quarta-feira, 16 de agosto de 2017

BUF015. CAP IV. Missão no rio Negro

Campbell acordou ao ouvir fortes pancadas na porta. Ergueu-se ficando sentado na cama, e disse:
— Está bem. Pode entrar.
Victória Hubert entrou no quarto, levando nas mãos uma bandeja em que havia um suculento pequeno almoço.
— Grande exemplo vais dar aos rapazes! —comentou, sorridente, a jovem. — És sempre assim preguiçoso?
Que horas são?
— Sete e meia.
— Sete e meia? — exclamou o advogado, estupefacto.
— Bom, talvez faltem alguns minutos — respondeu Victória, colocando a bandeja sobre os joelhos de Campbell.
Este enrugou a testa e com gesto desalentado perguntou:
— Todos os dias se levantam aqui tão cedo?
— Exceto aos domingos.
— Ao menos, valha-nos isso!...
— Aos domingos acordamos meia hora antes. — Não me digas...
— Claro que digo... Uma pessoa tem de se arranjar com mais cuidado e vestir as melhores roupas para assistir aos ofícios religiosos em Rockville.
— E pode-se saber como é que vocês dormem?
— Estamos acostumados a recolher muito cedo. Nunca nos deitamos depois das dez. Ontem à noite foi uma exceção. Eram onze e meia e o papá ainda te fazia perguntas. Agradeço-te que não lhe tenhas dito nada sobre o teu regresso ao Este. Está tão contente por estares junto dele...
— Esperarei uns dias, não te parece?
— Sim, será melhor. Do que é que estás à espera? Não gostas do pequeno almoço? Fui eu que to preparei.
— O meu estômago tomará isso em consideração — declarou Campbell; e como complemento atacou o conteúdo da bandeja.
Quando já bebera metade da chávena de café, bateram novamente com força na porta, e Victória foi abrir.
— Que se passa, Hugo? — ouviu perguntar à rapariga.
Uma voz trémula exclamou:
— Estão a desviar o curso do rio Negro, menina!
— Não é possível! — volveu ela.
— Sim, menina! Vi-o eu mesmo! Ninguém mo veio contar!
Campbell retirou a bandeja da cama e colocou-a na mesa de cabeceira.
— Está bem, Hugo — contestou Victória. —Avisaste o senhor Parker?
— Antes de subir aqui.
— Pois diz-lhes que esperem. O meu irmão descerá em seguida.
Victória fechou a porta e voltou-se. No seu rosto leu facilmente John a gravidade do que sucedia.
— De que se trata, Vic? — perguntou-lhe. —O que é isso do rio Negro?
A rapariga entrelaçou os dedos, nervosamente.
— Outra canalhice dos Burnet e Grieser! O rio Negro é o bebedouro natural da grande pradaria. Se conseguissem desviar o seu curso, ver-nos¬-íamos obrigados a transladar uns bons milhares de reses para vinte milhas a Oeste para que bebessem.
— Impedi-los-emos!
— Se isso fosse possível... Temo que não, David!
— Anda, deixa-me vestir. Desço imediatamente. Minutos depois, os dois jovens encontravam-se no vestíbulo da casa.
— David — articulou ela. — Preferi não dizer nada ao papá. Se me perguntar por ti enquanto estiveres ausente, dir-lhe-ei que saíste para percorrer o rancho.
— De acordo, Victória. Até logo.
— Tem muito cuidado, David!
— Tê-lo-ei, não tenhas receio.
Campbell saiu para o exterior, encontrando-se com um grupo de quinze homens ao pé da escada.
— Preparado, Parker? — inquiriu, vendo o capataz.
Este tocou a aba do chapéu, e perguntou por sua vez:
— O que é que o senhor Hubert vai fazer?
O advogado deteve-se no último degrau, franzindo o sobrolho.
— Não lhe disseram o que se passa?
— Sim, sabemos... — replicou Parker.
— Pois, então, não há nada mais a falar. Dirigir-nos-emos até ao rio Negro, e demoliremos a obra de desvio que os tipos do Burnet fizeram.
Os cowboys olhavam Campbell, mas nenhum deles se movia.
— Que se passa? Têm medo?
