sexta-feira, 17 de agosto de 2018

CLF030.11 O chefe

Shady Dolan não se deteve diante da assombrosa descoberta. Ele já tinha suspeitado algo de anormal, quando começou a disparar. Tinha todos os fios da intriga na mão. e este era o decisivo que resolvia o mistério.
Saiu do seu esconderijo, protegido pelos disparos constantes dos seus aliados do Sul, bem oportunos como calculara, quando partira com Dodds antes de se aventurar naquela luta surda contra uma inteligência cruel e astuta como poucas.
Procurou com o olhar, febrilmente, Alice Lyman. Lançou um rugido de fera, ao perceber o seu corpo enlutado, estendido debaixo dum alpendre, com uma mancha vermelha sobre o peito e uma mão estendida que se agarrava desesperadamente a um pequeno livro de capas negras...
Lívido, cerrando os dentes, Shady correu para ela, agachou-se, pensando que ela ainda estaria viva, enquanto que no resto da rua, os pistoleiros e os aliados de Dodds se batiam violentamente.
Ainda não estava morta, como temera a princípio, mas a ferida da bala era profunda e Dolan tomou-a nos braços, procurando alguém a quem pudesse confiar o tratamento da abundante hemorragia que a ia despojando dos últimos vestígios de vida.
Naquele momento, uma voz rouca soou por detrás de si.
—Era assim que te desejava encontrar, Shady Dolan! É a minha oportunidade de te despachar deste mundo!
Voltou-se, indefeso com Alice Lyman entre os seus braços.
Era Burns, o gigantesco e barbudo assassino que o perseguira tão implacavelmente em Elmdale! Percebeu a arma, o dedo grosseiro principiou a apertar o gatilho e o sádico olhar do cobarde, pensou que ia morrer, indefeso às mãos de um simples pistoleiro sem inteligência. Aqueles olhos fundos e f e r o z e s não eram nem sequer humanos...
Foi então que soou a detonação. Burns estremeceu e o seu rosto cobriu-se de sangue que jorrava dum orifício que se abriu em plena testa. Caiu de bruços, soltando a arma que se disparou quando caiu no terreno. O sorriso cruel dos seus lábios ficou como petrificado no rosto imóvel.
Shady Dolan voltou-se, grato, para Mike Dodds, erguido na sela do seu cavalo junto do alpendre. O seu revólver ainda fumegava e olhava com repugnância o gigante tombado diante de Dolan. Dodds gritou-lhe:
— Deixe aí a rapariga, eu me encarregarei dela! Creio que ainda tem algo a fazer.
Dolan concordou, com os olhos a brilhar demoniacamente. Sim, ainda havia que fazer. Melhor do que uma luta entre irmãos, porque ela vestia de cinzento e ele de azul. Algo de mais benefício para a humanidade, como era liquidar uma cabeça astuta e cruel que planeara aquele audaz e genial golpe. Um golpe do valor de cem milhões de dólares em ouro e pedras preciosas. Cem milhões, astutamente introduzidos em Coffeyville dentro de selas de montar.
Shady Dolan sabia que tudo se precipitara. Muito mais depressa do que ele calculara. Avançou para a casa de azulejos vermelhos, a que ostentava o rótulo com o nome de Sidney Crooks. O ouro continuava brotando dos pequenos orifícios das selas.
Durante o tiroteio, os carregadores tinham-se dispersado, deixando abandonado o precioso material. Dolan, alto e inflexível, projetando uma sombra alta como a dum arcipreste quando o sol débil conseguiu furar por entre as nuvens cinzentas, aproximou-se passo a passo da casa.
Duma janela, soou uma detonação. Shady Dolan contraiu-se ao sentir uma queimadura ardente no braço esquerdo. Um pouco mais desviada e a bala ter-lhe-ia perfurado o coração.
Deteve-se e pareceu oscilar enquanto que o sangue ensopava a camisa. Por detrás da janela, a sombra moveu-se e adiantou a arma para repetir o mortífero disparo sobre Dolan. Nunca chegou a efetuá-lo. A mão direita de Dolan, parecendo não se ter deslocado, já apontava o revólver no ângulo preciso. Apenas apontou. O seu dedo apertou o gatilho urna única vez. Um só disparo, uma só bala, partiu contra aquela janela.
O vidro estilhaçou-se e pulverizou-se com a bala. Depois duma fração de segundo que se seguiu: seca detonação da arma, os derradeiros estilhaços do vidro caíram sob o peso dum homem que tombava para a rua. Um corpo que ficou imóvel, retorcido sobre o pó, a pequena distância do lugar onde o alto forasteiro de luminosos olhos azuis mantinha ainda o revólver erguido e fumegante, depois de saldar a dívida que tinha sido contraída naquela noite trágica de Fort Cooper.
— A dívida está paga, Albert Crooks — disse surdamente, depois dum silêncio.
Por trás de si, alguém se riu e uma mão se apoiou sobre o seu braço ferido.
