sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

PAS437. Um pistoleiro reencontra o seu caminho

O vento brincava com o flutuante véu negro que lhe cobria os cabelos escuros, de tons azulados sob os raios solares, e penteados com risca ao lado. O rosto moreno, as finas sobrancelhas e o perfeito desenho dos lábios rubros davam-lhe um ar de mexicana, quiçá destacando uma distinção de raça que se mostrava impregnada pelo sangue espanhol.
A sua beleza, uma beleza serena, escondia debaixo da fria capa da pele um fogo ardente e uma paixão avassaladora. Os olhos rasgados em amêndoa voltaram a erguer-se, um tanto altivos, e cravando-se nos de Chuck com a agudeza de punhais. Aquele olhar tinha algo de castigador, e o homem, arrependido da sua secura, imediatamente a dissipou. Observando-a melhor, descobriu a sua figura gentil, bem torneada, a saia revolta, que deixava a descoberto os sapatinhos cobertos de pó e descobriu também... O fresco raminho de margaridas que as suas mãos empunhavam apertando contra o túmido busto. Realmente este detalhe foi uma revelação superior a todas as palavras...
— Devo estar muito mudada, Chuck — respondeu ela. — Ou talvez tenha sonhado demasiado com o teu regresso. Esperava que voltasses por minha causa... Desculpa-me. Já vejo que nem sequer te recordas de quem sou.
— Trindade! — exclamou então Chuck com incontida força. — És tu! Não posso enganar-me.
— Sim — assentiu ela com pena. — Sou a Trindade. Uma pobre tonta que sonha acordada. Cinco anos não foram suficientes para apagar as minhas ilusões... e agora, em cinco segundos, ficaram mortas para sempre. Afastaste-me de ti, Chuck, como afastaste tantas coisas à tua partida. Segue o teu caminho e... e que Deus te proteja.
-- Espera! — ordenou Chuck, saindo do assombro em que se encontrava. — Não... Não podia imaginá--lo... Embora apenas tu pudesses ser capaz de uma fidelidade semelhante. Tu, Trindade Gonzalez. O destino reuniu-nos outra vez. Espera, por favor.
— Para quê? É um engano invocar o destino quando os corações estão secos, Chuck. Tu já não me queres; nem eu poderia querer-te, mesmo que me pedisses de joelhos.
— Não te vás embora — insistiu Chuck. — E perdoa-me todo o mal que acabo de causar-te. É verdade que não te reconheci a princípio... mas também é verdade que durante estes últimos tempos tenho pensado muito em ti.
— Obrigada, por essa mentira. Mesmo que o seja ajuda a mitigar a dor.
— Julgas que estou mentindo, Trindade?
— Creio — disse ela com firmeza. — Muitos me avisaram mas eu não quis ouvi-los. Agora podem rir-se à vontade. Já sabes que estava louca por ti. Eras o meu primeiro amor, o verdadeiro amor. O homem dos primeiros beijos e das primeiras carícias, cuja imagem se grava no coração para sempre. Uma vez disseste-me: «Hei-de voltar, meu amor. Voltarei ainda que passem mil anos e então casar-nos-emos». — Trindade fez um angustioso ponto final. — Só passaram cinco anos. Agora compreendo que tomei as tuas palavras demasiado à letra. Adeus, Chuck. Deixa-me só com a tua mãe. Compreendo melhor os mortos do que os vivos.
Trindade Gonzalez afastou-se para o lado para o deixar passar. Tinha inclinado a cabeça e os seus grandes olhos, de moira, brilhavam com luz de lágrimas. Chuck Camely aproximou-se dela e apoiou, em silêncio, a mão no seu braço. A carne palpitou, estremecendo àquele contacto.
— Essas flores são para ela, não é verdade? — perguntou num murmúrio.
— Sim, Chuck. A tua mãe queria-me muito...
— Mas não tanto como eu.
— Não profanes a sua memória! E, por favor, Chuck... deixa-te de me fazeres sofrer! Estás-me aniquilando sem piedade!
— O mesmo poderia dizer de ti. Tem um pouco de piedade.
— Assim falas tu... tu que a desconheces por completo?
— Disse que voltaria... e voltei. Não por ti, confesso. Mas tudo mudou desde que pisei o solo de Passo Estreito. Cinco anos ficaram para trás, Trindade, mas a recordação deles faz-se agora demasiado forte. Eu queria convencer-te, dizer-te que não sou um cínico... — Chuck levantou o queixo e respirou fundo. — Não chores — pediu. — Poderemos recomeçar.
— Vai-te, Chuck. É melhor assim.
— E tu?
— Eu? — Trindade mordeu os lábios.
— Que importa! — Importa-me a mim. Dize-me alguma coisa. Insulta-me. Bate-me, se julgas com isso mitigar a tua dor, mas não me desprezes dessa forma.
— Seria um consolo físico... e muito fugaz, Chuck. Esperei cinco anos para ter uma outra espécie de consolo. — Trindade limpou as lágrimas com as pontas dos dedos e recobrou a sua serena valentia. — Quando te foste embora de Passo Estreito, tinha eu dezoito anos. Agora vou fazer vinte e três. Nesta terra as mulheres casam-se jovens, Chuck, mas eu não me importei de deixar passar esse tempo. Amava-te intensamente. Era um segredo que partilhávamos, com esperança, tua mãe e eu. Ela morreu e tu mudaste. Creio que perdi os meus dias sendo fiel a uma quimera absurda.
— Odeias-me muito, Trindade?
Ela tremeu e teve que voltar a morder os lábios para não romper em soluços.
— Sim — suspirou. — Odeio-te com toda a minha alma…
— Vou-me tirar de dúvidas...
— Chuck! — atalhou a jovem.— Não te atreverás a...
— Atrevo-me, sim... porque eu também te odeio da mesma forma. Não te pedirei nada se é certo que me aborreces, mas, antes disso, quero assegurar-me dos teus sentimentos... porque eles podem representar para mim Uma mudança fundamental da minha vida.
— Não julgues que me convences com palavras.
— Bem sei. Precisas de factos, Trindade, e tê-los-ás...
— Que vais fazer, Chuck?
— Vou beijar-te — respondeu ele, pousando ambas as mãos nos seus ombros — O primeiro beijo de há cinco, anos... e o último se assim o quiseres. Tens o direito de decidir. Escolhe, Trindade. Cinco anos separam os teus lábios dos meus. Agora, depois de tanto tempo passado, podes tirar a prova se um instante apenas bastou para avivar a fagueira que se consumia no meu coração,
— Não, não... Deixa-me! Já te disse que me deixes, oh...!
Chuck Camely atraiu-a com força para si e segurou a boca, sedenta, ardendo em brasa, de Trindade Gonzalez. Ela lutou e tentou resistir-lhe cerrando os lábios, para não provar as carícias do homem que intentava convencê-la com mentiras. Mentiras?
Foi um beijo grande, absorvente, o beijo que Chuck Camely lhe deu, depois de cinco anos de ausência.
Por fim, vencida, Trindade abraçou-o, apertando-lhe a cabeça entre os braços e as margaridas, esquecidas, caíram no chão. O vento soprou fazendo ondular as saias da mulher. Ali, unidos num amplexo, recomeçava a vida de um pistoleiro ressurgindo das tépidas cinzas que formavam o seu passado. Talvez acabasse de se encontrar a si próprio, quando já tudo parecia perdido.

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