Parker voltou a fazer uso da palavra.
— Oiça, senhor Hubert. Não é que tenhamos medo. O que ocorre é que os rapazes dizem que são jovens, e não têm necessidade de morrer.
— Quem é que lhes falou em morrer?
— Não é preciso ser muito esperto para chegar à conclusão de que agora haverá guerra de verdade. Até hoje, apenas houve escaramuças. Três ou quatro mortos durante um ano, num rancho onde trabalham trinta homens, é coisa corrente. Mas iniciada a luta tal como Burnet e Grieser desejam, o bando derrotado só poderá ser recolhido em pedaços!
— E quem disse a vocês que vamos ser nós os derrotados?
Parker humedeceu os lábios iludindo a resposta. Campbell passeou os olhos pelos rostos que havia por detrás do capataz.
— Eu o provarei! — anunciou um homem de má catadura, dando uns passos para diante.
— E eu muito lho agradecerei — disse o advogado, convidando-o a falar.
— Nós somos os únicos que teremos por cima uma cruz antes de uma semana!
— Dê-me uma razão.
— Não lhe darei uma, mas sim várias!
— Creia que estou deveras interessado! Cuspa lá isso tudo!
— Em primeiro lugar, eles são mais numerosos e melhores atiradores que nós! Contam com Peter «Muescas», com Barry «el Nirio», com James «Cupido», com Jaro «45», com Lube «Relâmpago», e com mais dez tão bons como eles!
— E quem são esses cavalheiros? — perguntou Campbell com voz suave.
O outro fixou-o, enrugando o nariz, e depois voltou-se para os seus companheiros.
— Vocês ouviram-no? «Quem são esses cavalheiros?» — exclamou arremedando o advogado.
— Nem sequer sabe com quem se defronta!... Isto é uma advertência!
— Lembro-lhe que cheguei ontem a Rockville.
— Isso faz parte da segunda razão!
— Exponha-a. Julgo que deve ser mais curiosa que a primeira.
— O senhor vai ser o nosso chefe, não é assim?... Visto que o velho não está para corridas...
— É certo, mas peço-lhe que ao referir-se a... meu pai, o faça chamando-lhe senhor Hubert.
— Aí está a única coisa que o senhor tem! Palavreado! Pensa que vai vencer os homens de Burnet, dando à língua? O senhor é um tipo do Este. Na sua vida nunca teve nada a ver com um rancho, e agora quer dirigi-lo! Nem sequer saberá distinguir um cavalo de uma égua! E as pistolas? Leva-as como adorno! Já veremos o que faz quando soar o primeiro tiro. Aposto que se esconde debaixo duma rocha...
— Não lhe disseram o que se passou ontem na diligência?
— Todos o sabemos. Ontem à noite estive a falar com Lionel. O que o senhor fez foi uma grande treta! Quando tinham as pistolas nos coldres, sacou as suas e deu cabo deles! O que é que espera? Matar um a um, os homens de Bur-net, pelas costas?
— Alegra-me conhecer a sua opinião, senhor... Como se chama?
— Braden!
— Eu também penso da mesma maneira! —proclamou um do grupo.
—E eu!
— Não contem comigo!
— Nem comigo!
Campbell levantou o braço impedindo novas deserções, e disse:
— Amigos, as razões que Braden apresentou para justificar a sua baixa no grupo do «Rancho Hubert» são aceitáveis. Vivemos numa grande democracia e é justo que se respeite as ideias de cada um. Agora escutem: como a saída das nossas filas equivale praticamente ao ingresso nas de Burnet, decidi adotar um mínimo de precauções.
— Não irá para o diabo? — interveio Braden, com voz rouca.
— Agora termino, senhor! Ao falar dum mínimo de precauções refiro-me simplesmente a que todo aquele que deixe o nosso rancho sairá dele sem armas, ou seja, deixá-las-á aqui.
Transcorreram cinco segundos de silêncio espetacular.
Todos os olhos convergiram para o rosto de Campbell.
Braden foi o primeiro a sair do assombro geral produzido pelas últimas palavras.
— Fala a sério, Hubert?
