sábado, 12 de maio de 2018

BIS133.6 Um refúgio em braços amigos

Enquanto galopava, Franck Bryce pensava e repensava nos últimos acontecimentos. Confundia-o o veneno usado pelo índio nas flechas assassinas, pois não era costume os selvagens daquelas paragens utilizarem uma droga de tão rápidos efeitos.
Várias vezes já vira morrer homens vítimas de flechas disparadas pelos indígenas, e a agonia, lenta e dolorosa, fora sempre precedida de convulsões. Knox, porém, expirara-lhe nos braços, de uma morte rapidíssima, apesar de apenas ferido no ombro esquerdo...
Tudo isso o levava a pôr de parte a ideia do selvagem solitário e louco de que a princípio suspeitara. Agora inclinava-se mais para um homem branco, cauteloso e inteligente. Já não procurava, portanto, as marcas de uns cascos sem ferradura, como os dos cavalos dos peles--vermelhas, nem sinais de mocassins, no caso de o assassino andar a pé.
Os seus olhos procuravam, sim, os sinais mais profundos de um cavalo, ou cavalos, ferrados, ou pegadas humanas que denunciassem usar o que as deixara botas de montar. Também não punha de parte a possibilidade de o autor dos assassínios ser componente da própria caravana. Pelo contrário, quase tinha a certeza de que assim acontecia.
A sua expedição daquele dia tivera apenas o fim de convencê-lo de que os ataques não tinham vindo do exterior, pois só assim poderia começar a investigar entre os mórmones.
O rapaz galopava separado da caravana, com os olhos postos no chão, observando a erva, as poucas moitas, a posição do cascalho quando atravessava zonas pedregosas, mais abundantes agora que se aproximava das Rochosas.
Uma hora depois de desviar-se dos carros na direção do Leste, deteve a montada. De pé nos estribos, perscrutou o horizonte em todas as direções e depois observou, batendo amigavelmente no pescoço do alazão:
— Tenho a impressão de que perdemos um tempo precioso, amigo. Talvez o homem que procuramos esteja entre os seus irmãos, os mórmones, mas... É tudo tão estranho! Que necessidade havia de matar assim o pobre Knox, uma vez que já estava de antemão condenado? E o bom Josiah? Que eu saiba, não tinha inimigos na caravana... Quanto ao outro... Como se isso não bastasse, ainda morreram mais três na confusão do tiroteio. Seis homens de menos são demasiados.
De súbito Bryce deu uma palmada na testa e exclamou:
— Santo Deus! Como não me lembrei antes? Tem que ser isso... fui um estúpido!
Puxou as rédeas, disposto a regressar à caravana a todo o galope, mas deteve-se de novo, preso de outra ideia: bem vistas as coisas, não perderia nada se se demorasse mais uma hora e demonstraria a si mesmo que o estranho assassino não era um pele-vermelha.
Apeou-se e reuniu um montinho de folhas secas e um ou outro tronco de arbusto, aos quais pegou fogo.
Em seguida, servindo-se da manta que tirou do cavalo, cobriu um instante a fogueira e destapou-a depois, deixando elevar-se uma nuvem delgada de fumo. Repetiu a operação e o fumo foi-se erguendo, sucessivamente. Por fim enrolou a manta e arrumou-a de novo no arção da sela, dizendo para consigo que, no caso pouco provável de haver indígenas nas proximidades, estes não tardariam a dar sinais de vida, atraídos pelos sinais de fumo.
Sentou-se numa pedra e dispôs-se a esperar pacientemente durante a hora que fixara como limite. Enrolou um cigarro, com o ouvido atento aos ruídos que pudessem assinalar-lhe a aproximação de alguém, e de vez em quando olhava para o cavalo, pois sabia que o animal se aperceberia antes dele se algum perigo os ameaçasse.
Decorridos os sessenta minutos, a pradaria continuava envolvida no mesmo silêncio. Pisou as cinzas e gritou ao cavalo:
— Acabou-se o aborrecimento, amigo! Agora toca a recuperar o tempo perdido. Palavra que tenho saudades da rapariga... é a mulher mais bonita que já vi, sabes?
Partiu de novo a galope, desta vez com a cabeça levantada e os olhos postos na distância, desejoso de ver aparecer a sucessão de carros que compunham a caravana. Quase gritou de alegria quando uma nuvem de fumo, ao longe, lhe anunciou que meia hora daquele desesperado galopar lhe daria a satisfação de ver — teria de contentar-se com isso, embora o seu desejo fosse abraçar... —a rapariga por quem suspirava havia dias. Podia ter-se dirigido diretamente para o carro de Graça, que era o último, mas achou preferível dar a prioridade ao de Weiss, que seguia agora à frente, como substituto de Josiah. Informá-lo-ia do seu regresso e, depois, poderia dedicar todo o seu tempo a Graça.
Distinguia já alguns rostos que se voltavam para ele, dos bancos, e os cavaleiros que seguiam aos lados dos carros. Admirou-se da pressa com que corriam e...
