quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

PAS426. Oração pela tradição e leis da fronteira

Anthony Dewey fazia parte do primeiro grupo de exploradores que haviam pisado aquelas terras. Em tempos havia lutado contra os índios, em defesa das terras que estavam a ser colonizadas. O seu corpo marcado por inúmeras cicatrizes mostrava que cometera não poucas façanhas. A maior parte da sua vida passara-a naquele bocado de terra. Ali haviam nascido Ben e Mary e ali enterrara a sua esposa, que morrera quase sem tempo de dizer adeus aos seus. Adorava aquele rincão de que não tencionava separar-se. E não se podia dizer que ali a vida fosse um perpétuo mar de rosas.
Tinha cinquenta anos. Apesar da idade, Dewey era um homem bem conservado, corpulento e activo. Vigiava todo o rancho e obrigava a sua equipa de vaqueiros a movimentar-se com uma precisão matemática, tarefa em que só um homem muito experimentado nos diversos trabalhos de uma fazenda conseguiria êxito.
Os vizinhos apenas podiam dizer bem dele. Tomando o comando dos seus vaqueiros, participara na verdadeira guerra desencadeada contra os ladrões de gado que infestavam a fronteira, até conseguir o seu qual total extermínio. Conhecia perfeitamente o género de homens que vivam no Oeste, sabia classificá-los, e muito poucas vezes era obrigado a modificar a opinião formada, mesmo quando esta provinha de urna observação rápida.
Junto da escadaria da entrada, ao pé do filho, a sua figura tomava proporções gigantescas. Mary, tendo espelhada no rosto a cruel angústia que a possuía, olhava de frente o autor dos seus dias, para logo encarar o rosto do irmão, como suplicando-lhe uma ajuda preciosa.
A cabeça doa vaqueiro moveu-se indolentemente. Tomou alento para falar e, virando-se um pouco para ela, disse:
--- Tudo isso que acabas de me contar é muito bonito. Sinto orgulho por ter uma filha com tão nobres sentimentos. Mas, por vezes, no caso de uma víbora, por exemplo, é perigoso fazer bem. Devo portanto deduzir que passaste toda a noite de vela, enquanto o bandoleiro dormia placidamente na tua cama, não é verdade? Ora diz-me: achas isso bem?
— Apenas sei, pai, que se tratava de um homem às portas da morte. Não tive coragem para fechar a janela, aguardando que de manhã os vaqueiros encontrassem o seu cadáver. Tens direito a fazeres de mim o juízo que quiseres, mas devo dizer-te que não me sinto nada arrependida do que fiz.
— Quer isso dizer que, em idênticas circunstâncias, procederias do mesmo modo, não é assim?
— Creio que não teria a mínima dúvida em repetir o que fiz.
Dewey não respondeu logo a esta afirmação da rapariga. Cravou os olhos no chão, abanou lentamente a cabeça e, por fim, disse:
— Não têm sido poucas as complicações que, desde pequenos, vocês me têm arranjado. Principalmente depois da morte da vossa mãe. Mas nenhuma como esta. Debaixo do roeu teto, a minha filha admite um fora-da-lei, um assassino procurado com afinco pela justiça que, com razão, o pretende restituir ao presídio donde fugiu! Um bandido que roubou, desta mesma casa onde se veio acolher, comida, cavalos e tudo o mais que lhe apeteceu! Vejam o dilema em que estou metido. Não. Não tenho outro remédio senão ir ao povoado e o mais rapidamente possível. Calou-se por momentos. No rosto de Mary podia-se ler toda a angústia que lhe consumia a alma. Parecia querer convidar seu irmão a que a ajudasse, mas Ben mantinha-se impassível desde o início da conversa, sem descerrar os lábios, nem ao menos dirigir um olhar de compreensão à irmã.
— Pensas ir denunciá-lo? — interrogou ela com voz trémula.
 — Não vejo outra solução. Os agentes da Lei considerar-me-iam cúmplice de um criminoso. Achas que um homem na minha posição pode arcar com tal responsabilidade? Toda a minha vida lutei para que este região ficasse livre de bandidos e se tornasse um lugar aprazível e tranquilo. Pretendes que eu rompa a tradição, renegue tudo quanto fiz e me apresente perante a comunidade como um protetor de indesejáveis? Procura compreender a situação, minha filha.