— Nunca o fiz com tanta seriedade. Juro-o. — E o que é que o senhor fará se nós não quisermos entregar as nossas armas? — inquiriu o rebelde, começando a sorrir.
— Desarmá-los-ei eu!
Braden soltou uma gargalhada que semente foi repetida por alguns homens, pois a voz de Campbell havia adquirido uma forte resolução.
— Você, Braden!... E você, o do nariz de gancho! — o advogado assinalava os que se haviam juntado antes da deserção. — E aquele amarelento!... Esse da cicatriz na testa!... E você, o do queixo partido!... Atirem as armas ao solo!... E os outros que se afastem!...
Instantaneamente, o grupo espalhou-se. Campbell sabia que haveria uma maioria assustadora a favor do abandono do rancho, mas tão-pouco desconhecia que a sua decisão, ao ficar em frente de cinco homens, suspendia, por momentos, as manifestações de solidariedade com a atitude de Braden. Aquilo era um espetáculo, e muitos preferiam achar-se entre os espectadores.
Os cinco homens ficaram sós.
Braden separou-se uns metros de Campbell. Este, com as mãos inertes junto ao cinturão, ordenou:
Larguem o arsenal!
— Está louco, Hubert? — mascou Braden. — Já reparou que está a pronunciar a sua sentença de morte?
— Contarei até três! — advertiu Campbell. —Aproveitem esta oportunidade!...
Dois dos desertores olharam-se vacilantes, sugestionados pela firmeza daquele homem do Este. — Um! — começou a contar. — Dois!
Braden e o par mais perto dele tiraram as pistolas, e naquele instante, das mãos de Campbell, começaram a brotar chamas de fogo ao mesmo tempo que se ouviam os estampidos das pistolas. Braden lançou um gemido, e caiu por terra. O amarelento abriu a boca, cambaleou e tombou junto daquele. O da cicatriz agarrou-se ao estômago e, como se de repente este lhe pesasse e o não pudesse suster, caiu também no solo.
Os que haviam vacilado estavam imóveis, e ao ver os seus companheiros estendidos levantaram os braços sem esperar qualquer ordem.
Os espectadores não sabiam para onde olhar. Se os três corpos caídos, se aquele que havia provocado o seu derrubamento.
Parker, o capataz, foi o primeiro a reagir pondo-se ao lado de Campbell.
— Senhor Hubert — declarou. — Estamos dispostos a partir para o Rio Negro.
— Mas antes preocupem-se em curar estes homens. Não estão mortos.
— O quê, não estão mortos?... Mas se... — Comprove-o!
Parker, ajudado por vários cowboys, verificou que Braden e os outros dois viviam. O capataz deu ordem para que fossem levados para as suas camas do pavilhão-dormitório, e acercou-se do advogado perguntando-lhe:
— Por que não os matou?
— Pretendi só dar-lhes um pequeno corretivo! Braden é lento de reflexos, por isso lhe meti uma bala numa coxa. Dos outros dois, o mais alto tão-pouco é uma flecha! Feri-o num ombro. O terceiro era mais perigoso. Quando eu me apoderava da arma já ele tinha a mão direita na culatra. Não tive outro remédio senão disparar¬-lhe contra o costado desse lado. Assustou-se ao sentir a ferroada do projétil, e pensou que lhe tinham perfurado o estômago. Claro que os três ficaram imóveis temendo que eu os liquidasse.
— Oiça, senhor Hubert.
— Diga.
— No Este os problemas também são resolvi: dos a tiro?
— Não — sorriu Campbell. -- Recorremos às boas maneiras, ainda que haja exceções em tal regra. Por isso convém estar sempre treinado para as emergências!
Victória Hubert saiu de casa, correndo.
— David!... O que foi isso?
— Nada que te possa inquietar. Encontrarás três homens feridos no dormitório dos cowboys. Lamento-o, mas não tive outro remédio. Ajuda-os no que puderes.
— Vou para lá — assentiu a jovem desaparecendo.
— Já nos entretemos demasiado, Parker. Que lhe parece se mandasse os rapazes montarem? — Em seguida, chefe.
Trinta minutos mais tarde, os cavalos do rancho Hubert chegavam às cercanias do lugar em que Burnet e Grieser se tinham disposto a desviar o curso do rio Negro.
