da porta de casa. os seus olhos brilhavam com um estranho fulgor e nos lábios dançava um sorriso de satisfação.
— Agora ele saberá como são castigados os da laia dele.
Harry estava diante de Horácio. Tinha acabado de chegar ao povoado e não perdeu um minuto a contar-lhe o sucedido.
— Julguei que gostarias de guardar uma recordação de Black Face. E entregou-lhe o cinto e o revólver que tinha tirado ao bandido de Lodge.
Horácio tomou-o e contemplou-o durante uns segundos. Depois riu, como se aquilo tivesse graça.
— Agradeço-te, rapaz! É a melhor oferta que poderiam fazer-me! Prometo que vou guardá-la como se tratasse de uma preciosidade. Queres beber alguma coisa, Harry?
—Não. Só quero lavar-me e mudar de roupa. Como está meu pai?
—Teu pai? Bem, magnificamente bem. Oh! Tens de perdoar-me o meu pouco tacto. Devia ter pensado que estavas preocupado com a sua sorte. Queres ir vê-lo?
— Não. Quanto mais tempo ignorar que eu estou aqui, melhor.
—Como quiseres — disse o bandido, encolhendo os ombros. — De qualquer maneira, dei ordens para que o tratem da melhor forma e não lhe falte nada.
— Obrigado.
No seu alojamento, esperava-o uma surpresa. Maria aguardava-o. Vestia um trajo encarnado e o cabelo estava preso com uma fita da mesma cor. Estava verdadeiramente encantadora, e Harry permaneceu uns segundos contemplando-a, assombrado.
—Mal soube que tinhas chegado, apressei-me a vir.
— Que fazes aqui?
E, sem dizer mais nada, enlaçou o pescoço de Harry e beijou-o.
— Quero dar-te as boas-vindas.
— Estás muito bonita.
— Queres que nos casemos?
Harry pôs-se muito sério. Ela, ao notá-lo, replicou:
—Não gostas de mim?
—És a única mulher de quem eu gostei. Nada me agradaria tanto como fazer-te minha mulher.
—O que é que o pode impedir?
—Tudo. aqui sou estranho. Além disso... não conheço teus pais. É possível que eles não concordem.
—Não tenho pais.
—Nem nenhuma pessoa de família? Com quem vives?
— Com meu tio Joaquim. Estou certa de que ele concordará com que nos casemos. O meu irmão Diego vive separado de nós.
Harry reparou então na transformação que se tinha efetuado na casa.
— Arranjei-a a meu gosto. Agora é só para ti. Melhor dizendo eu esperava que fosse para os dois. Aqui poderíamos viver muito felizes. Tudo estava arranjado e muito limpo.
—E Johnny?
— Foi para outro lado. Simão disse-lhe que mudasse de casa. Resmungou, mas não teve outro remédio. Simão ameaçou-o de que o desmascararia por ter tomado parte no «complot» da outra noite.
Harry examinou a transformação que se tinha produzido. Na janela estavam umas cortinas de tela estampada, que davam à casa um ar alegre. O quarto, que até então tinha sido ocupado por Johnny, estava mudado. Harry surpreendeu-se por ver objetos femininos.
—Trouxe algumas coisas minhas—disse Maria, adiantando-se ao pensamento de Harry. — Tenho de arranjar o quarto.
Harry continuava a olhá-la em silêncio
—Incomoda-te o que fiz?
—Deves pensar que ainda não estamos casados.
—Não importa. Fá-lo-emos logo que desejares.
—O casamento não é uma coisa que se possa fazer com tanta rapidez. Não sei os costumes daqui, mas creio que estes matrimónios não podem ter qualquer validade.
Maria replicou com energia:
— Quando alguém se casa vem aqui um sacerdote
— Um sacerdote? — sorriu Harry, cético.
—Um sacerdote, como Deus manda. Simão vai a Cantillo, do outro lado do rio. Pede ao padre que venha e ele vem sempre.
—De boa vontade?
— Isso não sei. O certo é que vem a casa de quem lho pedir.
—Talvez com revólver apontado às costas.