Ouviu perfeitamente a detonação, apesar do barulho dos carros e do relinchar das cavalgaduras que os puxavam. Como para tirá-lo de dúvidas, o sinistro assobiar de uma bala, que lhe era destinada, passou-lhe muito perto do rosto.
Refreado, inesperadamente, o cavalo ergueu as patas dianteiras, empinando-se nervosamente. Várias explosões partiram de diferentes carros, tendo todas como alvo o seu corpo. Milagrosamente ileso, Bryce fez recuar o cavalo, partindo a galope na direção contrária e afastando-se da chuva de projéteis com que pretendiam mimoseá-lo, embora com pouca perícia.
Só quando teve a certeza de encontrar-se fora do alcance dos tiros dos mórmones se atreveu a parar, e a olhar a caravana que, entretanto, não deixara de avançar. Tirou o chapéu e coçou a cabeça, sem perceber.
— Com os diabos! — murmurou. — O que terá ocasionado esta receção?
Percorreu com o olhar os carros que desfilavam velozmente, e exclamou, de súbito, ao notar que o carro da rapariga não seguia na caravana:
— Graça!
As mãos crisparam-se-lhe nas rédeas e sacudiram-nas bruscamente, obrigando o animal a galopar de novo na direção do perigo de que antes pretendera afastar-se.
Logo compreendeu, porém, a morte certa que isso representaria, e fê-lo parar. Apeou-se, tirou outra vez o chapéu, lançou-o ao chão e pisou-o com fúria. De punhos cerrados, enlouquecido pela impotência que o tolhia, fitou os olhos no lugar que o carro dos Knox devia ocupar, como se esperasse encontrar ali a resposta às múltiplas e angustiosas perguntas que a si próprio fazia.
/// — Maldita! — grunhiu Kirby, debruçado sobre Graça, estendida no chão, e mostrando-lhe o enorme punho. — Pagarão os dois o que fizeste àquele imbecil!
Depois observou o corpo do mexicano, voltando-o com a biqueira de uma bota. Gálvez ficou de cara para o céu, com as mãos comprimidas no peito, por onde penetrara a bala. A sua imobilidade e os olhos sem luz demonstravam claramente que estava morto. Com o olhar toldado, o homenzarrão virou-se de novo para Graça, à qual o irmão se abraçara.
— Está morto... embora reconheça que era um tipo inútil e passava a vida metido em sarilhos por causa das mulheres, gostava dele... Vais pagar caro o que fizeste!
Aproximou-se e levantou a bota descomunal, como se pretendesse esmagar com ela a cabeça da rapariga inconsciente.
— Para trás, Kirby! Deixa a mulher!
O gigante hesitou e, desistindo do ato que premeditara, voltou lentamente a cabeça. O que primeiro viu foram os companheiros que, de pé, erguiam as mãos acima da cabeça; depois levantou os olhos para a orla da vala e descobriu o homem que lhes apontava uma carabina.
— Oh! É o senhor Weiss! — exclamou. — Que aconteceu, amigo, acaso já não somos sócios?
— Larga a pequena e o garoto e veremos se continuamos a ser amigos — replicou o recém-chegado, sem baixar a arma.
Kirby afastou-se dos dois irmãos, embora sem erguer os braços, e com um amplo sorriso disse aos assombrados companheiros:
— Rapazes, apresento-lhes Jeffrey Weiss... O senhor Weiss é a mão direita do chefe. Weiss aproximou-se da rapariga que, já desperta, mas sem se atrever a levantar-se, o viu sorrir-lhe.
— Então, Graça? Espero que estes brutos não te tenham feito muito mal...
— Brutos? — protestou Kirby, aproximando-se de novo. — Chama-nos brutos? Pois veja o que esse «anjinho» fez ao Gálvez! Apenas porque pretendia uma carícia...
Weiss olhou de esguelha o cadáver do mexicano, sem se perturbar, e replicou:
— Esse porco teve o que merecia! Conta-me o que se passou.
O gigante esboçou uma expressão de enfado, ao ver o pouco caso que o outro fazia da morte do mexicano, e explicou, com aparente má vontade:
— Seguíamo-los a distância, como sempre, quando vimos o carro abandonado... Ela disse-nos que os tinham abandonado para entreter os índios... A que índios se referia, senhor Weiss?
O mórmon sorriu, sem deixar de fitar a rapariga, enquanto os dois irmãos se levantavam devagar, mais aterrorizados do que nunca.
— A vocês, com certeza! Vimos elevarem-se umas nuvens de fumo, que supus serem provocadas por vocês... Uma grande imprudência, claro, mas...
Kirby interrompeu-o, de mão no ar:
— Um momento! Pretende insinuar que acendemos fogo? Pois engana-se! O único fogo que se acendeu aqui, desde há vários dias, foi o do carro da rapariga.
— Sim? Bem, então foram outros, o nosso guia talvez... O certo é que se elevava uma coluna de fumo.
O gordo voltou-se e olhou o céu, preocupado.
— Mau sinal, se de facto andam selvagens por estes lados... — Depois encarou Weiss e perguntou-lhe: — A que se deve a sua visita? Só o esperávamos depois de atravessarem o South Pass.
