terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

KNS020.01 Deserção forçada

Começava a declinar o dia. A Estalagem na encruzilhada de Llamas, estava envolta num profundo silêncio. Nos pastos, junto ao rio, viam-se alguns bois, passeando tranquilamente.
Uma mulher saiu da pousada e dirigiu-se ao poço. Mas quando ia a tirar a água, divisou uma nuvem de poeira, do lado de Alamares.
Imediatamente a mulher retrocedeu e desapareceu porta adentro. Uns minutos mais tarde chegavam oito cavaleiros. Aparentemente, tratava-se de um grupo de vaqueiros; mas para um bom observador, aqueles homens nenhum ou muito pouco contacto tinham com as reses.
—É, rapazes — exclamou o que ia à frente do grupo. —Descemos aqui para molhar a língua!
Desmontaram todos exceto um dos homens, um indivíduo alto e de feições secas, que se dirigiu ao poço. Ali deixou que o seu cavalo se refrescasse na celha cheia de água. Os demais homens entraram na pousada.
— Então não nos dás de beber, rapariga? — perguntou um dos homens, que aparentava ter quarenta anos, de tez escura e farto bigode negro. Apesar da sua indumentária tipicamente texana, advertia-se a sua origem mexicana.
— Tens medo?
—Não senhor — respondeu a interpelada, que estava com medo daqueles desconhecidos. Foi buscar copos e duas garrafas.
Os homens continuavam de pé, junto à mesa, e mantinham uma estranha atitude. O que tinha falado, dava voltas pela casa como se algo o preocupasse. Mas na realidade, observava tudo quanto ali via.
— Onde estão os homens da casa? — perguntou o homem à rapariga que reaparecia nesse momento com o vinho.
—Meu pai está nos currais e Juan foi ao rio.
— Diz a teu pai que venha.
— Sim senhor.
O homem que acabara de falar, o chefe, voltou-se para um dos seus subordinados.
—Leva um copo a Conney.
O homem agarrou num copo e saiu.
—Eh, Malc! Preferes água?
— A última vez que a provei deram-me cólicas. Julgas que sou algum bezerro?
O homem aproximou-se de Malc Conney e entregou-lhe o copo.
— Abre bem os olhos —disse-lhe, sem levantar a vista. — Simão não está a gostar desta tranquilidade. Preferia encontrar aqui mais gente.
— Talvez esteja enganado.
— Não, não está. Podia ser muito bem que manobrassem assim para evitar suspeitas. A rapariga parece nervosa.
— De qualquer maneira foi o melhor golpe até esta altura do ano.
Vazou o copo de um trago e devolveu-o ao companheiro. Este regressou à estalagem. O chefe do grupo estava agora a falar com um homem de uns cinquenta anos.
— Nesta época do ano os homens estão em Llamas. São necessários braços para a colheita dizia o dono da estalagem.
—E o trabalho na estalagem?
—Eu e outro homem é o suficiente. A minha filha trata da casa.
O chamado Simão bebeu mais um copo e enxugou os lábios nas costas da mão.
— Esta manhã, cedo, a diligência de Alamares deixou aqui umas maletas. Onde estão?
O dono da estalagem vacilou visivelmente.
— Está enganado — respondeu.
—Não estou. Sei que deixaram aqui duas maletas dirigidas à fazenda de Samuel Arévalo. Só virão buscá-las amanhã.
—Informaram-no mal.
— Estou bem informado — replicou Simão, ao mesmo tempo que empunhava o revólver. — Não suporto que me desmintam.
A rapariga, que assistia à cena em silêncio, correu para o pai. Pôs-se diante dele, como se quisesse protegê-lo.
— Que se propõe fazer, senhor? — exclamou indignada. — O meu pai não lhes fez mal nenhum!
— Nem eu sequer lhe tocarei se ele tiver a amabilidade de me entregar as maletas dirigidas a Samuel Arévalo.
—Impossível!
—Vamos! Queres que teu pai continue a trabalhar contigo?
A rapariga calou-se.
—Tu deves ser Simão, o Surdo —disse o pai da rapariga, olhando aquele que o ameaçava.
—Como o conheceste? —riu um dos homens.
Nenhum dos que assistiam à cena alterou a expressão dos seus rostos. Dir-se-ia que nada do que acontecia lhes importava.
—O meu pai não pode entregar-lhes aquilo que confiaram à sua guarda.
— Compreendo, pequena — sorriu Simão. — Livrá-lo-ei desse trabalho levando as maletas comigo. necessito que me digas onde é que elas estão.
