Valerie Louis podia ser tudo no mundo, menos a personificação do milagre. Era formosa, sugestiva, tentadoramente sensual e provocante, de beleza singular e mais singular personalidade. Mas de tudo isso a possuir dotes milagrosos, ia um abismo. Os seus poderes acabavam exatamente onde terminavam os seus encantos físicos.
E sem dúvida, para o homem encerrado aquela noite na prisão militar de S. Domingo, Valerie Louis ia originar o grande milagre com que o preso já não contava.
Chegou na noite em que S. Domingo pensava na terrível e ameaçadora Lei de Lynch, pois todos os habitantes julgavam o preso culpado da espantosa carnificina da diligência. Chegou numa carruagem particular conduzida por ela própria, e logo deu conta de que algo misterioso e violento pairava no ambiente, não pensando que a sua chegada iria afetar diretamente tudo isso.
Poucos minutos depois o empregado da Posta de S. Domingo, propriedade de um mestiço nascido no México, era o único que se via naquele lugar. De modo que foi ele quem recebeu Valerie.
A sua entrada no «saloon» foi acolhida com fracas amostras de admiração por todos os sujos clientes do bar. Tudo isto podia parecer de mau-gosto a qualquer rapariga chegada do Este. Mas não a Valerie, que se sentiu picada no seu orgulho de mulher sensacional, capaz de alterar a vida de cidades como Santa Fé, Dallas, Santo António, Tucson e Abilene, sempre que aparecia espetacularmente na porta de qualquer sítio onde houvesse homens. Irritada, olhou o mestiço que a seguia com as suas duas malas, e perguntou-lhe:
— Que classe de aldeola é esta, que nem sequer fazem caso das mulheres?
O mexicano, que estava habituado a tratar com senhoras, mas no sentido oposto e ainda no meio termo, muito frequentes na região, não soube classificar a curiosa dama que seguia, e limitou-se a responder com um leve encolher de ombros:
— Tem de desculpá-los, pois costumam ser bastante galantes. Mas esta noite há factos extraordinários. Nem sempre dispõem de um preso, autor ou cúmplice de uma carnificina, a quem podem linchar dentro de uma hora pouco mais ou menos.
— Linchar? — Valerie mostrou o seu desagrado ainda que não desse sinais de temor, escândalo ou incredulidade.
Isto convenceu um pouco o mexicano de que Valerie, apesar da sua juventude, era «cão velho» em terras e costumes do Oeste. Ela continuou:
— E que classe de matança foi essa? Tiroteio?
— Oh! Tiroteio se o houve, não parece —riu o mestiço. — Mas o mal é que os que receberam as balas não se puderam defender, pois viajavam na diligência e depois de terem o corpo bem cheio de chumbo, cortaram-lhes as cabeleiras.
— Devia ter começado por aí — atalhou Valerie Louis. —Refere-se a um índio...
— Não, não é um índio. — O sangue subiu à face do mexicano ante a dúvida. —É branco e bem branco. Um ianque sulista ou coisa que o valha. E também guia dos apaches noutro tempo, Por isso deve tê-los ajudado na tarefa. Mau tipo esse renegado.
—Bem, então que pague na forca o seu crime e quanto mais depressa melhor, para que a gente de S. Domingo recorde que ainda há mulheres — disse ela com seriedade, iniciando a subida para o andar dos quartos.
No corredor superior deteve-se, porém, e chamou o mestiço:
—Um momento, amigo... disse que foi sulista e guia índio também?
—Sim.
—Sabe de onde vinha esse homem?
— De Santa Fé.
As cores fugiram do rosto de Valerie, cujo generoso seio se agitou debaixo do tecido brilhante do seu vestido. A sua voz formosa enrouqueceu, ao dizer:
—E o seu... seu nome... qual é?
—Não estou certo... Creio que lhe chamam Shain ou Zane ou coisa parecida — murmurou o mestiço.
—Zane! Zane Preston! — foi apenas um sopro de voz.
Trémula, apoiou-se de costas na parede do corredor.
— É isso! — concordou vivamente o mexicano. —Zane Preston é o nome. Conhece-lo, senhora?
Mas ela já não o ouvia. Tinha dado meia volta, com uma energia incrível, e descia a escada com a velocidade de um raio. Foi em vão que o mestiço a chamou. Ela ia repetindo:
—Zane... Zane Preston... Mas não é possível... Ele não pode ter feito isso... Se há algo no mundo que ele não fazia, era exatamente isso. Não posso acreditar... Zane...
