sábado, 19 de maio de 2018

BUF162.2 Um índio bem formado

A partir do quarto ano da permanência no Este de Tomahawk — agora chamava-se John Tomahawk por exigência da civilização que o rodeava —, as noticias que lhe chegavam do Colorado eram cada vez menos frequentes.
Se não fossem os conselhos do major Lenver, o jovem «cheyenne» teria abandonado o Este para se dirigir rapidamente para as terras dos seus antepassados. Mas ao sair do hospital, onde o haviam curado por completo das febres que tanto lhe tinham feito perigar a vida, John Tomahawk, aconselhado pelo major, havia iniciado o curso de Direito numa universidade pouco tempo antes inaugurada, não longe da cidade de Chicago, precisamente num ponto chamado Evánston.
O filho de «Águia Corredora» havia-se aclimatado rapidamente à jovem civilização que o rodeava. Curioso por natureza, John estudou com afinco, demonstrando tanto aos professores como aos seus condiscípulos uma inteligência invulgar, uma sã ambição de saber e uma vontade a toda a prova. Não era o único «pele-vermelha» que convivia com os brancos naquele centro de estudos. Alguns outros, de várias tribos, haviam sido convidados pelos chefes brancos para que conhecessem as leis americanas e pudessem assim verificar as boas intenções que o Governo dos Estados Unidos tinha para a então perigosa política índia.

Mas John também se deu conta de que nem todos os americanos compreendiam e sentiam o problema de maneira idêntica à dos membros do governo; ali, inclusivamente, o jovem notou, desde o princípio, uma oposição que por vezes tocava as raias do desprezo por parte de alguns estudantes brancos, que se sentiam visivelmente agastados com a presença dos jovens índios naquele centro de estudos.
Tomahawk teve de lutar muito para chegar a compreender com exatidão os sentimentos do homem branco. Mas, a pouco e pouco, pôde comprovar o ânimo tremendo da raça dos «rostos-pálidos» e, ao mesmo tempo, verificar que o motor que geralmente movia aquela força era, pura e simplesmente, uma ambição desmedida. O homem branco amava a riqueza, a comodidade e, sobretudo, o dinheiro. Para ele, a Natureza era apenas um meio para lograr os seus fins. Era bastante raro encontrar nalgum deles aquele sentido de entrega espontânea ante as maravilhas naturais que o «pele-vermelha» parecia descobrir a cada instante. Para o homem branco, tudo era motivo de exploração; inclusive o estudo. E, assim, pôde Tomahawk surpreender mais de uma conversação em que condiscípulos seus, de raça branca, calculavam já os lucros que lhes iam produzir as defesas dos pleitos, uma vez que se houvesse convertido em homens de leis. Naturalmente, John também conhecia outros rapazes de raça branca que não pensavam daquela forma tão egoísta. Mas estes pertenciam à minoria, e o índio teve de chegar à triste conclusão de que ia ser completamente impossível deter a força que empurrava aqueles jovens e de que, mais tarde ou mais cedo, os seus irmãos de raça, os «peles-vermelhas», acabariam por perder definitivamente a partida.
Mas nem por isso perdeu a esperança; pelo contrário, continuou a estudar com entusiasmo redobrado, pensando que as leis que aprendia podiam servir, no futuro, para estabelecer relações de amizade entre ambas as raças, sempre que os índios se aclimatassem à civilização dos «rostos-pálidos».
Havia uma rapariga que estudava leis na mesma universidade. Chamava-se Alisha Silk e era loira como o oiro, com uns olhos de um azul puríssimo e um rosto simpático eternamente animado pela alegria que lhe brotava dos lábios bem desenhados. Desde o primeiro instante, a jovem sentiu-se irresistivelmente atraída para Tomahawk; e ambos se converteram em bons amigos, visto que o major Lenver havia prevenido o rapaz para que evitasse, na Medida do possível, qualquer aproximação das jovens brancas com Intenções amorosas. Lenver estimava muito Tomahawk e dava-lhe sempre conselhos que lhe permitissem evitar quantos obstáculos se apresentassem no seu caminho.