Campbell distribuiu os seus homens em três secções. A primeira ficou sob as ordens de Parker e avançaria pelo lado Oeste. A segunda era capitaneada por Jake Murray, e tinha a seu cargo a ala Este. A última reservou-a para ele, com o propósito de penetrar em cunha.
Romperam a marcha por um terreno escabroso, e pouco depois o grupo de Campbell descobriu, dum montículo, os homens que eles procuravam, trabalhando na construção de um dique.
Ordenou que tivessem cuidado em não ser descobertos antes de tempo, e esperou calculando os minutos que Parker e Murray levariam a chegar aos seus respetivos lugares para iniciar a ofensiva.
Quando julgou chegado o momento, deu o sinal.
Era evidente que os homens de Burnet estavam firmemente convencidos de que não seria obstruído o seu trabalho. A sensação derrotista que imperava no rancho Hubert era demasiado conhecida. Por isso, o seu assombro não teve limites quando, antes de que pudessem fazer um gesto, se encontraram envolvidos por um círculo totalmente intransponível.
Nem sequer houve um só entre eles, dezoito no total, que intentasse abrir caminho com a pistola, seguro de que fazendo tal disparate não teria oportunidade para se arrepender.
Em menos de dois minutos ficaram desarmados e, então, Campbell falou alto:
— Vão ser todos muito bons rapazinhos e proceder à destruição do dique! Há quanto tempo estão a trabalhar?
— Há, duas horas! — explicou um rapagão louro.
Bem, concedo-lhes quarenta e cinco minutos para terminar tudo como eu quero. Depois, não respondo pelas consequências!
A partir desse instante, o leito do rio transformou-se num autêntico formigueiro. Os homens moviam-se com uma velocidade extraordinária. Pareciam autómatos, máquinas, seres esquisitos, impulsionados por corda.
Dez minutos antes de expirar o prazo final, a obra ficou concluída conforme os desejos do advogado. Tal celeridade, evidentemente, produziu dolorosos resultados em pessoas tão pouco habituadas a semelhantes esforços e a ordens tão perentórias. Muitos dos dinâmicos e imprevistos trabalhadores deixaram-se cair no solo, rom pendo em lamentações, enquanto se queixavam fortemente dos rins.
Campbell, que tinha também mandado busca] os cavalos dos sabotadores, chamou a atenção do cansado auditório.
— Cavalheiros — disse com energia — agora vão fazer-me um verdadeiro obséquio. Tirem as vossas botas!
— O quê? — perguntou um dos mais aflitos dos rins, crendo não ter ouvido bem.
Um novo esforço, que para muitos foi sobrenatural, e os homens de Burnet ficaram com os pés cobertos pelas meias, à exceção de alguns que os exibiram sem elas, dando uma prova de impudícia no vestir e uma semelhança com certos animais!
Campbell deu instruções para que se recolhesse toda a ferramenta. Quando tal operação estava executada, os descalços ficaram olhando Campbell, prevendo o que seria a continuação de momento tão aziago.
E agora, cavalheiros, vamos a escolher o caminho mais suave que os conduza ao rancho dos senhores Burnet e Grieser...,
— Não podemos andar sem botas! Vai ser o fim dos nossos ricos pés!... — queixou-se um.
— E podem vocês dar-se por muitíssimo satisfeitos se lhes aplico este castigo em vez de projetar sobre a vossa estúpida cabeça algumas gramas de chumbo! De modo que, para a frente e sem protestos!... Todos de pé e a andar daqui para foral... E escutem mais: dispararemos contra o que se detenha!...
Os dezoitos sujeitos começaram a andar aos saltinhos, fugindo aqui e ali dos seixos que pareciam colocados propositadamente no chão; outros gritavam, havendo alguns que achavam melhor seguir de gatas. Mas, duma maneira ou de outra, todos avançavam rapidamente, como lhes aconselhava a prudência.
E Campbell contemplava satisfeito como os seus homens riam com gosto. Tinha, assim, logrado inculcar-lhes que aqueles com quem se enfrentavam não eram superiores, antes pelo contrário: os mais abjetos e ridículos seres da escala social!

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