— Vamos, Dolan — disse Dodds brandamente. — A ferida que esse canalha lhe provocou está a trazer-lhe delírio. Enganou-se no nome. Esse é Sidney Crooks, o irmão de Albert.
— Não, Dodds, não deliro. Na realidade, o seu inteligente lugar-tenente, Albert Crooks é este. Tem sido sempre, pelo menos desde que fez desaparecer o irmão Sidney Crooks e ocupou o seu posto, efetuando um sinistro jogo duplo.
— Mas, Dolan, Albert Crooks morreu naquela noite em Fort Cooper...
— Não, Crooks não morreu então. Na realidade, não vi senão um cadáver de bruços flutuando sobre um regato. Uma queda daquela altura, destrói as feições. Albert Crooks estava vivo. Era o único dos três, que vivia ainda... — aproximou-se do cadáver c arrancou a cabeleira postiça que ocultava os cabelos verdadeiros do cadáver. O cabelo negro de Crooks surgiu. — E vivia, porque desejava disfrutar os cem milhões de dólares...
— Albert Crooksl Como pode ser, Dolan?
— Planeou esta farsa ao ter conhecimento do «Profeta». Foi algo cuidadosamente preparado e sem dúvida é já isso que se deve o seu afastamento de Alice Lyman, apesar de a amar. Estava apaixonado por ela e no papel de Sidney podia demonstrar esse afeto. Por vezes, fazer dois papéis é perigoso, porque se confundem os personagens em momentos errados. Ele proferiu palavras esta manhã, que me recordaram as pronunciadas por seu «irmão» naquela noite de Fort Cooper. Eram idênticas. Portanto Albert não odiava Alice Lyman como pretendia simular, e naquele momento pensou ser Sidney seu irmão fantasma. Na realidade, nunca saberemos se Sidney existiu alguma vez ou foi uma pura criação do astuto Albert, em vista dos seus futuros projetos. Alguma vez os viu juntos, Dolan?
— Nunca.
— A sua ausência de Coffeyville enquanto Albert estava prisioneiro, fez-me refletir. Depois mencionou ter comprado as selas no Sul, em Tulsa, e o carregador informou-me que tinham passado em Wichita, ao Norte de Coffeyville, portanto no caminho de Fort Cooper. O tesouro tinha que estar escondido em algum lado. O ouro e pedras preciosas podem-se esconder de mil modos diferentes. As selas é um dos esconderijos mais engenhosos.
— Mas, como suspeitar de Albert Crooks? — gemeu Dodds, observando o rosto do morto que agora já deixava entrever o disfarce utilizado para alterar as feições. — Um homem em que eu depositava toda a confiança...
— Sim. Um homem que sabia melhor do que ninguém a existência do tesouro. Inteligente e ambicioso. Cruel também, até ao ponto de engendrar com Burns, um plano maquiavélico, para subornar alguns soldados do Forte. Corria riscos enormes, mas quem duvidaria que ele estava morto? Eliminou os seus companheiros friamente, para depois utilizar um dos seus pistoleiros para o simulacro da sua morte. Matou o que lhe fosse mais semelhante na estatura e cor, atirando-lhe um tiro sobre o rosto; vestiu o seu vestuário e lançou-o para o abismo. O logro era perfeito, mas faltava eu, a quem ele estupidamente tinha revelado dados para chegar a Coffeyville, com o intuito de dar uma aparência normal a tudo. Só precisava liquidar-me, para ficar com uma fortuna diante dele. Sem dúvida, Crooks pensou que eu era um enviado especial do Norte e então mandou matar o comandante Wilkers, meu único confidente.
— Céus, parece a obra dum louco... ou dum monstro —balbuciou Virgínia Hodgins, terminando de ligar o braço ferido de Shady.
— Crooks era ambas as coisas: um louco monstruoso e astuto, capaz de tudo pelo ouro. Quando teve conhecimento que o andavam procurando, supôs que fosse eu e ordenou a um seu cúmplice que avisasse Burns para me preparar urna emboscada. Já poderia estar morto a estas horas. Devo a minha vida à Confederação.
— A vida tem por vezes essas ironias — disse Dodds, amargurado. — Mas em troca, perdemos o ouro... depois de o termos diante de nós. Os soldados foram atraídos pelo barulho do tiroteio e tivemos que retirar para não provocar uma luta de morte.
— Talvez fosse melhor assim — suspirou Virgínia. —O Norte não necessita dele para a guerra e depois será utilizado para a paz.
— Estão certos de que ganharão esta guerra...
— Ganharemos — afirmou ela. Inclinou-se e beijou Dolan. — Shady, meu amor, devias-me ter avisado do tiroteio que ia surgir. Teria ido a teu lado.
— Não duvido
— Shady, conheço a tua decisão quando apontas uma arma...
— Sabes alguma coisa de Alice Lyman?
— Cura-se — disse Dodds, compadecido. — A pobre rapariga recebeu uma bala perdida, mas a ferida não é mortal.
— A sua aparição também me salvou a Vida. Deus a proteja.
— Inconscientemente, Alice compensou em parte o seu sacrifício ao vingar Doug.
