quarta-feira, 7 de junho de 2023

CLF028.01 Regresso com quinze dólares e uma égua

O sol refletia nas veredas das colinas, enquanto o cavaleiro procedente do Sul avançava para a confluência dos dois riachos. Mais além estendia-se a cidade entre bosques de algodoeiros.

Brod Nolan puxou as rédeas para deter um instante a sua égua. O odor da água, dos tojos, da terra... reavivava nele as recordações. A égua escarvou impaciente e Nolan afrouxou as rédeas, para continuar adiante.

A comarca não tinha mudado depois de dois anos de ausência, mas com certeza que outras coisas haviam mudado. O sol irisava as gotas de água enquanto a égua cruzava o vau.

Pouco depois Nolan desmontava ao princípio da rua principal e prendia a égua em frente de um edifício de arejadas janelas, onde sobre a parte superior da porta se lia:

«BANCO DE CLIFF TOWN»

Atrás do «guichet», um funcionário levantou a vista de uma fileira de números e olhou para o homem que lhe perguntava:

— Francis Gorvin, está? O empregado observou minuciosamente a camisa suada, as joelheiras puídas, o amolgado e seboso chapéu e murmurou:

— O senhor Gorvin está ocupado. É para um empréstimo?

— É pessoal.

O empregado, levantando-se, foi até ao fundo, atrás de um balcão, onde um homem lia o jornal. Abandonando a leitura, Francis Gorvin encaminhou--se para o «guichet», contemplando, a princípio, o visitante, com olhos perscrutadores. Depois, já próximo, a sua expressão mudou de profissional para surpreendida.

—Brod! Brod Nolan! Ninguém me tinha dito que estavas na cidade.

— Acabo de chegar. E necessito de cem mil dólares. Francis. Como está o meu crédito?

— Cem... mil... — balbuciou o banqueiro.

Mas ao ver a expressão brincalhona de Nolan, agregou:

—Pois com certeza, meu rapaz, não tenhas dúvidas. O teu crédito é como ouro em barras. Entra para o meu gabinete e abrirei o meu cofre...

Francis Gorvin era um homem de cabelos grisa-lhos, robusto, de azígonas como maçãs e olhos azuis-claros. Houve um tempo em que Brod Nolan julgou que o banqueiro ia ser seu sogro.

— Agrada-me que haja, pelo menos, uma pessoa contente com o meu regresso. Mas creio que é você o único.

— Estás equivocado, Brod. Tens muitos amigos na comarca. Só porque mataste um homem, um homem que procurava matar-te...

Pela janela do gabinete, Nolan via a rua e o «Saloon» onde certa noite matara Lloyd Leblanc. Mais abaixo via o cárcere em que tinha ficado preso, até que em Junho fora libertado.

— Assim não pensava a sua esposa — murmurou Nolan.

 — A viúva de Leblanc não conhecia o marido como nós.

Mas era seu marido, não é verdade? — e sacando do bolso do colete um pequeno saco de pele, Brod Nolan abriu-o, vazando sobre a mesa moedas e notas.

Amontoou as moedas e, guardando quinze dólares, disse:

— Aqui estão duzentos dólares. O último pagamento.

— Com estes, são já quatro mil que depositaste na conta dela, rapaz. Queres um recibo?

— Não é preciso. Evelyn Leblanc é uma mulher sensível. Se soubesse de onde provém este dinheiro, não tocaria nele. E, se me permites um conselho, Brod, não podes ser toda a vida um louco.

— Isso em mim é já um hábito — sorriu Nolan. —Que história contou a Evelyn?

—Que uns amigos de Leblanc fizeram uma coleta depois do funeral e que eu dei ao dinheiro uma boa inversão.

— Porque será que todo o mundo acredita nas mentiras de um banqueiro, caramba? Bom, se você lhe contar a verdade, voltarei para incendiar o Banco.

— Ainda que lhe dissesse a verdade, ela não me acreditaria— e pegando na mão esquerda de Nolan, Gorvin contemplou as unhas partidas e as calosidades. —Não ganhaste este dinheiro baralhando cartas.

— Não, não ganhei — e não acrescentou mais nada.

Francis Gorvin não insistiu.