Apenas possa compreender que era um homem colocado numa terrível situação, um homem abandonado a si próprio, e a quem a morte rondava. Bateu à minha janela, pedindo asilo. Foste tu que nos ensinaste, a mim e a Ben, qual era a lei da hospitalidade no Oeste. Limitei-me a seguir os teus ensinamentos, quando o fiz entrar pelas traseiras do rancho. Agora pretendes desfazer o que me ensinaste ser uma boa ação. É possível que ele seja um criminoso, um homem completamente depravado. Mas nós é que nada temos a ver com isso. É à Justiça que compete julgar os delinquentes, não a nós. A tradição e as leis da fronteira já vêm dos nossos antepassados. Porque nos havemos de afastar do caminho que eles traçaram? Além disso, não creio que estejamos a lidar com um malfeitor. Lembrem-se do episódio que vos relatei no mesmo dia em que eles estiveram aqui no rancho e roubaram os cavalos e a comida. Quando lhe ia entregar o dinheiro e as joias que tinha herdado da mamã, e que ela tinha em tanto apreço, segundo nos disseste, ele recusou-se a aceitar fosse o que fosse. Assegurou-me que convenceria o companheiro de que nada tínhamos, mesmo enganando-o, a fim de que ele não nos causasse qualquer dano. O outro, o homem core quem ele vinha, esse sim, tinha Iodo o especto de haver chegado ao mais baixo nível de depravação moral. Ontem à noite, quando lhe dei guarida no rancho, disse-me que havia sido o seu companheiro quem disparara sobre ele, porque necessitava das provisões de ambos e dos dois cavalos para se escapar. Gostaria que não esquecesse o nosso dever de hospitalidade, pai, e lhe desses uma oportunidade para...
— Nem por isso deixaria de ir contra a Lei.
— Ninguém o viu chegar, não é verdade?
— Segundo dizes, de facto, ninguém o viu.
— Lembras-te daquela cabana que possuímos do outro lado do monte, no limite das nossas terras? Ben poderia ajudar-me a transportá-lo para lá esta noite. Ele está necessitadíssimo de muitos cuidados, uma boa alimentação, e uma contínua vigilância da sua ferida. Gostaria de ter o vosso apoio para poder levar a cabo o que eu considero uma boa ação. Posso contar com a vossa ajuda, pai?
Anthony Dewey não respondeu. Virou-se lentamente e, com passo medido, encaminhou-se para a entrada do edifício. Ben e a irmã seguiram-no imediatamente, ignorando por completo quais eram os desígnios do pai e o que iria suceder no momento seguinte.
Dewey deteve-se um momento em frente da porta do quarto de dormir da rapariga. Depois empurrou-a c entrou. Deparou-se-lhe um homem pálido, de faces encovadas, que estava meio sentado no leito. Este tinha os seus grandes olhos cravados nele, olhando-o fixamente, como se pretendesse adivinhar quais os sentimentos de que vinha animado.
Ben permanecia no corredor. Mary entrara afoitamente com o pai. Dirigindo um sorriso forçado ao ferido, apresentou:
— Este é o meu pai, Jerry: Anthony Dewey, dono desta fazenda. Contei-lhe tudo... o que se havia passado... e ele mostrou interesse em conhecê-lo...
— Gosto de ir logo ao fundo da questão, rapaz — cortou o vaqueiro. --- Não sou pessoa para perder tempo com rodeios, com meias palavras, quando tenho que expor um assunto. Pelo que vejo não está em situação nada invejável para poder defender-se e salvar a vida. Digamos mesmo que está num estado bastante melindroso. Acabo de falar com a minha filha. Contou-me a seu respeito muitas mais coisas do que eu estaria interessado em saber. Ela é minha filha e eu sinto orgulho por ver que tem bom coração. Mas lastimo que o empregasse tão mal, ajudando um bandoleiro, talvez, um criminoso. Tenho estado a pensar o que mais conviria fazer consigo. E acabei por concluir que não terei outro remédio senão entregá-lo às autoridades, para evitar que me venham pedir contas.