Depois das aulas, John e Alisha costumavam passear pelos jardins que rodeavam a universidade e, chegavam, inclusivamente, a visitar as margens do lago Michigan. De ali contemplavam a imensidade da água, em cuja superfície se refletia um céu normalmente coberto de nuvens, nunca comparável com aquele que o jovem índio tinha visto na sua terra natal. Costumavam sentar-se perto da água e ali, entusiasmados, falavam das matérias que estudavam, discutiam sobre temas diversos e, sempre, invariavelmente, a conversação ia parar à mesma encruzilhada: ao futuro do povo índio e às relações que teriam de se estabelecer entre os «peles--vermelhas» e os «rostos-pálidos».
Naquela tarde, enquanto o sol ia declinando lentamente à sua retaguarda, os dois jovens, que haviam conversado durante bastante tempo, permaneciam em silêncio, como se estivessem a mil quilómetros um do outro, contemplando, cada um a seu modo, as águas do lago Michigan, e mergulhados em reflexões que, todavia, tinham a mesma misteriosa origem.
Jamais se havia cruzado entre eles uma palavra que significasse algo relacionado com amor. Mas sem que eles mesmos se dessem conta, de uma maneira dissimulada e arteira, os seus sentimentos tinham ido evolucionando com lentidão, como se o fenómeno amoroso pretendesse surpreendê-los de repente; e nada pôde evitar que a mútua atracão semeasse nos seus jovens corações uma esperança em algo que parecia, de todos os pontos de vista, completamente irrealizável.
Alisha Silk admirava aquele jovem índio, alto e robusto, de rosto nobre e olhos escuros, cheios de uma misteriosa e distante luz, que parecia proceder de um mundo que ela jamais poderia alcançar. Pela sua parte, Tomahawk admirava a beleza serena da rapariga, a ternura infinita do seu coração e aquela sensibilidade que jamais havia conhecido nas jovens índias; e pensava, sempre com tristeza, que, mais tarde ou mais cedo, um outro homem gozaria plenamente da companhia daquela jovem tão deliciosa, da sua circunstancial companheira.
De súbito, ela voltou-se para ele e olhou-o, sorrindo como sempre.
-- Como eu gostaria de conhecer o Oeste, John! —exclamou.
Tomahawk olhou-a por sua vez, sorrindo também.
— Nada mais fácil, Alisha — retorquiu. — Quando acabarmos os estudos, convidar-te-1e para que venhas conhecer a minha tribo; daremos juntos passeios por aquelas terras do Colorado, ao longo do Arkansas Alvar, subiremos pelas montanhas e percorreremos a cavalo as planícies onde pastam as manadas de bisontes.
— Como isso deve ser belo, John!
— Não há dúvida de que o é, Alisha. Mas estou certo de que para ti tudo isso representará apenas a satisfação de um capricho sem importância. Estás acostumada a viver nestas grandes cidades, num mundo que é completamente diferente do meu.
—Crês que não me aclimataria ao teu mundo?
— Seria impossível, minha amiga. Muitas vezes, confesso-to agora, vi-te mentalmente entre os da minha tribo, habitando com eles; e tive de repelir a ideia imediatamente, por a considerar completamente irrealizável. E triste que um índio tenha de confessar que vós, os de raça branca, sois, dentro do seio da família, muito mais humanos do que nós. E triste confessá-lo, mas é verdade.
— Que queres dizer?
— Verás, Alisha. Falámos muitas vezes da brutalidade do «rosto-pálido» em muita das suas ações; mas eu pude comprovar aqui, nas vossas grandes cidades, que a mulher é muito mais livre do que entre os índios, que é mais considerada e sempre e incondicionalmente respeitada. A mulher — acrescentou após uma curta pausa — é, para o esposo «pele-vermelha», apenas uma besta de carga. Ela prepara a comida, cuida das crianças, cose e arranja a tenda, esquarteja as peças de caça que o guerreiro lhe leva, aproveita e seca as peles, trata dos cavalos... enfim, faz tudo. Compreendes agora?