— Não é verdade! — protestou Maria, com veemência. —Ninguém o pode obrigar! Muitos dos que aqui vivemos dedicamo-nos a ocupações honradas! Horácio e Simão fazem o que querem! Eles só nos pediram alojamento para os seus homens e, em troca, trazem-nos comida e outras coisas de que necessitamos! Queres que te diga a ocupação de todos os que vivem aqui?
— Está bem. Acredito-te.
Maria tinha os olhos cintilantes de Indignação.
—Julguei que ia dar-te uma alegria e verifico que és como todos os outros! Muito pior do que eles! Deixaste que me enamorasse de ti, e quando te falo de casamento assustas-te como um miúdo a quem falam do lobo!
— Amo-te, Maria e asseguro-te...
A rapariga apoderou-se do ramo de flores que enfeitava o meio da mesa e atirou-o à cara de Harry.
—Não mereces que ninguém te queira! —exclamou, dominando os soluços.
Imediatamente voltou as costas a Harry e saiu. Harry quis segui-la, mas ela corria velozmente, como uma gazela. Mal teve tempo de vê-la desaparecer nas casas fronteiriças.
Harry voltou para o seu quarto e deitou-se em cima da cama. Refletiu durante uns momentos. Gostava da rapariga e tinha-se enamorado dela. Mas a sua situação exigia-lhe que não se afastasse da linha de conduta que tinha marcado, de acordo com o próprio tenente Mac Clody.
Estendeu-se sobre a cama e fechou os olhos. Estava deitado não sabia há quanto tempo, quando ouviu uns golpes na porta. Levantou-se e foi abrir. Um homem com um grande bigode negro, estava diante dele. Empunhava um revólver e apontava-o ao peito de Harry.
— Tu és um gringo que se meteu com a minha sobrinha?
— Maria?
— Sim. Ela contou-me tudo. E queres agora voltar atrás?
— Com que então és o tio dessa rapariga? Queres entrar?
—Não! Não me fio nos homens como tu.
—Está bem. Já que és o seu familiar mais próximo, devo dizer-te que a rapariga me agrada. É simples, boa, trabalhadora e também muito bonita. Gostaria de fazer dela minha mulher.
—O que é que o impede?
—É ainda muito cedo para nos casarmos. Ela não sabe nada de mim.
—Uma razão mais para julgar a sua boa-fé.
—É certo. Sem dúvida estou aqui condicionalmente. Devo fazer algumas coisas para merecer um posto junto de Horácio. Posso ter um acidente e não queria que Maria ficasse viúva tão nova.
— Outra razão para não continuares à espera. Terias quem reparasse pela tua alma e te chorasse durante algum tempo.
— Ela é uma criança.
—Uma criança? Maria tem já dezoito anos! — desatou a rir —E sua mãe, Maria Lupita, casou-se aos dezasseis. É a minha irmã.
—Onde está agora?
—Voltou a casar-se com um ricaço de San Roque. Maria não quis ir para a sua companhia e eu trouxe-a para aqui.
— Nesse caso... terá de ter o consentimento de sua mãe. É menor...
—Sou eu quem faz de pai, mãe, de toda a família! Não necessita mais do que o meu consentimento. E já o tem!
Harry ficou pensativo. Depois, dirigiu-se para a mesa.
—Queres beber alguma coisa?
O homem entrou, mas o revólver não deixava de apontar ao rapaz.
— Não tentes pregar-me uma cilada — advertiu-o.
— Eu Jogo sempre limpo — sorriu Harry. —E ainda que não tivesses esse revólver falar-te-ia da mesma maneira.
Foi buscar uma garrafa e dois copos. Encheu-os e, ao colocá-los sobre a mesa, um deles voltou-se e entornou-se sobre as roupas de Joaquim. Este deixou escapar uma exclamação de aborrecimento e por um segundo afrouxou a vigilância de Harry. Foi o suficiente para que recebesse um pontapé na mão, que lhe fez largar o revólver. Lançando uma maldição, inclinou-se para o apanhar.
— Quieto! — conteve-o a voz enérgica do rapaz.
