quinta-feira, 17 de agosto de 2017

BUF015. CAP V. O beijo mais amargo

Depois do jantar, sábado à noite, três dias após os sucessos do rio Negro, Victória e Campbell saíram para o terraço contíguo à sala de leitura.
A jovem apoiou as suas mãos na varanda e aspirou a brisa noturna envolta em eflúvios primaveris.
O advogado, encostado à parede, observava Victória, enquanto enchia o seu cachimbo. Um subtil encanto embriagava-lhe os sentidos.
Pegou fogo ao tabaco. O silêncio continuou espalhando o seu mágico sortilégio. Ao fim de um pedaço ela voltou-se e disse:
— Não achas isto maravilhoso, David?
Aquele nome foi o grito de realidade que rompeu o seu estranho sonho.
Ficou aniquilado, como se esperasse que aqueles deliciosos minutos retrocedessem misteriosamente no galopar inexorável do tempo.
— Escutas-me, David?
— Oh, sim, perdoa-me...
— Sabes o que te perguntei? — riu Victória. — Creio que é maravilhoso.
— Acaso pensavas a resposta?
— Oxalá tivesse sido isso, tão diferente de tudo o que até agora me rodeou...
— Conheces Nova Iorque?
— Passei lá uma temporada.
— Se te dessem a escolher entre Nova Iorque e Rockville, por qual te decidirias agora?
Viu o seu rosto formoso banhado pelo luar, o seu cabelo de fios de ouro ondeando à mercê da brisa, e os seus grandes olhos azuis que o miravam fixamente.
Sim, estava-se enamorando dela. Reconhecer tal sentimento produzia-lhe ao mesmo tempo repulsa. Victória via nele um irmão e, por consequência, moralmente, John Campbell não devia albergar no seu coração outra coisa que não fosse um carinhoso respeito pela jovem. Mas, será possível uma pessoa dominar-se, petrificar-se até esse ponto? Não, ele era de carne e osso, um ser humano com as suas virtudes e as suas fraquezas, e assim o mais lógico, o que a sua intuição lhe ditava, era abandonar aquela casa quanto antes, imediatamente.
Estás a pensar nas vantagens e nos inconvenientes? — inquiriu de novo Victória.
Recordou-se de que ela lhe havia feito uma pergunta. Qual? Ah, sim!... A de Nova Iorque e Rockville. Era a sua oportunidade, e não a quis deixar escapar.
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— Nova Iorque — afirmou.
Uma sombra de tristeza abateu-se sobre a face de Victória. Voltou a costas a Campbell encostando melancolicamente o queixo ao peito.
O advogado correu para junto dela. Sentiu um grande remorso.
— Victória, eu... eu não queria... não era minha intenção causar-te um desgosto.
A rapariga não protestou.
— Escuta-me, eu procuro ocasionar-vos as menores arrelias possíveis.
— Como podes falar assim? — disse pronta-
mente Victória, com lágrimas nos olhos. Campbell cravou o seu olhar no rosto adorável, e proclamou com voz firme:
— Prefiro Rockville!
— Dizes agora isso para me consolar.
— Tens a minha palavra de que digo a verdade.
Durante o silêncio que se seguiu, os lábios de Victória começaram. a distender-se num encantador sorriso.
Ele havia pensado que devido àquela declaração as coisas ficariam melhor. O final seria sempre o mesmo. Abandonar o rancho dos Hubert. Mas já não teria tempo de preparar a partida. Antes que o pudesse evitar, Victória pôs-se na ponta dos pés e deu-lhe um beijo no nariz. Depois disse:
— Boa noite, David. Não te esqueças de o desejar também a nosso pai — afastou-se e entrou em casa.
Para John Campbell aquele beijo fora o mais amargo da sua vida.
No domingo de manhã dirigiram-se a Rockville para assistir aos ofícios religiosos. No carro puxado por uma parelha de cavalos castanhos, viajavam Victória e John, e atrás dele seguia um tropel de ginetes.
Ao redor da igreja tinha-se reunido o povo da comarca. Todos estavam ao corrente dos últimos acontecimentos, e ninguém queria perder o encontro dos dois grupos contendores, se isso acontecesse, já que alguns tinham opinado que os Hubert não mostrariam, nesse dia, a cabeça na cidade.
Logo, a aparição por uma das ruas, do carro que conduzia Victória Hubert, foi recebida por diversas exclamações e gestos melodramáticos. Os cidadãos pensaram na possibilidade daquele dia ser um dos tais em que o sangue corre pelas valetas de Rockville.
Os olhares de expectativa iam dos Hubert, que se acercavam, ao bando dos Burnet e Grieser, composto por trinta homens reunidos perto da igreja.