«Oh, não!».
Cruzou a praça, sem se impressionar com a presença de numerosos grupos, onde as palavras, «forca», «linchamento», «justiça» e «assassino» soavam com alarmante frequência à sua passagem, vendo caras iluminadas por archotes, e cujo número engrossava na Rua Maior e em cujas linhas se notavam propósitos nada tranquilizadores.
Quando alcançou o muro de pedra, do Forte S. Domingo, dois soldados armados de rifles cortaram--lhe a passagem sem dizer palavra.
—Quero ver o chefe da guarnição—disse Valerie, secamente.
—Impossível, senhora—disse um das soldados. —Há perigo de linchamento contra o prisioneiro militar, e o sargento O'Hara, chefe do posto, deu ordens muito severas a respeito dos civis. Ninguém pode entrar esta noite, nem de visita.
— E não há outro subordinado com 'autoridade, a quem possa falar? —disse ela, impaciente.
—O cabo Wilson —observou um dos soldados, que, acto-contínuo, voltou a cabeça e chamou: — Eh, cabo! Pode chegar aqui um momento? Está aqui um monumento pedindo para vê-lo. Que demónio está a dizer? começou uma voz jovem, aparecendo um outro militar com divisas na manga.
Ficou parado olhando a loira visitante, assobiou entre dentes e acabou por avançar com respeitosa deferência, debaixo do olhar fixo de Valerie.
—Senhora, não creio que S. Domingo tenha dado coisa assim.
—S. Domingo só dá moscas, calor e areia — riu ela, pondo-se imediatamente séria. — Não sou daqui, cabo. Mas ouvi dizer que tem um prisioneiro, um homem branco acusado de um crime horrível.
—Pois ouviu perfeitamente—sorriu Wilson. — E que tem isso?
—Cabo, posso falar-lhe um momento... a sós? — e sorriu-lhe de forma provocante.
Wilson tossiu, duvidando. Olhou para os soldados, que sorriam com ironia, e acabou por dizer:
—Está bem. Farei uma exceção consigo. Venha ao meu gabinete, caso não se importe. Creio que podemos falar a sós. Ê ali junto ao corpo da guarda
—Bem, então adiante—e avançou por entre os soldados sem se intimidar.
— De verdade que se atreve a entrar e a falar a sós comigo—estranhou Wilson.
—Atrevo-me a tudo, cabo—foi a fria e impressionante resposta.
O cabo não replicou, e um momento depois, entravam num reduzido alojamento, contíguo ao cubículo onde os soldados jogavam as cartas, e riam ruidosamente.
Dividia-se em duas partes: um dormitório com uma camarata ao fundo, e outra com uma mesa, três ou quatro cadeiras e outras peças carunchosas e cheias de pó. Wilson explicou:
—Aparte o sargento O'Hara, chefe do destacamento, sou o único a ter alojamento individual.
—Ora bem, minha senhora, a que devo a sua visita?
— Conheço o preso, que está em vosso poder, e que se chama Zane Preston —disse ela sem rodeios.
— Na verdade é esse o seu nome. Disse que o conhece?
— Muito mais do que gostaria — alguma coisa parecido com rancor brilhou nos seus olhos. — Mas se Zane é capaz de muitas coisas más, na verdade ninguém acredita que tenha ajudado os apaches a matar brancos, exceto um deficiente mental.
Wilson sorriu; ela continuou:
— Neste momento não nos une uma grande amizade. Zane é um vagabundo, um valdevinos que sempre pensou em si, em primeiro lugar. «Ninguém lhe interessa, e nunca mudará. Mas acusá-lo dessas atrocidades é um verdadeiro disparate. Não posso permitir que o linchem, e creio que vocês, não bastarão para o defender dos «vigilantes» se o povo de S. Domingo se lembra de ressuscitar hoje esse velho e bárbaro costume.
— Você conhece lindamente o Novo México, eh?
— Eu conheço bem todo o país, todas as cidades e todos os lugarejos mais remotos, cabo. Não sou uma senhora, no verdadeiro sentido da palavra, mas não sou tão pouco uma mulher fácil, mas no entanto vivo a minha vida, tenho dinheiro, e boas amizades em toda a parte. Uma vez jurei vingar-me desse vagabundo do Zane, mas seria incapaz de mover um dedo contra ele, e no entanto daria a minha vida por ele em qualquer momento.
