quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

CLF023.12 O falso apelo de uma mulher em perigo

Sentou-se numa cadeira, e ajoelhando-se aos pés dela, tirou-lhe a bota. O tornozelo estava inchado. Tocou-lhe com um dedo e ela fez um gesto de dor.
— Creio que o torceu ao cair do cavalo — murmurou —, mas acho que não tem importância.
Suavemente começou a friccioná-lo com álcool. Parecia impossível que as suas mãos, tão grandes e tão fortes, pudessem mover-se com tanta habilidade e tanta delicadeza. Ao fim de alguns momentos, Deborah sentiu que a dor diminuía paulatinamente. Depois, John ligou o tornozelo com força e pôs-se em pé.
— Acho que daqui a alguns dias estará completamente bem.
Deborah, que até então, mantivera os olhos baixos, atreveu-se a olhá-lo.
—Salvou-me a vida—murmurou em voz baixa.
O rapaz fez um gesto ambíguo.
— Não tem importância — disse.
Mas ela não deixava de o fitar, e nos seus belos olhos havia uma luz acariciadora.
—Cada dia que passa, aumenta a minha dívida para consigo. Não sei como pagar tudo o que tem feito por mim.
John inclinou-se para ela e olhou-a uns momentos em silêncio. Os seus rostos estavam muito próximos.