— Jamais! — exclamou o dono da estalagem.
— Fazes mal em afirmá-lo. Se tens tanto empenho em não abrires a boca...
— Eu digo! — interrompeu a rapariga. — Estão sob os vossos pés!
O chefe do grupo olhou para o chão e viu que com efeito, se via a tampa de um alçapão. Retrocedeu uns passos e ordenou:
—Levantem isto!
A rapariga, que se havia refugiado nos braços pai, levou este para um canto da sala e daí assistira ao trabalho dos homens que tinham invadido a casa. Um daqueles desalmados levantou a tampa e deixou a descoberto uma abertura. Inclinou-se para ela e estendeu um, braço. Momentos depois retirou-o trazendo na mão uma maleta de coiro.
— Há outra — disse o chefe.
E acto contínuo o homem extraiu-a do chão. Um dos companheiros colocou-as sobre a mesa. Simão olhava o dono da estalagem com um sorriso cínico.
— Como pensaste em enganar-me, infeliz?
—O meu pai apenas cumpriu o que lhe foi ordenado.
—E isso é o mesmo que eu faço, pequena. Julgas que faço algo de mal? Esse dinheiro não faz nenhuma falta ao ricaço Samuel. Para que o quer ele? Para dar festas de arromba em sua casa e depois matar à fome aqueles que trabalham nos seus campos?
—Não achas que nos estamos a entreter demasiado, chefe? —disse um dos homens que acompanhavam Simão, o Surdo.
— Abre as maletas e verifica se nelas está o dinheiro.
Envoltos em roupas apareceram alguns maços de notas. Simão saiu satisfeito. Fez um sinal aos seus homens para se retirarem.
— Tens sorte em eu ser um homem de bons sentimentos. E também em teres uma filha bonita. Outro dia me ocuparei dela. Importas-te que volte, pequena?
Ela olhou-o muito friamente, sem responder. Simão avançou para ela.
—Perguntei-te se te importará que eu volte. Responde-me depressa!
— Pode voltar sempre que quiser, senhor.
— Obrigado — sorriu Simão. — Voltarei tão depressa tenha uns dias livres. Até à vista. Ah! — acrescentou como se se tivesse esquecido de algo. — Se perguntarem quem levou as maletas de Arévalo, podes dizer que foi Simão, o Surdo. Andam por aí muitos fulanos que seriam capazes de afirmar que foram eles. Entendido?
Fez estalar os dedos e saiu para a estrada. Os seus homens estavam já montados nos cavalos. Ia dar ordem de partida, quando uma bala partida de uma das janelas da estalagem, deitou por terra um dos homens que levavam as malas.
— Malditos cães! — berrou Simão, disparando contra a janela.
Mas nesse mesmo momento começaram a disparar de vários sítios, fazendo um círculo de fogo.
—É uma emboscada! — gritou Simão fora de si. —Deitem-se ao solo e mantenham-se separados. Estamos cercados!
Pretendeu organizar uma desesperada resistência, mas os seus atacantes estavam estrategicamente distribuídos, e não tardaram a aniquilar o grupo de foragidos.
Um silêncio impressionante se seguiu ao estrondo da batalha. Os vencedores foram aparecendo.
Um homem de uns trinta anos, alto e de olhar penetrante, avançou com a espingarda em punho para o lugar aonde jaziam os oito homens de Simão. Alguns não haviam morrido. Estavam somente feridos e mantinham-se imóveis, receosos de receber o tiro de misericórdia dos seus vencedores. Entre os feridos estava o próprio Simão. Tinha recebido um tiro na virilha e uma das mãos estava destroçada. Ficara de joelhos e via aproximar-se o seu odiado rival.
—Não te movas, Simão! —ordenou-lhe.
— Porco maldito! — exclamou Simão desesperado. — Tinhas tudo bem preparado!
Harry Freyer, da Polícia Rural do Texas, deteve-se a menos de dois passos do bandido. Sem deixar de lhe apontar a espingarda, ordenou:
—Larga o revólver! Simão não o obrigou a repetir a ordem.
Outros homens, vindos de todos os lados, aproximaram-se. Eram ao todo uns quinze, aqueles que tinham armado a emboscada.
— Tudo isto foi um ardil teu — disse com desprezo Simão.
— Sabíamos que andavas rondando por aqui e não foi difícil preparar uma isca digna de ti. E picaste-a como um iniciado!
—Esta serviu-me de lição. Acreditei no que me disseram. Devia ter matado esses dois comediantes—acrescentou, olhando para a estalagem.