— Bem... se queres armar em D. Quixote, é lá contigo. De qualquer modo podias ter enviado este dinheiro. Portanto, não cavalgaste todas estas milhas só para me entregares pessoalmente os últimos duzentos dólares.

— Voltei para ficar. Procurar trabalho e ficar.

— Aqui, no vale?

— Porque não? Aqui me fiz homem, não é verdade?

—Bom... não esperes que a banda de música toque em tua honra nem que as autoridades te abracem.

—Não procuro carinhos nem amizades. Carla está na cidade?

— Não — e o banqueiro baixou a vista, manuseando uns papéis. — Lamento por ti e por Carla. Sabes que o inverno passado casou com o teu irmão?

— Sei... Enviaram-me um convite para a boda. Não se preocupe, Francis. Desejo que ambos sejam felizes. Tudo o que quero é começar uma nova vida.

— Pois que tenhas sorte. Porta-te bem — e sacudindo a mão de Nolan entre as suas, acrescentou: — Vem ver-me de vez em quando.

Na rua, Nolan deteve-se a enrolar um cigarro. Sentia-se um estranho. Voltava com quinze dólares no bolso, uma égua que apenas podia vender por trinta e fama de turbulento.

Depois do processo havia abandonado Cliff Town porque o salário de um vaqueiro era muito pequeno naquela região. Foi para as minas do Arizona, onde a mão-de-obra e suando dezasseis horas diárias, podia-se aspirar a um salário quase decente...

Atravessou a rua, entrou no armazém e escolheu uma manta índia, de cor vermelha. A cor favorita de Carla. Pagou os nove dólares que lhe pediram e, montando, abandonou a cidade.

Levava a égua a passo. Era um cavaleiro magro, requeimado por sóis e intempéries, de vivos olhos cinzentos, encaixado na sela com musculosa indolência.

Aos catorze anos, quando com seu irmão, órfãos, chegaram ao vale para residir com um tio doente, os vizinhos logo qualificaram o mais jovem dos dois Nolan como um potro rebelde e brigão. Foi fazendo jus aos seus qualificativos, até que o tio Emmer deixou o rancho a Hart, modificando o seu testamento.

Aos vinte e cinco anos, Brod Nolan aparentava mais idade, mas ó seu rosto continuava com a mesma expressão de desafio, pois os seus lábios sorriam facilmente. Nolan sabia rir-se de tudo, começando por si próprio.

Voltou a cruzar o vau, até avistar a casa de troncos, a casa onde havia crescido... A ampla cozinha, o quarto, o estábulo, os telheiros e o curral. Havia sido um rancho de solteirão, mas agora, de um arame pendiam roupas interiores de mulher, postas a secar.

Abriu-se a porta principal e uma mulher saiu par o terreiro, protegendo os olhos com a mão. E, de súbito, correu ao seu encontro, exclamando:

— Brod!

Desmontando, Nolan avançou com a mão estendida:

— Que tal estás, Carla? Boa, rija? Que tal, cunhada

A rapariga afastou a mão que Nolan lhe estendi rodeou-lhe o pescoço com os braços e beijou-o. Por um instante, Brod Nolan reteve-a com força. Resmungando, afastou-a e ela, recuando, comentou a rir:

—Não foi um beijo muito fraternal, Brod.

— Era o que eu devia à noiva. Atrasado, mas do coração.

Ela abanou a cabeça, examinando-o com u expressão carregada.

— Tu não tens coração, Brod. Todo este tempo sem escrever uma linha... nem sequer a Hart.

Tinha os olhos azuis do pai. Uma ruiva de cores sadias, com uma figura que fazia voltar os homens. Uma rica herdeira muito cortejada, que sempre tinha sabido ser agradável e sincera.

— Hart trata-te bem, rapariga. Estás muito gordinha.

—E tu pareces um esqueleto. Conhecem-se as costelas todas. Porque não nos avisaste da tua vinda?

Nolan tirou da sela o embrulho.

— O meu presente de casamento. Pouca coisa, mas com os meus melhores desejos de felicidade.

Enquanto ela desembrulhava o pacote, ele contemplava-a. Houve um tempo em que a tinha amado desesperadamente. Também haviam brigado com frequência, em repentinas explosões de mau génio, muito comuns nos dois. Mas ela voltava sempre, como que atraída por um fluido magnético. Todavia, ela não o amara o suficiente para abandonar com ele a comarca, depois do processo. A noite em lhe pediu que se casasse com ele, terminara em violenta discussão.