— Claro que compreendo, John. Mas acaso julgas que a mulher da minha raça não trabalha?
—É muito diferente, Alisha. Vós, mulheres brancas, podeis falar com os homens, fazer-lhes frente, inclusive. Isso seria completamente impossível entre a gente da minha raça. Uma mulher deve calar e falar apenas quando o marido lhe dirige a palavra... e, mesmo então, não deve manifestar a sua própria opinião. Já te disse antes, querida amiga, que a mulher índia é apenas um animal de carga e um ser escravizado que permanece nesta condição até à morte. Ela olhou-o com fixidez.
— Isso quer dizer que vós. índios, sois incapazes de vos apaixonardes?
— Não, isso não. Há um período maravilhoso que, ao recordá-lo, me faz pensar um pouco nos vossos costumes. quando o jovem índio vai em busca de sua esposa, quando ambos partem da tribo e abandonam a sua aldeia para fazerem uma longa viagem, algo parecido com aquilo a que vós chamais viagem de núpcias. Só então o índio se pode comparar ao «rosto-pálido». sendo até mais sensível. E isso porque, abandonando os seus hábitos guerreiros, se converte num ser que ama. Só então, Alisha, o homem serve a sua esposa; colaboram em tudo, fazem conjuntamente as coisas mais incongruentes, ajudam-se entre si, vivem numa comunhão de ideias e numa felicidade sem limites. Cavalgam ou navegam pelo rio numa canoa e detêm-se para formar o seu pequeno acampamento. O homem monta a tenda e a mulher ajuda-o, o homem caça e ambos esquartejam os animais, salgam a carne e curtem as peles. Mas, infelizmente, isso dura muito pouco. Quando o casal regressa ao seio da tribo, o homem esquece completamente tudo o que fez e reúne-se com os guerreiros, prepara as caçadas ou as expedições bélicas; e a mulher, impelida pela força tremenda do costume, converte-se num ser dócil, numa espécie de pequeno animal, submisso e obediente, que vive aferrado à recordação das poucas luas em que pôde compartilhar o verdadeiro amor e a sincera amizade com o homem que se transformou depois e que em nada se parece àquele que a havia acompanhado ao longo do rio ou que escalara, juntamente com ela, os cumes das mais altas montanhas.
Alisha sorriu.
—É maravilhoso o que me acabas de contar, Tomahawk; mas enganas-te se crês que as coisas são diferentes entre os da minha raça. Talvez haja menos poesia nas nossas relações, mas costuma passar-se o mesmo. O homem e a mulher que regressam dessa viagem de núpcias já não são os mesmos depois de alguns meses. Ele vai para o seu negócio ou para o seu trabalho, e ela fica em casa a tratar das crianças e do arranjo do lar. Talvez possa discutir com o marido e até fazer-lhe frente, como disseste há pouco, mas, no fundo, se reparares bem, as coisas são muito parecidas e o resultado, infelizmente, acaba por ser o mesmo.
Ela pôs-se de pé, pois começava já a fazer-se tarde e vinha do lago uma bruma húmida e desagradável. O jovem índio ergueu-se também e ambos, como sempre costumavam fazer, voltaram pelo caminho que os conduziria à cidade. Continuaram a falar do mesmo assunto, conversando amistosamente, até que chegaram junto da casa que Alisha Silk habitava. Ali, com um encantador sorriso nos lábios, a jovem estendeu a mão ao seu acompanhante.
— Até amanhã, John — disse: e, depois, acrescentou: — E não esqueças que a civilização, por debaixo da sua aparência, não libertou o homem do seu selvagismo. Decorrerão muitos, muitíssimos anos, antes que a Humanidade inteira encontre o verdadeiro caminho e que os seres humanos se respeitem como devem.