Como se tivessem recebido uma ordem, os que se encontravam ali unicamente para cumprir os seus deveres religiosos, ou por simples curiosidade, apressaram-se a abandonar o terreno, metendo-se na igreja ou nalgum lugar que a seu ver poderia tornar-se mais seguro, ante a eventualidade de que as pistolas começassem a entoar uma cantiga, sem aviso prévio.
O carro dos cavalos castanhos traçou um airoso círculo pela praça e foi deter-se em frente ao adro.
Os cowboys cerraram as suas linhas, mas não desmontaram colocando-se à frente do veículo de caras para os seus rivais.
— Desmontem! — ordenou Campbell, saltando do carro.
Os rapazes obedeceram, adotando as precauções necessárias para não serem surpreendidos.
John recebera uma ampla descrição física de Burnet e Grieser, pelo que não lhe foi difícil identificá-los.
Burnet era alto, de ombros largos e cabeça poderosa, na qual se destacavam uns olhos negros de brilho feroz.
Grieser era de altura mediana, gorducho e de nariz afilado.
Ambos contemplavam com interesse o indivíduo que viam pela primeira vez e de cujas atividades, apenas chegado à cidade, tinham tão desagradáveis notícias.
Campbell correspondia ao exame coletivo com um olhar de ironia.
David, será melhor que entremos — propôs Victória, dando-lhe o braço.
Começaram a andar, seguidos dos rapazes.
Um segundo mais tarde, Burnet, Grieser e os seus homens puseram-se também em movimento, dirigindo-se para a porta da igreja.
Os dois grupos chegaram simultaneamente em frente da escada de três degraus, e detiveram-se.
A atmosfera parecia eletrizada. Uma só chispa bastaria para desencadear a mais terrível das tempestades. Houve uma troca de olhares entre os Hubert e os seus inimigos.
— Bom dia, menina Hubert! — saudou rapidamente Burnet, com um falso sorriso. Logo, sem esperar resposta, pôs os seus olhos no rosto de Campbell e disse: — É o senhor o jovem David, não? O tal de quem tanto se fala hoje em Rockville!
— Faço uma vida muito retirada, senhor Burnet — replicou o advogado. — O que é que se diz de mim?
— Que o senhor parece um homem temerário.
— Não está mal, então. É consolador que pensem assim de nós!
— E dizem também que em Rockville nenhum homem temerário pode chegar a velho.
— É muito amável da sua parte, senhor Burnet, comunicar-me o que pensa de mim a opinião pública. Compensá-lo-ei com o que dizem do senhor. Também é interessante. Pude chegar à conclusão de que o têm em grande estima, até ao ponto de que, quando morrer, lhe levantarão um monumento à sua memória.
Burnet e Grieser entortaram os olhos tentando decifrar o que Campbell dizia. E então, este, após uma pausa, acrescentou:
— Todos os dias o têm presente nas suas orações... para que o monumento, muito em breve, seja uma realidade!...
Burnet fez uma careta ao pretender sorrir, enquanto muitos homens dum e doutro bando soltaram uma gargalhada.
— O senhor Hubert goza de um humor excelente! — falou Burnet — e seria uma lástima que a profecia do povo, a seu respeito, se cumprisse.
— Eu, no seu lugar, preocupava-me em saber se as orações dos cidadãos da terra são atendidas. E agora perdoem-nos, mas temos de passar à igreja. Os senhores entram?
— Temos de nos ocupar de assuntos importantes. Ver-nos-emos, senhor Hubert — disse Burnet, retrocedendo.
— Decerto, cavalheiros! — assentiu Campbell. — Ah!... ia-me esquecendo! Como se encontram os rapazes que perderam as botas no outro dia? Disseram-me que tinham bolhas e gretas nos pés!... Como os lamento, coitados...
Burnet mordeu o lábio inferior contendo a sua raiva. Tentou sorrir, e respondeu:
— É algo que eles não esquecem, Hubert. Não me estranharia que os culpados dessa marcha com os pés descalços, fossem aparecendo, um a um, enforcados numa árvore!
— Sei de outros pescoços onde assentaria melhor um adorno dessa classe. Bom dia, cavalheiros. Vamos, Victória?
A jovem subiu as escadas solenemente, agarrada o braço varonil do advogado. Ao chegar lá cima mirou de soslaio o seu suposto irmão, e comentou:
— Estiveste estupendo, David. Colocaste-os em ridículo à frente dos seus homens...
— Não sei se fiz bem. Talvez apenas tivesse logrado excitá-los ainda mais. A sua reação, agora, não se fará esperar!
Isso era o que dizia Campbell, mas no seu íntimo sabia que estava mentindo. Depois de se inteirar dos costumes da cidade, previu que Burnet e Grieser, com os seus, o esperariam domingo ao pé da igreja, ainda que mais não fosse senão para conhecê-lo de perto, e por isso decidiu tirar partido da situação. Queria liquidar quanto antes o assunto que o havia levado a Rockville, já que as horas, os minutos da sua estadia ali, se tornavam cada vez mais insuportáveis. E a melhor forma de consegui-lo, era exacerbando o ódio que contra ele deviam sentir Burnet e Grieser. Assim, provocando-os, obrigava-os a sair da toca e a mostrar o seu jogo.