E agora era Carla Nolan, a esposa de Hart, a dona do rancho de Hart.

— É muito bonita, Brod. Um presente precioso! — e depois de acariciar o suave tecido da manta índia, passou a mão pelo ombro do colete desbotado de Nolan.

— Tens cara de fome... e de quem não possui um centavo. Como sempre.

— Acertaste. Onde está Hart?

—Por aí, pelo campo. Deve estar a chegar de um momento para o outro. Vou preparar-te qualquer coisa de comer e depois falaremos. Para já, abrirei uma garrafa para ti.

— Nada de bebidas, senhora — disse Nolan solenemente. — Sou um homem redimido, sóbrio, trabalhador..., etc. e tal.

— Tu, regenerado? Nada de vinho, mulheres e canções?

—Esse... esse sou eu. Um velho pecador arrependido.

Ia a levar o cavalo para o estábulo, quando ela perguntou:

— Não voltarás a partir? Ficarás, não é verdade?

Ele assentiu, e Carla acrescentou:

— Agrada-me sabê-lo, Brod. Não podes calcular a satisfação que me proporciona o teu regresso — e a cor rubra aumentou de intensidade nas faces tão femininas.

Um pouco confuso, viu-a desaparecer no interior da cozinha. Só então se dirigiu para o curral. Depôs a sela sobre uma cerca, estendeu a manta e olhou par o interior. Não havia ninguém. Mas sob o telheiro onde guardavam os carros viu um jovem ruivo remendando um avental de couro. Perguntou:

— Sabe onde posso encontrar Sol Green?

O ruivo examinou-o atentamente antes de responder:

— Aqui o patrão é Hart Nolan. Procura trabalho?

— Procuro.

— Pois, que eu saiba, aqui não trabalha nenhum Sol Green.

— Um negro gigante. O melhor atirador de laça do Território.

— Ah, já sei... Já me recordo. Há dois anos qui se despediu.

— Foi-se embora do rancho? — murmurou Nolan incrédulo.

Mas não insistiu. Não era da sua a conta forma como Hart tratava o pessoal.

Mas Sol Green sempre havia trabalhado no «Rancho Doble Z», desde que Elmer Nolan registara a marca do gado.

Atravessava o curral quando um homem forte surgiu no pátio, montando um cavalo preto.

— Sou eu, Hart — silabou Brod, lentamente.

Primeiro, Hart Nolan, além de surpreendido, franziu o cenho. Depois, o seu rosto carnoso sorriu. E disse num tom inexpressivo:

— Olá, Brod. Como estás?

— Estupendo. E tu?

— Rijo. Viste Carla?

— Vi. Felicito-te, Hart. És um homem com sorte.

— Sim, eu sei... — e esfregou as palmas das mãos nas costuras das calças.

Um homem forte, sóbrio, de vinte e nove anos, de profundos olhos verdes que contemplavam o seu irmão com certo receio.

Não era tão alto como Brod, mas mais largo de ombros e falava lenta e pausadamente. O rosto parecia necessitar constantemente de fazer a barba. Como Brod tinha herdade o proeminente queixo e o nariz achatado, significativo de temperamento obstinado.

— É a tua sela? — perguntou, apontando com o polegar a cerca; e ao assentimento de Brod, acrescentou: — Deixa-a no curral. Já lá vou ter contigo... —e afastou-se com o cavalo, esfregando-lhe o pelo suave com a mão rude.

Depois foi até ao telheiro dos carros e esteve a falar com o ruivo. Reclinando-se contra um poste do curral, Brod pensou que este era todo o afeto que seu irmão era capaz de demonstrar. De qualquer modo, apreciava-o apesar da diferença de carácter que existia entre os dois.

«E desta vez», pensou Brod, «não lhe darei motivos para o encolerizar. Tratarei de ser agradável, ainda que rebente». Hart apareceu enxugando o rosto com o lenço, e, sem preâmbulos, disse:

— Ontem vi a senhora Leblanc.

— Ah, sim? E que tal está?

— Melhor do que pensas. Casa-se no próximo mês.

— Melhor para ela. Quem é o aspirante a marido

— Ron Miller.