— Até amanhã, Alisha. E muito obrigado por tudo.
Esperou que ela desaparecesse por detrás da porta e, depois, começou a andar, dirigindo-se lentamente para a residência onde, em companhia de outros índios, vivia. Enquanto caminhava, o jovem mal olhava à sua volta, ainda sugestionado pela presença encantadora da jovem, experimentando uma sensação que lhe custava a definir e que, ao mesmo tempo, lhe causava um desassossego que tocava as raias do medo.
A recordação das palavras que o major Lenver lhe havia dito voltou a apossar-se do seu espirito atormentado. Não, de modo algum devia deixar que os seus sentimentos prosseguissem por aquele caminho perigoso, visto que havia notado que estava a apaixonar-se, de uma maneira irreprimível, pela jovem Alisha. Pensou que a melhor coisa que tinha a fazer era procurar qualquer motivo subtil para a não ver com tanta frequência, para evitar os passeios que davam juntos e para estabelecer entre eles o intransponível abismo que devia existir.
Estava quase a chegar à casa onde se alojava quando, de repente, dois homens o chamaram do outro lado da rua. Tomahawk voltou-se, reconhecendo imediatamente dois dos estudantes que já estavam a concluir o curso de Direito e a quem tinha visto algumas vezes na universidade. Amável como sempre, atravessou a rua e, poucos instantes depois, estava junto dos dois jovens.
— Olá, John! — exclamou um deles.
Trocaram um aperto de mão e Tomahawk sentiu-se envaidecido por estar junto dos brancos. Havia notado, havia algum tempo, que o vazio se ia estabelecendo cada vez com maior intensidade à volta dos poucos índios que faziam os seus estudos em Evanston. Não compreendia porquê, e agora sentia um certo regozijo ao comprovar que aqueles dois jovens precisavam da sua companhia, embora estivesse muito longe de compreender os motivos.
— Vamos tomar qualquer coisa naquele bar — disse um deles. — Temos de falar contigo, rapaz.
— Muito bem — concordou Tomahawk.
Sentaram-se no estabelecimento, numa das mesas do fundo. Então, os dois jovens apresentaram-se. Um deles, o mais alto e forte, chamava-se Roger Shaw; o outro, baixinho e um tanto gordo, respondia pelo nome de Archie Odeen.
— Queríamos perguntar-te algumas coisas — disse Roger Shaw, quando lhes trouxeram as bebidas para a mesa. — Ouvimos dizer que pertences à tribo dos «cheyennes». E verdade?
— Sim, é verdade — retorquiu John, com um sorriso amável nos lábios. — Meu pai é o chefe da tribo.
— Muito interessante — interveio Archie Odeen. — Como deves saber, estamos a terminar os nossos estudos; e podemos dar-te uma notícia em primeira mão: uma importante Companhia acaba de contratar os nossos serviços para quando sairmos de Evanston. E, precisamente, segundo nos disseram, vamos trabalhar no estado do Colorado, onde creio que a tua tribo tem o seu acampamento estabelecido.
--- Assim é. Nós, os «cheyennes», vivemos no outro lado do Arkansas River, embora, na realidade, controlemos todo o estado. Assim se estabeleceu no tratado que o meu pai e o governo assinaram há mais de quatro anos.
— Já o sabíamos. Encontrámos uma cópia desse tratado na biblioteca da universidade. O que nos interessa verdadeiramente é conhecer alguns pormenores da região, o número de homens que há na tua aldeia e algumas outras coisas mais. Claro que, se não quiseres, não és obrigado a responder-nos.
— Por que não havia de o fazer? — admirou-se o jovem índio. — Estou, pelo contrário, muito contente por vos poder ajudar.
—És muito amável -- disse Archie Odeen.