— Dois dias depois de a caravana atravessar o South Pass — emendou o mórmon. — Não foram vocês o motivo da minha visita, mas esta mulher... ela e o irmão. Não os abandonaria por aqui — declarou em voz alta, sem dúvida para que Graça tomasse conhecimento dos seus caritativos propósitos...
Em seguida só teve olhos para a rapariga, a qual fitou com expressão libidinosa, contemplando-lhe o corpo que o vestido rasgado mal cobria.
— Desapareçam — ordenou aos outros. — Escolham outro lugar para descansarem e deixem-nos sós... Eu acompanharei os irmãos à caravana.
Os companheiros de Kirby fizeram rápida e larga provisão das garrafas de «whisky» encontradas pelo defunto Gálvez, de cujo cadáver ninguém parecia aperceber-se. Kirby deu-lhes pressa, com uns empurrões, e despediu-se depois de subir a encosta suave da vala:
— Ver-nos-emos daqui a três dias na caravana, senhor Weiss... Não se fie muito na rapariga, tem o mau hábito de esconder uma arma debaixo das saias! Divirta-se!
Weiss ficou um instante calado e imóvel, e só quando calculou que os amigos já não poderiam ouvi-lo e voltou a sorrir a Graça e a. dizer-lhe:
— Vês, querida, só graças a mim te livraste daqueles desavergonhados! Não, não quero que me agradeças... foi um sentimento muito diferente que me levou a vir procurá-los.
A rapariga estava curvada, para apertar melhor a si o vulto pequenino de Alfredo, e olhava o mórmon com os olhos avermelhados, tanto das lágrimas choradas como de ódio.
— A sua chegada, que parece julgar tão oportuna, serviu apenas para mais o odiar e maldizer. Devia ter consentido que aquele assassino me esmagasse a cabeça, pois prefiro que uma manada de búfalos nos desfaça a suportá-lo a si!
Weiss tinha uma grande capacidade para aceitar impassível todas as injúrias; já antes o demonstrara e demonstrava-o de novo agora, ao fingir-se absorto na contemplação das unhas.
— Outra vez, rapariga? — perguntou, petulante. —Julgava que, depois de te teres visto só por aí, vinha encontrar-te toda mel... Mas vejamos, que mal há na proposta que te faço? Pedi-te que fosses minha esposa, apenas, e como deves lembrar-te o próprio Josiah te disse que eu era um bom partido.
Graça deixou de abraçar o irmão, passou-o para trás de si, e deu um passo na direção do- mórmon:
— O bom Josiah dizia isso porque não sabia que você vendeu os seus irmãos! Você, Kirby e os outros não passam de assassinos que pretendem roubar a caravana!
Exaltada, avançou de novo, de mãos estendidas numa ameaça, para o homem que a ouvia cheio de assombro. Weiss retrocedeu um passo e ela continuou:
— Você matou Josiah e os outros... E matou também o meu pai!
Saltou, com o intuito de arranhá-lo, mas, num movimento rápido, Weiss agarrou-lhe as mãos no ar, dobrou--lhas e atirou-a ao chão.
Graça quis levantar-se, mas deteve-a a boca negra de um «Colt», a dois palmos da cara. Weiss, que puxara cobardemente do revólver para defender-se, sorria.
— És muito esperta, minha beldade! Bastaram as poucas palavras que troquei com os meus homens para compreenderes tudo... Mas isso perdeu-te, sabes? Agora já não me interessas, vou mandar-te, mais ao teu irmão, para o Inferno!
Foi com alegria que Graça o ouviu: não lhe importava morrer; pelo contrário, desejava-o com todas as forças! Por isso, quando os seus olhos, fitos no indicador do homem, viram que o indicador se contraía, cerrou as pálpebras e murmurou:
— Recebe-nos, Senhor...
O tiro soou, mas ela continuava a viver, e respirava, sem sentir a menor dor. Abriu os olhos e deparou-se-lhe a mão assassina, de dedos crispados, mas sem arma; depois viu o rosto cheio de surpresa de Weiss e...
Com uma rapidez espantosa, o mórmon procurou tirar com a mão esquerda o segundo «Colt». Mas novo tiro soou sobre a cabeça da rapariga e aquele que momentos antes quisera roubar-lhe a vida cambaleou um segundo e, depois, estatelou-se no chão, com um baque surdo.
— É ele, Graça! — gritou o pequenito, sorvendo as lágrimas. — É o Franck! Voltou... salvou-nos!
E Alfredo trepou pela encosta, aos tropeções. Graça olhou para cima e sentiu acender-se-lhe no peito a maior alegria: de facto, Franck Bryce, o único amigo com que contavam, abraçava o irmão e erguia-o no ar, para beijá-lo carinhosamente.
Graça viu-o aproximar-se, sem saber o que dizer-lhe. Bryce pousou o garoto no chão e abriu os braços, nos quais se refugiou, comovida, sacudida por soluços mais eloquentes do que todas as palavras.

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