Via agora apontando para ele com o próprio «Colt». O seu semblante empalideceu. Harry deu um pontapé no revólver do homem, e este foi para um canto distante.
— Agora já podes sentar-te — disse-lhe, guardando a sua arma.
— Que diabos?...
— Bebe tranquilamente. Necessita-lo.
Joaquim bebeu o líquido que se encontrava no outro copo.
— Que susto me pregaste.
— Não achas que falamos agora com tranquilidade? —disse-lhe Harry. —Não é corrente falar de compromissos matrimoniais, apontando ao noivo uma arma carregada. As más línguas poderiam dizer que houve coerção.
Joaquim continuava a olhar Harry, um pouco admirado do que tinha acontecido.
— Gosto de Maria como se ele fosse a minha própria filha.
—E eu gosto dela como se já a tivesse convertido em minha mulher. Mas não me precipitarei de modo a fazer a sua desgraça. Acreditas na minha palavra?
— Evidentemente.
— De hoje a um mês, se Maria estiver ainda disposta a ser minha esposa, iremos à procura do primeiro sacerdote que encontrarmos e, sem mais demora, pedir-lhe-emos que abençoe o nosso matrimónio.
— Parece-me razoável assentiu Joaquim, estendendo a mão ao rapaz.
Harry estreitou-a com força.
—Espero que contes isso a Maria.
—Contar-lhe-ei, mas não sei se pensará como nós. Na idade dela não é a cabeça, mas o coração que manda.
• • •
Maria não apareceu durante todo o dia. Nem no dia seguinte. Também Harry não viu Simão nem Horácio. Parecia que a terra os tinha tragado. Supôs que tinham saído e que ninguém sabia onde tinham ido.
Harry sentia-se vigiado. Sabia que os dois irmãos continuavam a desconfiar dele. Mas aquela vigilância destinava-se também a protegê-lo de qualquer acto de vingança por parte daqueles que não viam com bons olhos a sua presença no povoado.
Naquela noite recebeu uma vista que não esperava. Estava a jogar as cartas com um pastor, que morava numa casa ao lado da sua e com o qual se dava bem. Chamava-se Nestor e era um homem simples, ainda que de expressões rudes.
A sua atenção foi distraída por alguém que bateu à porta. Levantou-se, mas antes de chegar à entrada, a porta abriu-se e apareceu Vera. Vestia um trajo negro, que deixava os ombros a descoberto e chegava até aos pés. O cabelo estava solto, caindo-lhe sobre as costas. Vera avançou uns passos e olhou Nestor com desprezo.
— Sai daqui — disse em tom suave, ainda que persuasivo.
Nestor fez o sinal da cruz, como se acabasse de ver o diabo, e saiu sem se despedir de Harry.
— Que vieste cá fazer? —perguntou Harry, com secura.
—Por que julgas que vim? — perguntou ela, por sua vez.
—Não sei.
—Desejas abandonar isto tanto como eu. O que é que te contém?
—Eu nunca disse isso.
—Mas eu leio nos teus pensamentos. Que dirias se soubesses que eu tenho cavalos escondidos num sítio aqui próximo?
— Se eu quisesse ir-me embora, ninguém me impediria.
— Impede-te o saberes que teu pai está preso numa destas casas.
Harry encolheu os ombros e voltou-lhe as costas.
—Eu posso libertar o teu pai esta mesma noite.
Ele continuou sem despregar os lábios. Perguntava-se que fins tinham trazido ali aquela mulher. Era sincera, ou, pelo contrário, estava representando uma comédia?
—Não és tão valente como queres fazer crer — sorriu-se Vera, desdenhosamente. — Desconfias de mim e talvez tenhas medo.
—Creio que é preferível que voltes para casa.
Vera cravava o olhar, aquele olhar frio e ao mesmo tempo ardente. Harry experimentou por momentos, sensação de estar em frente de uma serpente.
— Acompanhas-me? — perguntou ela. — Não és um rufia como estes que nos rodeiam. E um cavalheiro não deixa que uma dama volte sozinha e de noite par sua casa.