—E agora... pensou que dando a sua vida pode salvar a de Preston?
— Não. Há alguma coisa que valerá mais para certas pessoas que a vida de uma mulher— sorriu--lhe.
Abriu a sua mala, e tirou um rolo de notas. Todas elas grandes. Levantou-as lentamente, em forma de leque entre os dedos.
—Ora, cabo...
—Dinheiro? —Wilson susteve o gesto, ante o brilho de cobiça dos seus olhos. —Não, senhora, eu não me vendo. O suborno não se admite no exército.
—Claro que não. Quem disse que o suborno? Eu mostro-lhe dinheiro. Não sei ao certo quanto há aqui, se três se quatro mil dólares. Uma bonita cifra. E ainda há mais. O suficiente para que um homem procure outra vida longe do Novo México, S. Domingo e do sargento O'Hara...
—Você está tentando subornar-me neste momento. Oferece-me dinheiro para ajudar a fugir o seu amigo e desertar em seguida, com o dinheiro que me der. Não é isso?
—Não, não é isso, cabo. Trata-se simplesmente, de lhe apresentar uma oferta, limpa e clara, que se você a recusar me obrigará a conseguir por meios pouco limpos. E se aceitar, em nada desabonará a sua conduta militar, o que eu pretendo é simplesmente, evitar que Preston seja linchado, não deixá-lo escapar por negligência sua. Em resumo, existe um meio de salvar a sua vida, se for atacado pela população e se esta conseguir eliminar os escassos soldados? Responda-me a isto, cabo Wilson, e então receberá este dinheiro, a título de compensação e de informações... e do que essas informações possam originar. Compreende a minha pergunta?
—Sim — Wilson franziu o sobrolho. — Compreendi a pergunta, mas o problema continua sendo difícil. Se eu indico um meio de salvar Zane Preston, que na minha consciência está inocente do delito de que é acusado como você assinalou, é possível que ele a leve a desejar pôr em prática esse meio. E isso, de certo modo, iria contra a minha lealdade para com o exército.
— Mas não significa lealdade a uns linchadores mais fortes que vocês — sorriu ela zombeteira.
—Há ainda outro problema: sacou e disparou contra o meu superior, sargento O'Hara.
—Isso não é delito que mereça a forca às mãos dos «Vigilantes».
—Está bem; admito que não será justo que isso aconteça e estou certo que vai acontecer—exclamou Wilson. —Escute. Só posso fazer uma coisa sem faltar aos meus deveres. Se os linchadores conseguirem vencer a nossa defesa, forçosamente passiva, para evitar uma nova mortandade entre esses infelizes, cuja culpa é estarem cegos pelo seu próprio afã de fazerem justiça rápida e segura, ajudarei Preston, tendo em conta exclusivamente este caso. Mas se não nos atacam, nem nos vencem, Preston continuará sendo, com ou sem razão, um preso militar.
— Obrigado, cabo. — Ela deu-lhe o dinheiro. —Era o que eu desejava saber.
—De todos os modos, não mereço tanto — sorriu Wilson. — Espere até vermos se o salvamos... E então poderemos falar sobre esse assunto.
***
Zane Preston acercou-se das grades e olhou preocupado, para o numeroso grupo de homens irritados, como uma impressionante massa rolante que se acercava da débil barreira de soldados que O'Hara comandava com gritos estridentes, mas sem grande convicção em enfrentar o perigo duma batalha com os linchadores.
A luz dos archotes fazia bailar as sombras de uns e outros, em dantesco espetáculo, precursor da morte e desastre para Zane. O jovem não se sentiria tão inquieto se tivesse uma arma. Mas ali, indefeso e preso, que poderia fazer ante uma multidão febril pelo instinto primitivo de Lynch?
Surpreendeu-o um ruído no tecto da cela, quando umas das Lages de pedra, deixando ver por um momento a claridade fria e distante das estrelas. Alguém estava abrindo uma saída no tecto do calabouço. Mas de qualquer modo, ele não podia tentar nada, pois a altura era grande para ser alcançada por um salto. As paredes, por onde seria fácil subir estavam muito afastadas da abertura.
—Eh, Preston I— chamou uma voz muito baixo. —Rápido, antes que invadam o pátio do forte!
E uma grossa corda, sem nós corrediços, chegou até ele, ondulando suavemente, como a mais bela promessa de salvação, no momento em que a visão de uma corda tinha um significado completamente oposto.