Começaram então a fazer-lhe perguntas. Roger havia empunhado um bloco e anotava cuidadosamente o que o jovem índio ia dizendo. Este, no fundo, fazia tudo quanto podia para resolver as dúvidas daqueles dois rapazes. Depois de falar quase exclusivamente com a jovem Alisha, sentia-se satisfeito por o poder fazer com homens que, no fim de contas, se iam converter em importantes advogados e que, com toda a certeza, compreenderiam, depois das suas explicações, a maneira de tratar com o povo «cheyenne».
A reunião durou cerca de duas horas; e Archie, enquanto o seu amigo Shaw escrevia sem parar, ordenou que lhes servissem o jantar. Comeram amistosamente; e continuaram a perguntar a John muitas coisas mais, até o jovem índio lhes proporcionar uma informação completa sobre o seu povo.
Tomahawk compreendia a curiosidade daqueles dois «rostos-pálidos» e satisfê-la o mais completamente que pôde. Despediram-se depois como bons amigos e John encaminhou-se de novo para o seu domicílio, onde se pôs a estudar até perto da meia-noite, tentando afastar do cérebro a imagem de Aliska Silk que, contra a sua vontade, parecia refletir-se a todo o momento em cada objeto da habitação onde o jovem índio vivia.
Ao longo daqueles quatro anos, desde que fora estabelecido o caminho para que os colonos brancos pudessem atravessar as terras dos «cheyennes», haviam-se realizado muitas inovações; entre elas, com a aprovação de «Aguia Corredora», estava a criação de um pequeno centro onde os brancos podiam deter-se para montarem o seu acampamento durante algumas horas, antes de prosseguirem o seu caminho, paralelo durante muitos quilómetros ao curso sinuoso do Arkansas River.
*** Planos para destruir a paz
E fora precisamente junto do rio, e não muito longe do acampamento dos «peles-vermelhas», que esse centro havia sido estabelecido. Ao principio, aquele lugar havia servido também de local de estacionamento de um pequeno destacamento das forças do exército, um pelotão de cavalaria sob o comando de um oficial, que estava ali para que o comportamento dos colonos que atravessavam o território índio pudesse ser controlado de uma maneira precisa. Mas, depois, com o decorrer dos anos, ao verem que nada de desagradável ocorria, as forças de cavalaria acabaram por se retirar e só ficara naquele lugar um pequeno grupo de barracões de diferentes tamanhos, onde se assistia e ajudava os colonos de passagem para o Oeste.
Mas, um belo dia, chegaram ali dois veículos que já não prosseguiram caminho. Na realidade, observando de perto os carromatos, ter-se-ia podido adivinhar imediatamente que os homens que os tripulavam não tinham, nem remotamente, qualquer intenção de continuarem o caminho para a Califórnia. O grupo era formado por três homens jovens, armados até aos dentes, e por outro de meia idade, alto e forte, com as fontes branqueadas por prematuras cãs, vestido elegantemente e em cuja cara se liam uma inteligência e •uma astúcia pouco comuns.
Desde o primeiro momento, aquele homem, chamado Archibald Delastone, teve a preocupação evidente de se aproximar o mais possível dos índios. Levou-lhes numerosos presentes, saudou amavelmente o chefe «Águia Corredora», o seu conselho de anciãos e os seus mais célebres guerreiros, e, dotado de um espírito observador e analítico, não tardou a perceber, rapidamente, as divergências que existiam no seio dos «cheyennes».
Desta forma, pôde depois, reunido com os outros três, forjar um plano que já devia ter estudado detidamente muito tempo antes. Pondo em prática a sua extraordinária habilidade, pôde, por fim, travar relações amistosas com «Nariz Achatado» que, a partir de então, passava longos períodos, sobretudo durante a noite, na casa em que Archibald Delastone convertera um dos primitivos barracões daquele centro de auxilio aos colonos.
Umas vezes por outras, o velho guerreiro fazia-se acompanhar de seu filho. Juntos, bebiam alegremente o uísque que Archibald lhes proporcionava sem regatear e conversavam animadamente durante longas horas, de tal forma que Delastone não tardou muito a conhecer os propósitos dos dois índios, comprovando definitivamente o estado de rebeldia que fervia no seio da tribo «cheyenne».