Harry dirigiu-se para a porta, desejando acabar de vez com aquela cena.
— Vamos.
Saiu para a rua e Vera seguiu-o. Em silêncio, percorreram o troço da rua que levava à casa daquela mulher. Ao chegarem lá ela estendeu-lhe a mão. Harry estreitou-a e, antes que pudesse adivinhar as suas intenções, ela deitou-lhe os braços à volta do pescoço.
A surpresa desconcertou-o. Vera abraçava-o com força, quase com desespero. Harry teve de puxar-lhe os braços para ela se afastar. Então, dois homens apareceram da sombra e colocaram-se um de cada lado do rapaz...
—Não te movas! —disse um deles, cravando nas suas costas um objeto duro, que Harry adivinhou imediatamente o que era.
Vera desprendeu-se do seu pescoço e largou a correr, como se os desconhecidos a assustassem. Mas Harry pareceu-lhe que ela já tinha cumprido a sua missão e que deixava que os outros a continuassem.
—Que significa isto? —perguntou, sem se mover.
Não lhe responderam. Um dos desconhecidos abriu a porta da casa e obrigou-o a entrar. Empurraram-no enquanto o despojavam do revólver. Depois fizeram--no entrar num segundo compartimento e fecharam no à chave. Estava encerrado na própria casa de Horácio.
No quarto onde se encontrava havia a mais absoluta obscuridade. Procurou nos bolsos os fósforos e acendeu um no momento em que ouviu um grunhido que lhe causou um calafrio de horror.
No canto oposto ao que ele ocupava no quarto, viu brilhar dois olhos que permaneciam fixos na sua pessoa. Eram os olhos de «Satã», o terrível mastim das sangrentas façanhas, a que se referira Simão!
Com a débil chama entre os dedos, Harry permaneceu imóvel, enquanto a sua mente tentava encontrar uma solução que o livrasse daquele perigo iminente. «Satã» grunhiu de novo, desta vez mais perto. O fósforo apagou-se, mas Harry sentia como o animal estava cada vez mais perto.
O menor movimento da sua parte bastaria para o cão dar com ele e matá-lo. Inclusivamente, Harry continha a respiração. Não pôde dizer quanto tempo esteve naquela espera angustiosa. Só notava que o corpo estava coberto de um suor frio.
Ao fim de um certo tempo, chegou até ele um ruído ligeiro. Não vinha do cão, pois este encontrava-se a seus pés, mas de um sítio atrás de si. Depois, uns passos cautelosos avançaram. «Satã» emitiu um novo grunhido.
Nesse momento abriu-se a porta e o cão lançou-se para a abertura, ao mesmo tempo que dava um feroz rugido. De repente, estalou uma detonação e o animal rolou pelo chão, com a cabeça desfeita. Harry suspirou e voltou-se. A porta estava Simão.
O revólver que empunhava ainda fumegava. Na outra mão sustinha um candeeiro de petróleo. — Graças a Deus, chegaste a tempo! —murmurou Harry, relaxando os músculos.
— Essa besta tinha de acabar assim de um dia para o outro — disse Simão, com assento sombrio. Era um perigo para todos.
— Como o soubeste?...
Simão voltou-se e assinalou a porta da rua. Então Harry viu Maria, que se apoiava na ombreira da porta. Tinha o rosto branco como o papel e os lábios tremiam de terror.
—Ela advertiu-me. Disse que te tinha visto chegar com Vera e que dois homens te tinham saído ao caminho, obrigando-te a entrar aqui. Em seguida, compreendi o que tramavam. Sabes quem foi?
—Não, não pude vê-los.
— Acontece sempre assim. Mas tinham aquilo bem combinado. Para todos, terias morrido às garras de «Satã», ao pretender entrar em casa de Horácio. Vera encarregar-se-ia de dizer que tinhas ido à procura dela. Já te disse que desconfiasses dessa mulher.
Harry foi ao encontro de Maria. Agarrou-a pelos braços e olhou-a nos olhos.
— Obrigado — murmurou.