Calaram-se. Já estava chovendo copiosamente e percebia-se o ruído dos cavalos militares, chapinhando as ruas de Coffeyville.
De repente, golpearam a porta e uma estentórea gritou:
— Abram, em nome do Governo da União! Abram, ou derrubaremos a porta.
Dodds abraçou a mulher. Depois, firme e decidido, altivo, pegou numa carabina, proferindo:
— Tudo está terminado. Vêm à minha procura...
— Espere! — Dolan interrompeu-o, erguendo-se. — Creio que não é para você, mas sim para mim...
Afastou-se suavemente de Virgínia Hodgins e abriu a porta. Um oficial e alguns soldados entraram.
— Shady Dolan? — indagou asperamente o oficial.
— Sim, eu mesmo. Shady Dolan, agente especial do Governo' da União, que confessa ter fracassado na missão que lhe confiaram. Vai prender-me por isso?
— Não. Por ser sulista, senhor Dolan.
—Não posso resistir, porque caso contrário lutaria contra os meus camaradas.
— Lamento não acreditar em si — disse o oficial. — Você é réu de traição e foi condenado à morte em Fort Cooper e voltará para lá, para que a sentença seja executada.
— Um momento, oficial — o militar voltou-se surpreendido. Um vulto alto e erguido surgiu enquadrado no meio da porta.
Uma mão enluvada, adiantou-se, mostrando um salvo-conduto. A mesma voz familiar, que fez estremecer Dolan, acrescentou ironicamente:
— Creio que é tempo de deixar respirar tranquilamente o nosso jovem herói, capitão. Sou o juiz militar de Fort Cooper, Archibald Hodgins, e venho confirmar a declaração de Shady Dolan. É agente especial do nosso Governo, em missão secreta.
— Pai! — Virgínia abriu exageradamente os olhos ao ver aparecer, altivo e seguro, como sempre a figura familiar. —Não é possível que estejas aqui... Oh, papá, não me olhes desse modo...
— Está tudo em ordem — concordou o capitão, saudando rigidamente o juiz. — Não compreendo o que se passa, mas esse documento confirma realmente, as afirmações de Shady Dolan. Senhor Dolan, desculpe a minha atitude...
— Oh, não se preocupe — riu Shady, respirando livremente. — Já tantos me tomaram por sulista que eu próprio por vezes, ignoro a minha identidade. Por favor, juiz Hodgins, como soube que estávamos aqui... e como conseguiu obter esses documentos?
—É tudo muito simples—sorriu Hodgins.—E tenho de lhe apresentar as desculpas pela minha sentença de Fort Cooper. Na noite da sua fuga, o comandante Wilkers, temendo pela sua vida, revelou-me a verdade e entregou-me estes documentos. Eu sou muito duro, mas absolutamente leal para com os amigos. Você, passou de meu inimigo mortal para meu companheiro de armas. Em Elmdale, jamais pensei entregá-lo, mas sim em levá-lo para lugar seguro, quando a minha filha teve impulsos tão... tão pouco filiais para comigo. Espera, não te vou reprovar. Isto permitiu que Dolan fracassasse num dos aspetos da sua missão e que tenha triunfado em outro muito mais espantoso, como era o caso da dualidade de identidade de Crooks e o seu fabuloso roubo de cem milhões. Quanto a esses senhores, creio que são também leais nortistas que têm auxiliado eficientemente.
— Oh, são os mais leais auxiliares que tenho tido nesta luta — apressou-se Dolan a afirmar, olhando Dodds fixamente.
— Graças a ele continuo vivo, e tenho pena que Dodds e seus amigos se desloquem para o Sul, impedindo que nos víssemos frequentemente.
— O Sul? — Hodgins franziu a testa, receoso. — Que quer isso dizer?
— México, ou ainda mais para baixo, juiz — riu Dolan. Dodds e sua mulher fizeram um gesto de amizade, enquanto Hodgins enfrentava altivamente a filha.
— E agora, senhorita Hodgins, que tem a acrescentar à intolerável agressão que cometeu ao seu próprio pai, em Elmdale? — indagou num tom duro e penetrante como se estivesse no tribunal.
Virgínia estremeceu, procurando instintivamente o amparo dos braços de Dolan, e baixou os olhos.
— Pai, eu... queria... eu já o amava alguns minutos depois de o conhecer. O amor é assim, pai, não podemos julgá-lo friamente e...
— O amor? — Hodgins franziu o rosto, olhou para Shady Dolan e para a filha, e esboçou um sorriso. — Bom, filha, não sei o que viste neste vigoroso californiano, mas se ele é um bom yanque, é já alguma coisa. Podes crer que o meu veredicto é a absolvição total...
Ampliou o sorriso e apertando o ombro de Dolan, concluiu:
— Sede felizes, jovens. Bem o merecem, depois de tudo o que tem sucedido...
Foi a primeira vez que Shady Dolan, o californiano misterioso, pensou que até um juiz como Archibald Hodgins podia ser mais humano do que aparentava.
FIM

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