Nascera numa miserável cabana situada entre duas montanhas, crescera nela e ali morrera sua mãe. Viu passar as caravanas de emigrantes pelo vale que se estendia a seus pés, contemplou alguns assaltos de índios selvagens assim como as malfeitorias de ladrões de gado e assassinos que se dirigiam para o Oeste. Mas, no seu pequeno, mundo, na cabana onde tinha decorrido toda a sua vida, nada mudou.
O território onde estava situada essa cabana era o de Nevada. Ana nasceu em 1850, quando ainda aquelas terras dos Estados Unidos eram, de certo modo, um recanto de paz. Em 1870, tinha, pois, vinte anos.
E o país mudara muito durante esse tempo. Inventaram-se novas armas: o «Colt» e a «Winchester» de repetição. Os punhais, facas e navalhas da marca «Bowie» tornaram-se mais largos, afiados e eficazes. Os homens tiveram cada dia mais ambições e desejaram novas terras, novos horizontes e riquezas. O Oeste encheu-se de gente que ansiava por viver, ainda que tivesse de matar e, por fim, os Estados do Sul e os do Norte envolveram-se numa interminável e sangrenta guerra. Tudo isto no curto espaço de vinte anos.
As tribos índias eram atiradas cada vez mais para o Oeste e aniquiladas. O seu furor combativo crescia com as contínuas humilhações do homem branco. Descobriu-se o oiro e chegaram os assassinos de todas as partes do mundo. Nevada converteu-se num inferno.
No entanto, de tudo isto, Ana só do pai dava conta.
Sem sair jamais de um raio de duas milhas e redor da sua cabana, a ideia que tinha do mundo era fragmentária. Compreendia que os índios eram derrotados, porque as tribos pacíficas que habitavam nas montanhas, um dia, desenterraram a sua acha de guerra e lançaram-se na planície para combater os brancos. Desses guerreiros nunca mais se soube nada.
Ana deu-se conta de que o número de ladrões de gado e assassinos aumentava, por que os rebanhos que circulavam nas encostas das montanhas em busca de seus pastos eram cada dia mais frequentemente assaltados. De resto nada mais. A ideia que Ana tinha do mundo era somente esta.
Aos vinte anos, era uma rapariga alta, esbelta e morena, maravilhosamente formada e com um encanto natural nos seus movimentos que qualquer homem se teria sentido apaixonado por ela. Mas até ali não chegavam homens. O único era o seu pai.
Ana não sabia se era bom ou mau, justo ou Injusto. Não podia compará-lo com outros. Só sabia que vivia em contínua desconfiança e que de noite deixava a espingarda carregada ao alcance da mão. Teve de a utilizar uma só vez, quando um cavaleiro se acercou da cabana. O pai de Ana, sem avisar, descarregou-lhe um tiro entre as sobrancelhas e deixou-o imediatamente morto. Jantais souberam se aquele homem tinha vindo ali em som de paz ou de guerra, pois que não teve ocasião de pronunciar uma só palavra nem de fazer um qualquer gesto.
Em 1870, o pai de Ana tinha cinquenta anos. Não era velho nem novo, mas para uma terra onde havia que ser o mais forte, o mais rápido, o mais temerário, já pouco podia valer. Talvez por isso era tão desconfiado, e sustentava a teoria de que era preciso atirar primeiro e perguntar depois.
Viviam de um pequeno rebanho e dos produtos naturais do bosque próximo. A sua existência não podia ser mais sã, mas ao mesmo tempo mais primitiva e falha de horizontes. O pai de Ana ia a Forsite, a povoação mais próxima, duas vezes por ano e comprava roupas e munições. Nada mais. Uma vez abastecido de ambas as coisas, considerava-se dono do mundo e não voltava a sair das imediações da cabana. Quase nunca falava e não se sabia se tinha ambições ou não, se era um ser humano ou um animal dos bosques. Ana resistiu a esta vida, parecendo-lhe a mais natural do mundo, durante dezoito anos. Foi então que compreendeu que havia outras coisas mais para além do que a sua vista podia abarcar, e principiou a ter a sensação de que um dia acabaria louca. Havia, pois, dois anos que respirava, por assim dizer, a sua solidão e sentindo-se cada vez mais atabafada naquele estreito círculo.
Deu-se conta de que no mundo exterior havia, outras coisas quando aquele casal chegou montado no mesmo cavalo.