E, sem esperar resposta, atraiu-a contra o peito e beijou-a nos lábios.
— Agora ele saberá como são castigados os da laia dele.
Harry estava diante de Horácio. Tinha acabado de chegar ao povoado e não perdeu um minuto a contar-lhe o sucedido.
— Julguei que gostarias de guardar uma recordação de Black Face. E entregou-lhe o cinto e o revólver que tinha tirado ao bandido de Lodge.
Horácio tomou-o e contemplou-o durante uns segundos. Depois riu, como se aquilo tivesse graça.
— Agradeço-te, rapaz! É a melhor oferta que poderiam fazer-me! Prometo que vou guardá-la como se tratasse de uma preciosidade. Queres beber alguma coisa, Harry?
—Não. Só quero lavar-me e mudar de roupa. Como está meu pai?
—Teu pai? Bem, magnificamente bem. Oh! Tens de perdoar-me o meu pouco tacto. Devia ter pensado que estavas preocupado com a sua sorte. Queres ir vê-lo?
— Não. Quanto mais tempo ignorar que eu estou aqui, melhor.
—Como quiseres — disse o bandido, encolhendo os ombros. — De qualquer maneira, dei ordens para que o tratem da melhor forma e não lhe falte nada.
— Obrigado.
No seu alojamento, esperava-o uma surpresa. Maria aguardava-o. Vestia um trajo encarnado e o cabelo estava preso com uma fita da mesma cor. Estava verdadeiramente encantadora, e Harry permaneceu uns segundos contemplando-a, assombrado.
—Mal soube que tinhas chegado, apressei-me a vir.
— Que fazes aqui?
E, sem dizer mais nada, enlaçou o pescoço de Harry e beijou-o.
— Quero dar-te as boas-vindas.
— Estás muito bonita.
— Queres que nos casemos?
Harry pôs-se muito sério. Ela, ao notá-lo, replicou:
—Não gostas de mim?
—És a única mulher de quem eu gostei. Nada me agradaria tanto como fazer-te minha mulher.
—O que é que o pode impedir?
—Tudo. aqui sou estranho. Além disso... não conheço teus pais. É possível que eles não concordem.
—Não tenho pais.
—Nem nenhuma pessoa de família? Com quem vives?
— Com meu tio Joaquim. Estou certa de que ele concordará com que nos casemos. O meu irmão Diego vive separado de nós.
Harry reparou então na transformação que se tinha efetuado na casa.
— Arranjei-a a meu gosto. Agora é só para ti. Melhor dizendo eu esperava que fosse para os dois. Aqui poderíamos viver muito felizes. Tudo estava arranjado e muito limpo.
—E Johnny?
— Foi para outro lado. Simão disse-lhe que mudasse de casa. Resmungou, mas não teve outro remédio. Simão ameaçou-o de que o desmascararia por ter tomado parte no «complot» da outra noite.
Harry examinou a transformação que se tinha produzido. Na janela estavam umas cortinas de tela estampada, que davam à casa um ar alegre. O quarto, que até então tinha sido ocupado por Johnny, estava mudado. Harry surpreendeu-se por ver objetos femininos.
—Trouxe algumas coisas minhas—disse Maria, adiantando-se ao pensamento de Harry. — Tenho de arranjar o quarto.
Harry continuava a olhá-la em silêncio
—Incomoda-te o que fiz?
—Deves pensar que ainda não estamos casados.
—Não importa. Fá-lo-emos logo que desejares.
—O casamento não é uma coisa que se possa fazer com tanta rapidez. Não sei os costumes daqui, mas creio que estes matrimónios não podem ter qualquer validade.
Maria replicou com energia:
— Quando alguém se casa vem aqui um sacerdote
— Um sacerdote? — sorriu Harry, cético.
—Um sacerdote, como Deus manda. Simão vai a Cantillo, do outro lado do rio. Pede ao padre que venha e ele vem sempre.
—De boa vontade?
— Isso não sei. O certo é que vem a casa de quem lho pedir.
—Talvez com revólver apontado às costas.