Jerry Tucson nem sequer pestanejou. Continuou olhando intensamente o seu interlocutor, sem que a cara lhe traísse a mais ligeira emoção. ro
Baixando a cabeça, replicou com voz débil:
— Tem todo o direito de fazer o que considerar mais justo, senhor. Mas se pretende avisar a Justiça, peço-lhe que me deixe sair deste rancho. Não gostaria de ter de defender a minha vida dentro dele.
— Não iria muito longe. Já pensou nisso?
— Sei-o perfeitamente. Mas as montanhas estão próximas. Sinto-me muito melhor e, na minha posição, não tenho por onde escolher. Tentarei o impossível. Agradeço tudo quanto fizeram por mim, em especial a sua filha. A minha sina é fugir, fugir sempre. Mas, para já, necessito prolongar a vida.
— Que pretende? Continuar a viver para poder praticar mais alguns crimes?
-- Não. Tomo Deus por testemunha como estou arrependido de tudo quanto fiz. Os criminosos, quando se veem perdidos, procuram atirar as culpas para cima dos outros, alegando uma pretensa coação exercida sobre eles por outros homens que os podiam dominar de qualquer modo. Eu não o faço. Confesso que fui apenas um imbecil ao aceitar dinheiro em troca da minha colaboração num assalto a um Banco. Mas posso declarar com íntima satisfação que nunca matei ninguém. Tenho uma irmã que vive num povoado situado no sul do Novo México. É possível que neste momento ela esteja em perigo e necessite da minha ajuda. Esta é a razão por que desejo continuar a viver.
-- A sua irmã sabe tudo o que corre a seu respeito?
— Infelizmente. Há muitos anos que não nos vemos. Fui um cabeça de avelã e abandonei o lar com o desejo e o entusiasmo do homem disposto a conquistar o Oeste, convencido de que estas terras selvagens se renderiam apena eu entrasse em cena. Devo reconhecer que fracassei por completo. No meu caminho não encontrei mais que desgostos, privações, sofrimentos e um constante soçobrar. Julgava-me com coragem e valor suficientes para os puder arrostar. E, por fim, vejo que sou um homem vencido. Agora só peço a Deus uma única coisa: que me permita conservar a vida e manter a liberdade até poder chegar junto da minha irmã.
Dewey olhou fixamente o ferido e perguntou:
— Está convencido de que ela tudo lhe perdoará, não é assim? De qualquer modo, porque está tão interessado em ir ter com uma pessoa que talvez já nem se lembre si? Isso jamais acontecerá. É mesmo essa certeza que me inspira tanto medo. Nunca um Tucson repudiaria um membro da família. Sempre nos mantivemos unidos e cultivámos o amor familiar até às últimas consequências.
Anthony avançou alguns passos, deixando-se cair numa cadeira. Mary colocou-se ao seu lado enquanto o filho permanecia de pé, à entrada da porta. Insensivelmente, tomara interesse por aquelas revelações do bandoleiro e desejava saber tudo quanto lhe dizia respeito.
— Receio não compreender o que está a dizer ----exclamou ele.
— Procurarei ser mais explícito. Desde que abandonámos o presídio de Canyon City que Buck Latimer insistia para que nos dirigíssemos lamente ao encontro de minha irmã. Estava absolutamente convicto de que ela nos ajudaria e faria tudo que estivesse na sua mão para nos facilitar a fuga através da fronteira mexicana. Mas eu discordei e opus-me tenazmente. Preferia morrer às mãos dos agentes da Lei a apresentar-me junto dela para lhe pedir tamanho sacrifício. Durante todo o tempo que durou a nossa fuga, ao longo desses intermináveis dias em que nos sentíamos como animais acossados procurando um covil seguro nas serranias, Latimer insistiu constantemente no seu plano. Continuei a recusar-me. Por fim, à falsa fé, levou-me a dizer qual era a sua atual morada e até a confessar que ela já não se devia recordar das minhas feições. Isto era o que ele queria saber. E eu fui tão tolo que de nada desconfiei.

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