Não era um casal normal. Em primeiro lugar, ninguém anda tão empertigado sobre uma sela num dia de tormenta. Em segundo lugar, quando um homem e uma mulher se veem necessitados de montar o mesmo cavalo, o homem deve ir adiante e a mulher atrás, o que não acontecia neste caso. E em terceiro as personagens que montam um cavalo em trote curto não se movem de um lado vara o outro de uma forma tão grotesca.
Tudo isto pensou Ana, vendo-os avançar em direção à cabana. O seu pai, de espingarda empunhada, esperava, atento a qualquer contingência que lhe parecesse suspeita.
Tinha ganas de disparar, e não o tinha feito já, por ter reparado que a mulher montava na frente. O homem estava como protegido por detrás dela, e, para o matar, teria de atravessar primeiro a mulher. E até a um homem de tão frios sentimentos, como o pai de Ana, isso parecia uma indignidade.
Meteu a espingarda à cara, sem hesitações, e apertou o gatilho quando estavam já a umas trezentas jardas. Disparou somente por entre as patas do animal para os amedrontar, mas nenhum deles se moveu. O próprio cavalo devia estar tão estoirado que continuou a avançar, sem se assustar, desejoso de chegar àquela habitação humana onde o seu instinto lhe dizia que iria encontrar repouso.
Michael, o pai de Ana, ficou repentinamente
– Estão mortos... — sussurrou. — Mortos os dois e atados à mesma silha!
Principiou a correr até ao cavalo e deteve-o, segurando-o pelas rédeas bainhas. O animal não tentou fugir. Ana seguiu-o com a ligeireza de uma gazela, e pôde verificar que seu pai tinha razão.
Aquele homem e aquela mulher estavam mortos.
Vê-los era um espetáculo que confrangia o coração. Havia neles qualquer coisa de tétrico, de fantasmagórico, e ao mesmo tempo, de doce, porque o homem enlaçava nos seus braços a mulher parecia que lhe estava dando na nuca um beijo de despedida.
— Vai para casa, Ana. Nada tens a ver com isto.
— Mas, pai... Eles foram assassinados!
— Bem... e que mais? Em Nevada morrem centenas de pessoas assassinadas em cada dia. E não é por isso que o mundo acaba. Vai-te daqui!
Mas Ana não se moveu.
Continuava a olhar para o macabro casal. Tinham já possivelmente dois dias de mortos e começavam a cheirar mal. Alguém os tinha escarranchado sobre a sela, depois de lhes ter tirado a vida, e conseguira que se mantivessem eretos, atando-os a um engenhoso sistema de troncos colocados na sela. Porém a armação principiava a dar de si e a oscilar e por isso os trágicos cavaleiros se bamboleavam tão grotescamente. Formavam um jovem casal, de uns vinte e cinco anos cada um e vestiam bem. Ele, roupas de vaqueiro, de fino pano, ainda que manchadas de sangue seco. Ela vestia um vestido branco tão formoso como Ana ainda não tinha visto outro na sua vida. Por estar escarrachada, a saia rodada descobria parte das suas pernas, e por isso Ana deu-se conta de que tinha sapatos de tacão e que as suas pernas eram cobertas por um tecido fino que Ioga descobriu que era aquilo a que chamavam meias. A mulher, para mais ainda, levava uns pequenos brincos e um colar. Não obstante o ricto da morte, verificou que devia ser extraordinariamente formosa.
— Isto é a selvajaria maior que tenho visto em toda a minha vida — comentou Michael. — Quem terá organizado um espetáculo assim? Quem teria podido ultrajar dois cadáveres desta maneira?
Deu meia volta ao cavalo e viu mais alguma coisa.
O homem trazia um cartaz espetada nas costas com um punhal.
Ana, dominada por um obscuro sentimento, acudiu até ali para ver. Contemplou como seu pai descravava, com um puxão, um larguíssimo punhal «Bowie», capaz de ter atravessado os dois corpos, contribuindo assim para os unir. Recolheu então nas suas mãos o cartaz que o punhal segurava às costas do homem, e levou-o consigo.
Ana tinha aprendido a soletrar porque o seu pai a tinha ensinado. Com certo esforço, pôde ler o que ali se escrevia:
«Abraçados, amigos. Abraçados eternamente para que todos vejam que o vosso amor era sincero. Percorrei o mundo proclamando a vossa paixão até para além da morte. E se alguém perguntar quem os pôs assim, dizei-lhe que foi William Palmer.... O homem de quem ninguém se riu impunemente!».
(Coleção Bisonte, nº 61)
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