— Não deves estar muito tocado — disse Harry, Inclinando-se para lhe examinar as feridas.
Com um gesto brusco, Simão afastou-o.
—Não quero que me toques!
— Terminamos com ele? — perguntou um dos homens que se tinham aproximado.
— Temos de ter piedade para com os feridos—replicou Harry.
— Piedade? — riu-se Simão. — Para depois me pendurarem num ramo bem alto. Até aos animais feridos se lhes concede a graça de um tiro que termine com os seus sofrimentos!
— Tu não mereces isso, Simão. E sinto imenso não te ter encontrado com teu irmão.
—A ele não o apanharás tão facilmente.
— Tarde ou cedo cairá como tu. Há uma isca muito boa para os tipos da tua laia. —E voltando-se para um dos ajudantes: — Quantos vivem?
—Três, mas dois deles não será por muito tempo.
—Levem-nos para dentro e tratem deles. Deixem Simão num sítio seguro. Não está muito ferido e tenho de o levar o mais depressa possível.
Três dias mais tarde Harry Freyer saia da estalagem à frente de um grupo de sete homens. Levava Simão com eles para o entregarem em Trayton aos seus superiores. Quando chegou a Trayton foi ver imediatamente o tenente Mac Clody.
—Bom trabalho, Freyer! —felicitou-se o seu superior. — Pregaste uma grande partida a esses indesejáveis. Estou inteirado, ponto por ponto, dos detalhes da emboscada.
—Teria preferido trazê-los todos vivos, mas estavam cercados e defenderam-se como feras.
—Sem dúvida que fizeste uma boa caçada. Simão é uma boa peça. Só é pena que não tenhas trazido o seu irmão Horácio, por não se encontrar entre eles. Não tenho dúvidas de que ele é o cabecilha dos bandidos que atuam ao longo da fronteira.
—E eu suspeito que existe outro que os maneja como simples peões.
—É possível — admitiu Mac Clody. — Mas só desarticulando essa vasta organização poderemos chegar ao fundo da mesma. A detenção de um dos irmãos Bierca facilita-nos em grande parte a nossa questão.
Um rapazinho bateu naquele momento à porta. O próprio tenente foi abrir.
—É para o senhor Freyer —disse o rapaz, entregando-lhe uma carta.
—É para ti, rapaz — sorriu-lhe o oficial, entregando-lhe. — Apostaria que qualquer rapariga que não dorme por tua causa, soube que chegaste à povoação.
Freyer recolheu a mensagem. Desdobrou-a e leu-a. A sua cara tornou-se de uma palidez mortal.
— Que tens, Freyer?
Como resposta, Harry entregou a carta ao seu superior:
«Senhor Harry Freyer:
Conseguiu apanhar o meu irmão Simão. mas eu tomei a liberdade de fazer o mesmo com seu pari. Tudo o que façam com meu irmão, se fará com o seu ente mais querido. Juro-lhe pelo que mais quero.
Horácio›.
— Grande canalha — exclamou Mac Clody. E ao ver que o mensageiro não se tinha afastado demasiado, gritou-lhe: —Eh, miúdo I
Este correu num momento.
—Onde está o homem que te deu esta carta?
—Foi-se embora. Disse-me que esperasse algum tempo antes de a trazer. E deu-me isto. Ao mesmo tempo mostrou ao oficial uma moeda de prata.
—Horácio não tardou muito tempo a vingar-se do golpe recebido — disse nas suas costas a voz de Harry Freyer. O seu aspeto havia mudado notavelmente naqueles poucos segundos.
— Possivelmente, não é mais do que uma ameaça. Na melhor das hipóteses, o teu pai está em casa. Não perderás nada indo lá.
E Harry Freyer saiu meia hora mais tarde para Everton, trinta milhas ao norte, aonde ficava a casa em que tinha vivido com seu pai. Ao chegar ali, obteve a confirmação da terrível realidade. Seu pai tinha desaparecido havia vinte e quatro horas. Fora visto pela última vez no povoado, mas já não regressara à granja. Harry regressou imediatamente a Trayton.
—Horácio falou verdade — disse a Mac Clody, mal chegou à sua presença. —É uma personagem que não se detém perante nada.
Mac Clody escutava-o em silêncio. Passeava de um extremo ao outro do quarto onde se encontravam.
— Isto é muito duro para ti — disse repentinamente, detendo-se perante Harry.
—O nosso trabalho está sujeito a muitos riscos — sorriu Harry, tristemente. — Mas jamais pensei que viesse a vingar-se desta forma.