— Não é verdade! — protestou Maria, com veemência. —Ninguém o pode obrigar! Muitos dos que aqui vivemos dedicamo-nos a ocupações honradas! Horácio e Simão fazem o que querem! Eles só nos pediram alojamento para os seus homens e, em troca, trazem-nos comida e outras coisas de que necessitamos! Queres que te diga a ocupação de todos os que vivem aqui?
— Está bem. Acredito-te.
Maria tinha os olhos cintilantes de Indignação.
—Julguei que ia dar-te uma alegria e verifico que és como todos os outros! Muito pior do que eles! Deixaste que me enamorasse de ti, e quando te falo de casamento assustas-te como um miúdo a quem falam do lobo!
— Amo-te, Maria e asseguro-te...
A rapariga apoderou-se do ramo de flores que enfeitava o meio da mesa e atirou-o à cara de Harry.
—Não mereces que ninguém te queira! —exclamou, dominando os soluços.
Imediatamente voltou as costas a Harry e saiu. Harry quis segui-la, mas ela corria velozmente, como uma gazela. Mal teve tempo de vê-la desaparecer nas casas fronteiriças.
Harry voltou para o seu quarto e deitou-se em cima da cama. Refletiu durante uns momentos. Gostava da rapariga e tinha-se enamorado dela. Mas a sua situação exigia-lhe que não se afastasse da linha de conduta que tinha marcado, de acordo com o próprio tenente Mac Clody.
Estendeu-se sobre a cama e fechou os olhos. Estava deitado não sabia há quanto tempo, quando ouviu uns golpes na porta. Levantou-se e foi abrir. Um homem com um grande bigode negro, estava diante dele. Empunhava um revólver e apontava-o ao peito de Harry.
— Tu és um gringo que se meteu com a minha sobrinha?
— Maria?
— Sim. Ela contou-me tudo. E queres agora voltar atrás?
— Com que então és o tio dessa rapariga? Queres entrar?
—Não! Não me fio nos homens como tu.
—Está bem. Já que és o seu familiar mais próximo, devo dizer-te que a rapariga me agrada. É simples, boa, trabalhadora e também muito bonita. Gostaria de fazer dela minha mulher.
—O que é que o impede?
—É ainda muito cedo para nos casarmos. Ela não sabe nada de mim.
—Uma razão mais para julgar a sua boa-fé.
—É certo. Sem dúvida estou aqui condicionalmente. Devo fazer algumas coisas para merecer um posto junto de Horácio. Posso ter um acidente e não queria que Maria ficasse viúva tão nova.
— Outra razão para não continuares à espera. Terias quem reparasse pela tua alma e te chorasse durante algum tempo.
— Ela é uma criança.
—Uma criança? Maria tem já dezoito anos! — desatou a rir —E sua mãe, Maria Lupita, casou-se aos dezasseis. É a minha irmã.
—Onde está agora?
—Voltou a casar-se com um ricaço de San Roque. Maria não quis ir para a sua companhia e eu trouxe-a para aqui.
— Nesse caso... terá de ter o consentimento de sua mãe. É menor...
—Sou eu quem faz de pai, mãe, de toda a família! Não necessita mais do que o meu consentimento. E já o tem!
Harry ficou pensativo. Depois, dirigiu-se para a mesa.
—Queres beber alguma coisa?
O homem entrou, mas o revólver não deixava de apontar ao rapaz.
— Não tentes pregar-me uma cilada — advertiu-o.
— Eu Jogo sempre limpo — sorriu Harry. —E ainda que não tivesses esse revólver falar-te-ia da mesma maneira.
Foi buscar uma garrafa e dois copos. Encheu-os e, ao colocá-los sobre a mesa, um deles voltou-se e entornou-se sobre as roupas de Joaquim. Este deixou escapar uma exclamação de aborrecimento e por um segundo afrouxou a vigilância de Harry. Foi o suficiente para que recebesse um pontapé na mão, que lhe fez largar o revólver. Lançando uma maldição, inclinou-se para o apanhar.
— Quieto! — conteve-o a voz enérgica do rapaz.