—Não é preciso que me pague nada—disse ele, por fim, com uma vez ligeiramente enrouquecida. — Só o tê-la perto de mim compensa tudo.
 Sentia o perfumo característico que se desprendia da pele da rapariga, uni perfume suave, enervante. Deborah, que até então tinha sustentado o olhar, baixou bruscamente os olhos, e ao mesmo tempo que um ligeiro rubor tingia as suas faces, uniu as mãos sobre o peito, e murmurou:
—John, é melhor que vá ajudar Russ. Não está certo deixar-lhe todo o trabalho.
Tinha-se rompido o encanto e fora ela que o rompera deliberadamente. O rapaz ergueu-se e encheu os pulmões de ar. Depois, com um certo desânimo, moveu a cabeça num sinal afirmativo.
—Sim, é melhor ir ajudar o Russ.
Deu meia volta e saiu de casa. Deborah permaneceu durante algum tempo com os olhos fixos na porta por onde ele tinha saído. Até elas chegavam de novo os gritos dos dois homens e o mugir das reses. Depois, reclinando a cabeça no espaldar da cadeira, fechou os olhos.
Russ tinha ido a Dodge numa carroça para adquirir diversas ferramentas e materiais que lhes eram necessários. Passou o dia todo na cidade e regressou ao anoitecer.
Enquanto descarregavam a carroça, John notou que o seu amigo tinha um ar estranho e que às suas perguntas respondia com evasivas. Estranhou muito esta atitude de Russ, que sempre se mostrava falador.
Deborah, que estava muito melhor do seu tornozelo e já podia andar com certas precauções, estava presente enquanto descarregavam a carroça. Também ela notou a reserva de Russ, mas não lhe deu grande importância. Limitou-se a gracejar, dizendo:
— Parece que Russ se apaixonou por alguma rapariga.
— Ou por uma garrafa de whisky — comentou John.
Russ sorriu, mas continuou a guardar silêncio. Só quando Deborah se foi embora para preparar o jantar e os dois amigos ficaram sozinhos, é que John se atreveu a perguntar-lhe abertamente:
— Pode-se saber que diabo é que tens?
Russ, sem abandonar o seu ar de profunda preocupação, replicou:
— Vi a Carol.
— Bem, e então?
O outro sacudiu a cabeça.
— Há qualquer coisa grave com ela, John.
—Que queres dizer?
Russ coçou o queixo.
— Parece assustada. E receio que se tenha metido num bom sarilho. Disse-me que precisava de te ver urgentemente.
John franziu a testa.
—Para quê'?
— Precisa da tua ajuda.
O rapaz fez um gesto de impaciência.
— Queres falar claro de uma vez para sempre? Não gosto de adivinhas. Faz o favor de me contar tudo.
Russ começou a enrolar um cigarro.
—Entrei no saloon para tomar um whisky. Carol, logo que me viu, veio para junto de mim. Já te disse que estava assustada, nervosa, como se a ameaçasse um perigo. Disse-me que precisava ver-te com urgência, que precisava da tua ajuda.
—Ainda não me disseste para quê.
—Não teve tempo de mo explicar. Olhava em volta com olhos de temor, como se tivesse medo de que alguém nos pudesse ver juntos. Mas, antes de se afastar do meu lado, disse que, amanhã ao meio-dia, te esperava no Vale das Águias.
— No Vale das Águias? Onde é isso?
—A umas cinco milhas daqui, para o Noroeste. E uma passagem rochosa em cujo cume se aninham as águias. E impossível a confusão, porque essas aves sempre estão a voar em volta. As últimas palavras de Carol foram: «Diz--lhe que preciso dele. É o único que pode ajudar-me».
—Por quê só eu?
— Não sei, John.
Ambos guardaram silêncio e permaneceram pensativos. Russ, que tinha acendido o seu cigarro, perguntou por fim:
— Que pensas fazer?
O rapaz tinha a testa franzida.
— Que farias no meu lugar?
— Iria, sem dúvida — replicou Russ, sem vacilar.
John fez um gesto de contrariedade.
— Porquê?
—Essa rapariga pede a tua ajuda num momento de perigo.
— Mas por que precisamente a minha?
— Já te esqueceste do que houve entre os dois?
John agitou uma mão.
—Aquilo não foi nada a sério. Sabes isso muito bem. Somente um passatempo para os dois. E já acabou.
Russ deitou o cigarro ao chão e esmagou com o tacão da bota.
— Talvez estranhes ouvir isto de mim, mas parece-me que não é próprio de um homem negar a sua ajuda a uma mu-mulher que está em perigo.
John passou a mão pela testa.
—Escuta, Russ, eu... não quero recomeçar com a Carol. Tenho para isso razões muito importantes.
— Essas razões chamam-se Deborah?
John olhou um momento para o seu amigo. Depois, baixando a cabeça sussurrou.
—Sim.
Russ pôs-se em pé. O seu rosto de bêbado e de pândego estava estranhamente sério. Na verdade, parecia um homem diferente.
—Tem cuidado, John. Deborah não é como as outras. Se troçasses dela, creio que seria capaz de te dar um tiro.
O rapaz sustento o olhar de Russ e sussurrou com voz enrouquecida:
—E eu pedir-te-ei que primas o gatilho se alguma vez atraiçoar Deborah.
Russ assentiu e pôs uma mão no ombro do rapaz.
— Assim está bem, John. Vale a pena a regeneração se o prémio é uma mulher como ela.
Fez urna pausa e acrescentou:
—De qualquer maneira, não deves negar a tua ajuda a Carol. Seria portares-te como um cobarde. Agora já sabes qual é a minha opinião.
Deu meia-volta e afastou-se na escuridão deixando o rapaz sozinho. John ainda permaneceu um bom bocado no exterior, fumando cigarro atrás de cigarro. Não voltou para casa até que o avisaram que o jantar estava pronto.
Sentou-se à mesa e comeu em silêncio. Russ e Deborah não deixavam de o observar, mas cada um com uma expressão distinta: o primeiro, notando a luta que havia no seu íntimo; a rapariga, surpreendida com a súbita mudança de atitude.
Depois de jantar, o rapaz saiu para a varada porque desejava estar só. Mas não estava ali há muito tempo, quando Deborah foi ter com ele. A rapariga sentou-se num degrau, ao seu lado e, ao fim de um momento, perguntou:
— Que tem esta noite, John?
Ele encolheu os ombros.
—Nada. Porquê?
Os olhos de Deborah refletiam o fulgor das estrelas.
— Encontro-o pensativo, diferente do costume. Parece que tem um grande desgosto.
John riu para dissimular, mas mesmo ele notou que o seu riso soava a falso.
— Estou bem, asseguro-lhe. Mas, às vezes, sente-se uma tristeza sem se saber a razão. Talvez seja saudades do Texas; saí há muito tempo de lá.
—Por acaso não serão antes saudades de alguma rapariga de lá? — perguntou ela em voz baixa.
—Não, não tenho saudades de nenhuma mulher.
A mão de Deborah brincou distraidamente com a medalha que tinha ao peito.
— Mas, com certeza que teve aventuras amorosas.
Ficou espantado e só se lembrou de responder:
—Sou um homem.
A rapariga assentiu, mas parecia com pena.
—Pois claro, é um homem; com isto fica tudo dito.
A rapariga pôs-se em pé.
—Boas-noites, John.
—Espere, Deborah —disse ele segurando-a por um braço.
Ela olhou para o rapaz.
— Que quer? — perguntou.
John teve de fazer um grande esforço para murmurar:
—Se a tivesse conhecido antes, não teria tido aventuras.
Soltou o braço da rapariga que, depois de um momento de vacilação, desapareceu no interior da casa. John ficou só na varanda. 

Sem comentários:

Enviar um comentário