Entretanto, aproveitando as viagens dos colonos, Archibald havia enviado para algumas zonas do território, camuflados nos carromatos que se dirigiam para a Califórnia, alguns especialistas em mineralogia procedentes do Este. Pôde assim assegurar-se de que as suas previsões não haviam sido infundadas, pois quando os especialistas voltaram para junto do Arkansas River, para lhe entregarem os bocados de mineral que haviam encontrado na parte alta das montanhas, compreendeu que havia nelas a suficiente quantidade de prata para o converter num dos homens mais importantes de toda a União.
Na realidade, Archibald Delastone havia chegado ao Oeste com uma ideia fixa. E essa ideia começara a germinar-lhe no cérebro no dia em que ouvira um velho pesquisador de oiro, um bêbado empedernido que frequentava as tabernas de Chicago, falar daquelas montanhas, na região do Colorado, de onde pudera escapar milagrosamente. O velho pesquisador afirmava que as montanhas, por entre as quais corria o Arkansas River, estavam cheias de minério de prata em quantidade incalculável. Mas também assegurava que muitos dos seus companheiros jaziam agora naquela região distante, onde haviam sido enterrados à pressa por outros pesquisadores. E algum deles, se ainda vivesse, poderia dar então uma ideia aos seus ouvintes do estado em que se encontravam os cadáveres dos aventureiros que haviam sido surpreendidos pelos «cheyennes».
Dando-se conta de que o tratado assinado com os «cheyennes» lhe ia ser de grande utilidade, Archibald Delastone não hesitara um momento; e, depois de contratar três pistoleiros para o protegerem, dirigira-se para ali e começara a fazer investigações para verificar se as palavras do velho ébrio tinham algo de verdade. Agora já o sabia, e, por isso, foi captando a amizade do grupo rebelde dos «cheyennes», que, encabeçado por «Nariz Achatado» e por seu filho «Raposa Astuta», podia ser--lhe de grande utilidade para conseguir os seus inconfessáveis propósitos.
Naquela noite, entre libações sem fim, Archibald deixava que os dois «peles-vermelhas» se explicassem, que lhe manifestassem quanto odiavam «Águia Corredora» e que lhe dessem uma ideia da intensidade com que desejavam a morte do velho chefe, que teria de ser suprimido antes que o seu filho, que se encontrava no Este a estudar leis, regressasse.
—E por que não podeis fazê-lo já? — perguntou Delastone.
—É difícil, amigo «rosto-pálido» — retorquiu «Nariz Achatado». — Eu conto com a amizade de bastantes guerreiros da minha tribo, mas isso não chega. «Águia Corredora» continua a ser o chefe, e se o matássemos seriamos castigados inexoravelmente. A morte de um chefe é condenada com as torturas mais horríveis que um homem possa conceber.
Archibald assentiu com um gesto.
— Tudo se pode arranjar, «Nariz Achatado» — disse, depois de uma curta pausa. — O importante é que as coisas sejam bem feitas. Eu poderia proporcionar-te o meio de eliminares «Águia Corredora». Que te parece?
As pupilas de «Nariz Achatado» brilharam como carvões incandescentes.
— A tua língua diz a verdade, «rosto-pálido»? — inquiriu.
— Certamente. Mas eu preciso, se te converteres no chefe dos «cheyennes», de algumas garantias, meu amigo.
—Quais?
— Eu poderia assinar um tratado secreto contigo, «Nariz Achatado» — disse o branco. — Mas seria necessário que tu deixasses que um grupo de homens trabalhasse nas montanhas.
— Para quê?
— Para procurar prata. Não te importunaríamos absolutamente nada. As tuas terras e os teus territórios de caça ficariam completamente livres. As caravanas continuariam a passar pelo caminho que vós haveis marcado; mas um grupo de homens, sob as minhas ordens, extrairia prata das montanhas. E tu converter-te-ias no chefe da tribo — sublinhou Delastone.