Preston era um homem rápido quando necessário entrar em ação. Não perguntou nada nem pediu mais explicações. Também não podia perder tempo já.
Saltou, agarrando-se com ambas as mãos, e escalou felinamente alcançando rapidamente a abertura feita no tecto, e aí encontrou o cabo Wilson, que o esperava escondido sobre as pedras mal colocadas que formavam o tecto da cela, e segurando numa das mãos o seu «Colt» e na outra a corda, que estava presa a uma das pedras.
—Depressa, Prestou, apenas tem tempo de fugir—murmurou-lhe Wilson.
—Tome estes revólveres, salte para este lado, e corra em linha recta até ao muro, e escale-o o mais rápido possível. Do outro lado encontrará um meio de fuga! Adeus e boa sorte! E se o capturarem, lembre-se que eu não sei nada disto. Fará isso por mim se fracassar?
—Farei tudo o que seja por você Wilson —disse Zane, surdamente. —Não esquecerei nunca o que acaba de fazer. Pois esqueça-o, porque me recompensaram, devidamente, pelo favor. Adeus.
Neste momento o grupo de linchadores, empunhando armas, archotes e cordas com o fatídico nó, dispostos a colocá-las no pescoço de Zane, invadia em 'avalanche o pátio do forte, tão fracamente defendido por aquela escória do exército da União.
Preston, sem perda de tempo, apertou a mão do cabo, e correu para a escura ruela que dividia a cela e a parede posterior da velha Missão utilizada como forte, e rápido, escalou pelas salientes pedras deste, onde uma nova voz, num murmúrio que quase não se ouviu, lhe disse da sombra:
—Vamos, Preston! Não há tempo a perder!
A voz era-lhe familiar, mas não se deteve a recordá-la, porque já a população de S. Domingo, ébria de justiça vingativa e cega, assaltava a cela, agora vazia. Imediatamente os seus gritos de desilusão e de fúria, enchiam o 'ar quente da noite.
Mas nesse momento, Zane Preston, tateando na sombra encontrava um cavalo esperando por ele. Saltou agilmente para a sela e o lançou em louco galope, sentindo nas suas costas o outro cavalo montado pela pessoa que o esperava na escuridão. De novo a sua voz lhe chegou com frases curtas e rápidas:
—A direito e em direção dos arredores Temos de sair da povoação! Vamos para Santa Fé!
Zane Preston gostaria de discutir de boa vontade essa decisão. Não lhe interessava seguir aquele caminho, mas também não era justo discutir com quem o ajudava num momento tão grave, e ainda com riscos da própria vida.
De modo continuou para a frente, seguindo fielmente, as instruções recebidas. Rapidamente se iniciou a perseguição ao fugitivo. Mas por muito rápido que o grupo se organizasse, buscar cavalos, selá-los, e galopar na pista do preso que se escapava, Zane Prestou confiava em aumentar a distância e despistá-los.
Em breve se encontrou em pleno deserto, rodeado pela planície branca, debaixo da luz das estrelas, e as sombras das dunas notando-se à distância o tom azul límpido do céu, voltando o rosto, notou, com surpresa, que o seu companheiro de fuga mantinha o mesmo galope do seu cavalo, sem distanciar-se uma jarda dele, apesar de ter tirado o maior rendimento do animal que montava.
Um grito de assombro escapou dos seus lábios ao reconhecer o cavalo que o seu salvador montava. «Lucky»! Mas «Lucky» nunca admitiu que ninguém o montasse. Ninguém, senão o próprio Zane, seu dono... e outra pessoa. Uma pessoa que havia anos não subia para a sua sela. Preso de um súbita lembrança, como que um pressentimento ao evocar a voz familiar que escutou na escuridão, diminuiu o galope, até ser apanhado pelo outro cavaleiro.
Uma nova exclamação partiu dos seus lábios ao notar que era uma mulher vestida de amazona. Aquelas bonitas pernas de acetinada pele. Não era preciso levantar a cabeça. Conhecia a pessoa que o acabava de salvar. Aquelas pernas eram dela, não podiam ser de outra pessoa. E ninguém, salvo aquela mulher, conseguiria montar «Lucky» com a dócil submissão deste.
— Valerie! — exclamou, admirado. —Tu!
— Sim, Zane. —A voz da formosa amazona chegou-lhe envolta num silvo de ar em torno de si e no meio dos cascos sobre a terra argilosa do deserto. — Eu mesma... Os fantasmas do passado voltam, não é verdade?
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