— Miller?... Tens a certeza?

— Foi ela mesmo quem mo disse.

Brod Nolan começou a rir, divertido, mas o grunhido do irmão interrompeu-o:

— Onde está a piada? Como sempre, tens um estranho sentido de humor.

—É que estava a pensar numa coisa realmente engraçada. Miller é rico e possui a maior parte do dinheiro do Banco de Francis. E eu, durante este tempo todo, preocupado com ela.

— Tu nunca te preocupaste com ninguém. Fugiste daqui, deixando Evelyn atrapalhada. E não foi graças a ti que ela conseguiu sobreviver...

Brod notou que os seus músculos se retesavam. Mas dominou-se e, a sorrir, disse:

— Bom... O importante é que ela conseguiu solucionar o seu problema.

— Assim é, de facto. Depois desta visita, para onde pensas ir?

— Para parte nenhuma. Preciso de trabalho.

— Aqui? Queres trabalhar aqui?

— Sim. É isso que te peço. Uma oportunidade.

— Não contrato «pistoleiros».

Brod arqueou as sobrancelhas.

— «Pistoleiros»? Mas eu nem sequer trago revolver...

— Não tardará muito que arranjes um.

— E porquê?

— As coisas mudaram muito desde que tu partiste. Nito sou muito popular entre os granjeiros de «Las Riberas».

— Bom... Tenho ou não trabalho no «Doble Z»?

Olhando-o nos olhos, Hart Nolan bateu com o tacão da bota no solo, como um touro escarvando...

— Tenho o pessoal completo.

— Escuta, Hart: já não sou uma criança rebelde, nem fácil de enganar.

— A que te referes?

— Ao teu pessoal. Tens só três homens. Deitei uma vista de olhos aos currais... E neste rancho são precisos, pelo menos, seis vaqueiros.

Hart Nolan ruborizou-se.

— Não tens direito algum a este rancho. Quando o velho morreu, recebeste o que ele achou justo.

— Eu não me queixo. Deixou-me quinhentos dólares. Quinhentas vezes mais do que eu merecia. E se não me queres ver por cá, dize-mo claramente.

Hart apertou as mandíbulas. Como o seu silêncio se prolongasse, Brod voltou a falar:

— Tu, és toda a família que possuo, Hart. Sempre pensei que aqui encontraria trabalho.

— Pois enganaste-te. Não te quero aqui nem de graça.

— Bom — suspirou Brod. — Não lutaremos por isso.

Hart corou e meteu a mão no bolso, de onde extraiu duas moedas de ouro.

— Aqui tens vinte dólares. Suponho que precisarás de qualquer coisa...

Brod Nolan olhou fixamente as duas moedas reluzentes e depois dirigiu-se para o curral.

Estava a aparelhar a égua quando Carla surgi a correr.

— Brod! Onde vais? Que se passou?

— Dize-lhe tu, Hart.

Hart murmurou entre dentes:

—É um assunto tão doloroso como um dente furado.

— Que sucedeu? Tens de mo dizer! — exigiu ela segurando o marido por um braço.

Hart, colérico, exclamou:

— Volta para casa, Carla!

— Não é preciso — disse Brod. — Eu vou-me embora.

— Queres dizer-me o que se passou? — gritou ela. Que lhe disseste, Hart?

— Pois vais sabê-lo! — vociferou Hart Nolan. — El sempre traiu aqueles que tentaram ajudá-lo. Sempre armou conflitos. Mas aqui não armará mais conflitos Cansei-me de lhe limpar o nariz.

—É uma forma muito carinhosa de dar as boas--vindas ao teu irmão — disse a rapariga, irónica.

— Vai-te, Brod! Há dois anos que perdeste todo o direito a um bom acolhimento da minha parte.

— Tens razão, homem, tens razão — afirmou Brod, montando a cavalo. — Uma pergunta apenas: onde se encontra Sol Green?

— Não sei.

—O ruivo disse-me que ele se tinha despedido. Porquê?

— Porque hei-de sabê-lo? — replicou Hart Nolan.

— Bom, eu darei com ele — afirmou Brod, lentamente. —E se me mentiste, armarei conflito. Sim, irmão, um conflito dos diabos. Adeus.

E, esporeando a montada, abandonou o «Doble Z».

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