Depois da missa era habitual as pessoas deterem-se na praça para trocar cumprimentos, empurrões, sorrisos e notícias.
Nesse dia, a tertúlia dos curiosos esteve mais concorrida do que nunca. Não houve uma só jovem casadoira, de Rockville e sua comarca, que não se acercasse de Victória Hubert perguntando pela sua saúde e pela de seu pai, mas, enquanto inquiriam, os olhos femininos prestavam mais atenção ao irmão do que à amiga, o que deu lugar a que Campbell estivesse a cada instante a tirar o chapéu e a repetir variadíssimas vezes: «Muito gosto em conhecê-la, menina!».
De improviso, o posto que acabava de deixar vago a décima sétima rapariga em idade de casar, foi ocupado por um jovem dos seus vinte e cinco anos, que se apresentou soltando frases muito originais:
— Que tal, Victória?... Bem, não é verdade?... Este é o teu irmão, hem?! Como está, senhor Hubert? Bonito país, não é verdade? Um dia destes terá de vir comigo caçar, hem?! Sei onde se encontram os melhores antílopes da América... Que diz você, hem?!
Tal chorrilho de cumprimentos, perguntas, respostas e afirmações era acompanhado dos seus correspondentes saltinhos e sorrisos.
— Este é o senhor Tom Henderson, David! —conseguiu, por fim, Victória interromper. — Um dos nossos amigos mais íntimos.
— Como está, senhor...?
Não lhe foi possível terminar a pergunta, porque já o rapaz tinha arrancado de novo:
— Ela e eu, conhecemo-nos desde que viemos ao Mundo, hem?!... Temos jogado juntos e aprendemos a ler na mesma escola, não é verdade?... Tenho sido um irmão para Victória... hem ?!... Como se o senhor não tivesse faltado...
— Ótimo! Consola-me pensar que o meu posto tem estado dignamente defendido durante a minha ausência.
— A propósito, Vic, esta tarde serás o meu par, hem?!... Ai do que se atreva a tirar-te do meu lado! Terá de se haver comigo, não é verdade?
— Está falando de alguma festa? — perguntou Campbell.
— Todos os domingos de primavera há baile, à tarde, num local descoberto, ao lado do teatro — explicou Victória. — Noutros tempos era um armazém de sementes, e agora tiraram-lhe
teto.
— Talvez seja melhor que fiquemos no rancho — sugeriu o advogado.
— Hem?... Que disse? — interveio, pressuroso, Henderson. — Não pode ser, não é verdade?
— Estou certo de que poderá substituir a minha irmã por outra linda jovem.
— Mas eu não quero outra, hem?!...
Victória atalhou a discussão dizendo:
— De acordo, Tom, veremos.
O rapaz abriu os olhos e a boca num gesto de irreprimível contentamento.
— Magnífico, Vic!... Espero-te à porta!... Hem ?!... Não chegarás tarde, não é verdade?...
Tom retirou-se tropeçando em várias pessoas, porque insistiu em caminhar com a cabeça vol-tada para os Hubert.
— Como te ocorreu aceitar um convite, nas atuais circunstâncias? — perguntou Campbell, arqueando as sobrancelhas e deixando transparecer uma pontinha de mau humor.
— Porque desejo que tu vás! — sorriu ela. —És a atracão do dia. Não reparaste como te fixam todas as raparigas?... E olha que as há bastante belas...
— Nenhuma o é tanto como tu!
— És muito galante, David. Gostaste de alguma, em particular?
— Não. Quero dizer... são bonitas, mas nenhuma me atraiu, no sentido que tu sugeres. O que é que há com o Tom?
— Com o Tom? Não te percebo.
— É bastante fácil. Não creio que queira bailar contigo como o faria um irmão... isto é, como o faria eu... — Campbell sentiu que pisava um terreno escorregadio.
— Realmente. Tom não é a pessoa indicada para uma comparação. Há coisas que um irmão nunca teria feito.
— O quê? — inquiriu, alarmado. — Alguma vez foi grosseiro para contigo?
— Por favor, não grites, David.
Campbell reparou que várias pessoas tinham voltado a cabeça para o olhar.
Victória riu, tapando a boca com a mão. —Pareço-te ridículo, não é verdade?... Hem?!... — disse ele.
— Não imites o Tom, David.
— Que coisas são essas que um irmão não faria?
— Oh! É um segredo! Como podes fazer tais perguntas? — Victória tornou a rir, dando o braço a John.
— Está bem. Vamos embora? Os rapazes esperam-nos.
No caminho de regresso, Victória cantou uma canção de vaqueiros, enquanto Campbell mantinha uma ruga entre os olhos. 

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