Mac Clody continuou o seu passeio. Finalmente, deteve-se, apoiando-se na secretária.
—Pensei que seria pagar um preço demasiado alto pela captura de Simão.
— Não o compreendo — retorquiu Harry.
— Alguém poderá ajudar Simão a sair da prisão. Na realidade, teremos outras oportunidades para o capturar.
— Quem é capaz de levar a cabo essa empresa?
—Tu mesmo.
Harry estremeceu. Olhou fixamente o seu superior.
—Que se propõe, tenente Mac Clody?
— Só podes salvar o teu pai se levares Simão são e salvo até ao esconderijo do irmão.
—O que me pede é uma traição ao meu juramento.
— Pode ser uma ordem de serviço, Freyer. As vezes há ordens que parecem absurdas, mas que têm o seu motivo. Esta é uma delas.
—Libertar Simão e levá-lo ao irmão? —estranhou Harry.
—Será um acto lógico aos olhos dessa gente. Para eles arriscarás tudo para salvar teu pai, e então converter-te-ás num proscrito. Horácio e Simão conhecem-te e admiram-te. Não objetarão a que entres para a sua quadrilha.
— Parece algo monstruoso.
— A mim parece-me uma oportunidade única para chegarmos ao fim a que nos propusemos. Harry, estive a pensar no que me disseste acerca do cabecilha que maneja os cordelinhos daquela organização. Nenhum sacrifício seria demasiado se chegássemos a descobrir a identidade dessa pessoa.
— Creio que o compreendo, sem dúvida.
O tenente agarrou o rapaz pelos ombros e olhou-o fixamente:
— Compreendo os teus escrúpulos. Já te disse que podes considerar isso como uma ordem. Inclusivamente estou disposto a passá-la por escrito. Torno--me responsável por ela.
— Não é preciso. Chega-me a sua palavra. Suspeito os motivos que o induzem a proceder desta forma. De qualquer maneira, obrigado.
Simão dormia descansadamente quando um ruído o despertou. Endireitou-se na cama e olhou através da porta de sólidas grades. Alguém andava nas proximidades. Procedia com tal silêncio que o bandido sentiu-se intrigado.
— Quem anda aí? — perguntou sem levantar a voz.
— Não faças barulho — murmurou uma voz apagada. Ouviu abrirem a porta e uma mão agarrou-lhe o braço.
—Mas... que diabos?
— Calas-te?
Deixou-se conduzir, coxeando em virtude da ferida recente. Chegaram a uma porta que dava para a rua. Estava deserta. Aí reconheceu a misteriosa personagem.
— Freyer! — balbuciou. — Que significa?...
Harry impôs-lhe silêncio, levando a mão aos lábios.
—Segue-me e não digas nada. Depressa saíram do povoado. A entrada de um bosque estavam dois cavalos amarrados a uma árvore.
—Queres explicar-me?...
Harry olhou-o através da penumbra.
— Queres voltar para os teus?
—Não me fio no que estás fazendo
— Monta e vai adiante. Antes de dez minutos darão conta de que nós fugimos e seguir-nos-ão. Temos de nos distanciar deles o mais possível.
—É outra emboscada?
— Não, não é.
—Isto não me agrada. Não compreendo...
— Vamos, monta. Compreenderás quando estiveres junto dos teus.
Simão não fez repetir o convite. Minutos mais tarde, os dois ginetes galopavam, afastando-se cada vez mais da povoação.
— Aonde queres ir?
— Não será para o cárcere, com certeza.
— Vou devolver-te ao teu irmão — falou Harry, apontando as montanhas. — Estou certo de que está à nossa espera.
—Que te propôs?
— Enviou-me uma nota dizendo que se alegraria vendo-me por lá. E eu aceitei. É bem simples...
—Não sei... parece-me muito suspeito.
—Crês que ia meter-me na boca do lobo, sem necessidade?
—Para que me preparaste a emboscada no cruzamento de Llamas?
—As coisas mudaram. Desde há uma hora não sou outra coisa do que um desertor, que ajudou um preso a fugir.
—Sabes que isto é um jogo que pode custar-te muito caro?
— Sei o que arrisco. O teu irmão obrigou-me a dar este passo, e agora já está dado.
Simão encolheu os ombros e obrigou o seu cavalo a aumentar a velocidade. Ao amanhecer, chegaram a uma encosta e pouco depois, quando já o sol banhava os picos da cordilheira, chegaram à entrada de um vale. Nesse mesmo momento, um disparo estremeceu o ambiente na calma manhã.

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