Via agora apontando para ele com o próprio «Colt». O seu semblante empalideceu. Harry deu um pontapé no revólver do homem, e este foi para um canto distante.
— Agora já podes sentar-te — disse-lhe, guardando a sua arma.
— Que diabos?...
— Bebe tranquilamente. Necessita-lo.
Joaquim bebeu o líquido que se encontrava no outro copo.
— Que susto me pregaste.
— Não achas que falamos agora com tranquilidade? —disse-lhe Harry. —Não é corrente falar de compromissos matrimoniais, apontando ao noivo uma arma carregada. As más línguas poderiam dizer que houve coerção.
Joaquim continuava a olhar Harry, um pouco admirado do que tinha acontecido.
— Gosto de Maria como se ele fosse a minha própria filha.
—E eu gosto dela como se já a tivesse convertido em minha mulher. Mas não me precipitarei de modo a fazer a sua desgraça. Acreditas na minha palavra?
— Evidentemente.
— De hoje a um mês, se Maria estiver ainda disposta a ser minha esposa, iremos à procura do primeiro sacerdote que encontrarmos e, sem mais demora, pedir-lhe-emos que abençoe o nosso matrimónio.
— Parece-me razoável assentiu Joaquim, estendendo a mão ao rapaz.
Harry estreitou-a com força.
—Espero que contes isso a Maria.
—Contar-lhe-ei, mas não sei se pensará como nós. Na idade dela não é a cabeça, mas o coração que manda.
• • •
Maria não apareceu durante todo o dia. Nem no dia seguinte. Também Harry não viu Simão nem Horácio. Parecia que a terra os tinha tragado. Supôs que tinham saído e que ninguém sabia onde tinham ido.
Harry sentia-se vigiado. Sabia que os dois irmãos continuavam a desconfiar dele. Mas aquela vigilância destinava-se também a protegê-lo de qualquer acto de vingança por parte daqueles que não viam com bons olhos a sua presença no povoado.
Naquela noite recebeu uma vista que não esperava. Estava a jogar as cartas com um pastor, que morava numa casa ao lado da sua e com o qual se dava bem. Chamava-se Nestor e era um homem simples, ainda que de expressões rudes.
A sua atenção foi distraída por alguém que bateu à porta. Levantou-se, mas antes de chegar à entrada, a porta abriu-se e apareceu Vera. Vestia um trajo negro, que deixava os ombros a descoberto e chegava até aos pés. O cabelo estava solto, caindo-lhe sobre as costas. Vera avançou uns passos e olhou Nestor com desprezo.
— Sai daqui — disse em tom suave, ainda que persuasivo.
Nestor fez o sinal da cruz, como se acabasse de ver o diabo, e saiu sem se despedir de Harry.
— Que vieste cá fazer? —perguntou Harry, com secura.
—Por que julgas que vim? — perguntou ela, por sua vez.
—Não sei.
—Desejas abandonar isto tanto como eu. O que é que te contém?
—Eu nunca disse isso.
—Mas eu leio nos teus pensamentos. Que dirias se soubesses que eu tenho cavalos escondidos num sítio aqui próximo?
— Se eu quisesse ir-me embora, ninguém me impediria.
— Impede-te o saberes que teu pai está preso numa destas casas.
Harry encolheu os ombros e voltou-lhe as costas.
—Eu posso libertar o teu pai esta mesma noite.
Ele continuou sem despregar os lábios. Perguntava-se que fins tinham trazido ali aquela mulher. Era sincera, ou, pelo contrário, estava representando uma comédia?
—Não és tão valente como queres fazer crer — sorriu-se Vera, desdenhosamente. — Desconfias de mim e talvez tenhas medo.
—Creio que é preferível que voltes para casa.
Vera cravava o olhar, aquele olhar frio e ao mesmo tempo ardente. Harry experimentou por momentos, sensação de estar em frente de uma serpente.
— Acompanhas-me? — perguntou ela. — Não és um rufia como estes que nos rodeiam. E um cavalheiro não deixa que uma dama volte sozinha e de noite par sua casa.