— Preciso de algo mais — disse o índio, astutamente.
—De mais ainda?
— Sim. O meu povo é pobre, rosto-pálido». Cada vez mais pobre. Os guerreiros estão furiosos por não poderem pelejar como dantes. Tu poderias encontrar a maneira de nós podermos atacar, de vez em quando, alguns dos colonos ricos que atravessam o território. Eu sei que se nós o fizéssemos abertamente os «facas longas» não tardariam a apresentar-se aqui; e o meu povo já não é tão forte como era. Se tu fizesses que a tua inteligência trabalhasse a nosso favor, poderias ter liberdade absoluta para extrair quanta prata desejasses. E converter-te-ias assim num homem poderoso, não esquecendo jamais que os teus amigos, os peles-vermelhas, te haviam ajudado.
— De acordo, «Nariz Achatado». Deixa que encontre uma maneira de arranjar o que desejas. Não creio que seja muito difícil. Mas, agora, para te demonstrar a minha boa fé, vou proporcionar-te o meio de acabares para sempre com «Águia Corredora». Vou dar-te um frasco que contém uma substância que adormecerá o teu chefe para sempre. Verte-a com cuidado na sua comida e a sua vida apagar-se-á sem perda de tempo. Em seguida, volta cá para me comunicares o ocorrido. Quero ver-te convertido no chefe dos «cheyennes». E, entretanto, pensarei na maneira de permitir que assaltes, de vez em quando, algum carromato. Faremos as coisas de maneira que o exército não possa suspeitar de vós, nem tão-pouco de mim. Mas não esqueças — acrescentou mudando o tom da voz, que se fez áspera — que Archibald Delastone não admite brincadeiras. E se depois de te haver ajudado tu me traíres, chamarei tantos soldados que o teu povo desaparecerá da face da terra. Ou então, no melhor dos casos, sereis encerrados em «reservas», onde não só não gozareis de liberdade alguma como passareis fome e privações e trabalhareis como escravos. Compreendeste-me, não é verdade?
- Compreendi-te, amigo branco. «Nariz Achatado» apenas tem uma palavra. Consegue-me a morte silenciosa de «Águia Corredora», proporciona-me a possibilidade de atacar as caravanas sem que suspeitem de mim e eu, o novo chefe, deixarei que os teus homens escavem as montanhas e tirem toda a prata que nelas houver. «Nariz Achatado» falou.
— Perfeitamente: Agora podes voltar à tua tribo. Toma este frasco e faz o que te disse. Procura, sobretudo, que ninguém te veja.
— Descansa, amigo «rosto-pálido». Assim farei.
Quando os índios abandonaram a casa, Archibald Delastone esfregou as mãos. A primeira parte do seu projeto estava em marcha. Agora não lhe restava mais que esperar a chegada dos dois jovens advogados, dois rapazes ambiciosos, a quem tinha feito um convite para trabalhar para ele; eles conseguiriam que tudo quanto fizesse fosse sublinhado por uma legalidade absoluta. Quanto aos índios, teria sempre na mão a maneira de os dominar; sobretudo... aqueles dois estúpidos que acabavam de sair dali. E, mais tarde ou mais cedo, os «peles-vermelhas» dar-se-iam conta de que nada poderiam contra os homens que tinham a seu lado o poder e a força de um exército que acabaria, irremediavelmente, por fazer desaparecer a raça índia das férteis terras da América.
Naquela noite, Delastone mal pôde dormir. Estava tão impaciente, tão intranquilo ante a próxima realização dos seus sonhos, que se voltou continuamente no leito, vendo desfilar ante os seus olhos o panorama da riqueza escondida no interior das montanhas. Apoderando-se dela, converter-se-ia num dos homens mais importantes do país e, sobretudo, acalmaria a ambição que lhe pulsava no peito com uma força que já não podia dominar.
 

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