Harry dirigiu-se para a porta, desejando acabar de vez com aquela cena.
— Vamos.
Saiu para a rua e Vera seguiu-o. Em silêncio, percorreram o troço da rua que levava à casa daquela mulher. Ao chegarem lá ela estendeu-lhe a mão. Harry estreitou-a e, antes que pudesse adivinhar as suas intenções, ela deitou-lhe os braços à volta do pescoço.
A surpresa desconcertou-o. Vera abraçava-o com força, quase com desespero. Harry teve de puxar-lhe os braços para ela se afastar. Então, dois homens apareceram da sombra e colocaram-se um de cada lado do rapaz...
—Não te movas! —disse um deles, cravando nas suas costas um objeto duro, que Harry adivinhou imediatamente o que era.
Vera desprendeu-se do seu pescoço e largou a correr, como se os desconhecidos a assustassem. Mas Harry pareceu-lhe que ela já tinha cumprido a sua missão e que deixava que os outros a continuassem.
—Que significa isto? —perguntou, sem se mover.
Não lhe responderam. Um dos desconhecidos abriu a porta da casa e obrigou-o a entrar. Empurraram-no enquanto o despojavam do revólver. Depois fizeram--no entrar num segundo compartimento e fecharam no à chave. Estava encerrado na própria casa de Horácio.
No quarto onde se encontrava havia a mais absoluta obscuridade. Procurou nos bolsos os fósforos e acendeu um no momento em que ouviu um grunhido que lhe causou um calafrio de horror.
No canto oposto ao que ele ocupava no quarto, viu brilhar dois olhos que permaneciam fixos na sua pessoa. Eram os olhos de «Satã», o terrível mastim das sangrentas façanhas, a que se referira Simão!
Com a débil chama entre os dedos, Harry permaneceu imóvel, enquanto a sua mente tentava encontrar uma solução que o livrasse daquele perigo iminente. «Satã» grunhiu de novo, desta vez mais perto. O fósforo apagou-se, mas Harry sentia como o animal estava cada vez mais perto.
O menor movimento da sua parte bastaria para o cão dar com ele e matá-lo. Inclusivamente, Harry continha a respiração. Não pôde dizer quanto tempo esteve naquela espera angustiosa. Só notava que o corpo estava coberto de um suor frio.
Ao fim de um certo tempo, chegou até ele um ruído ligeiro. Não vinha do cão, pois este encontrava-se a seus pés, mas de um sítio atrás de si. Depois, uns passos cautelosos avançaram. «Satã» emitiu um novo grunhido.
Nesse momento abriu-se a porta e o cão lançou-se para a abertura, ao mesmo tempo que dava um feroz rugido. De repente, estalou uma detonação e o animal rolou pelo chão, com a cabeça desfeita. Harry suspirou e voltou-se. A porta estava Simão.
O revólver que empunhava ainda fumegava. Na outra mão sustinha um candeeiro de petróleo. — Graças a Deus, chegaste a tempo! —murmurou Harry, relaxando os músculos.
— Essa besta tinha de acabar assim de um dia para o outro — disse Simão, com assento sombrio. Era um perigo para todos.
— Como o soubeste?...
Simão voltou-se e assinalou a porta da rua. Então Harry viu Maria, que se apoiava na ombreira da porta. Tinha o rosto branco como o papel e os lábios tremiam de terror.
—Ela advertiu-me. Disse que te tinha visto chegar com Vera e que dois homens te tinham saído ao caminho, obrigando-te a entrar aqui. Em seguida, compreendi o que tramavam. Sabes quem foi?
—Não, não pude vê-los.
— Acontece sempre assim. Mas tinham aquilo bem combinado. Para todos, terias morrido às garras de «Satã», ao pretender entrar em casa de Horácio. Vera encarregar-se-ia de dizer que tinhas ido à procura dela. Já te disse que desconfiasses dessa mulher.
Harry foi ao encontro de Maria. Agarrou-a pelos braços e olhou-a nos olhos.
— Obrigado — murmurou.
E, sem esperar resposta, atraiu-a contra o peito e beijou-a nos lábios.
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