Carter suspirou, resignado, e aproximou-se do doente. Não teve de se esforçar para concluir o que prematuramente tinha admitido. Nada contribuía para que modificasse o diagnóstico inicial. A ferida era grande, com orifício de entrada pelas costas. E sangrava com abundância vindo a hemorragia misturada com coágulos negros e secos.
— Que lhe parece?
— Responda antes à minha pergunta. Há quanto tempo?
—. Dois dias ---- confessou Luker, depois de uma pausa. — Mas, isso pouco importa.
— Pelo contrário. Importa muitíssimo.
— E então?
— Suponho que preferirá a verdade sem rodeios.
— Claro.
— Não há remédio. A infeção dominou-o. O seu coração deixará de bater, dentro de umas horas.
O forasteiro semicerrou as pálpebras, friamente, e os seus penetrantes olhos incolores procuraram os do médico.
— Essa não é a verdade. Tem de o salvar. Faça alguma coisa.
— Não há remédio — repetiu calmamente o doutor Carter.
— Extraia a bala. Assim acabará a infeção.
— Talvez não saiba, Farson, mas se este homem vive ainda é graças ao projétil. Está alojado debaixo da víscera cardíaca, roçando o extremo inferior. Tem servido de tampão e por isso o sangue tem ido saindo pouco a pouco. Se lha extraísse, seria como quem abre a válvula dum lavatório. A pequena quantidade de sangue que ainda lhe resta sairia em golfadas e deixá-lo-ia exangue em pouco tempo.
— Tenho ouvido falar em qualquer coisa que se chama transfusão. Tenho cinco homens dispostos a dar sangue.
— Felicito-o. Mas, talvez também já tenha ouvido falar de uma coisa chamada gangrena. Olhe os bordos da ferida. Está tudo gangrenado.
Farson apagou o sorriso dos seus lábios. Pela primeira vez se lembrava de que o doutor Carter não pertencia ao seu bando. Isto tornava-se terrível para um homem tão acostumado a mandar e a ser obedecido como ele. Não aceitaria a negativa que podia desprestigiá-lo perante os seus camaradas.
— Opere-o — ordenou. --- Não consinto que o deixe morrer.
— Não sou eu mas sim vocês que o mataram, obrigando-o a cavalgar dois dias seguidos. O pó, o suor e o sangue...
— Tire a bala! ---- gritou Luker, aproximando as mãos das armas.
Carter ergueu o queixo e suportou, desafiante, o seu olhar furioso. Não tinha medo, talvez porque moralmente a sua consciência estava limpa.
- Eu avisei-o, Farson, — respondeu. — Mas, vejo que estudou mais Medicina que eu. Porque não se encarregou você pessoalmente de o curar?
— Estamos a perder um tempo de vital importância para Hammer. Também eu o aviso de uma coisa. Salve-o... ou mato-o. Uma vida em troca de outra. Aposto que o encontra menos grave agora.
- Em trinta anos tenho ouvido muitas ameaças parecidas. O curioso do caso é que tenho passado centos de certidões de óbito... e eu continuo vivo.
—.Se me conhecesse bem, compreenderia que não gosto de ameaçar em vão. Quero que esse rapaz volte a cavalgar comigo e não me interessam as suas explicações de infeção, gangrena e mais disparates. Para a frente, doutor. — Moveu velozmente a mão direita e um comprido revólver de seis tiros surgiu nela, apontando-lho direito ao estômago. — Decida-se.
— Sempre existe uma possibilidade.
— Sabia que «isto» o obrigaria a mudar de opinião.
- Ainda que não seja aconselhável forçá-la neste caso — completou Carter. — O ferido não está em condições.
— Prove. Ordeno-lhe que tente essa possibilidade.
— Para ele será antecipar-lhe a morte.
— Você tem boas mãos. — O revólver deixou escapar o seu metálico estalido ao ser armado o percutor. — Lembre-se de que estou a apontar contra si... e que o preço é a sua vida.
O médico, olhando-o, desdenhoso, voltou-lhe as costas. Sem se preocupar mais com o azulado «Colt» que o outro lhe apontava, abriu uma das vitrinas e tirou vários instrumentos, compressas, algodão e uma garrafa do um líquido transparente.
— Vou tentar tudo — disse. — Mas, não pelo revólver nem pela ameaça. Seria um prodígio se ele sobrevivesse à operação.
— Então, considerá-lo-ia um deus... e até lhe pediria perdão, doutor Carter. Comece. O tempo passa depressa.
Embora esta recomendação fosse descabida, o médico absteve-se de objetar. Com hábeis gestos, dispôs os instrumentos numa bandeja e concentrou-se na intensidade da delicada tarefa. Rasgou a camisa até deixar uma espaçosa abertura por onde pudesse trabalhar sem que alguma coisa o impedisse. Molhou um bocado de algodão no líquido do frasco, cujo odor forte se espalhou pelo consultório, e lavou a ferida. A seguir, sério e grave, pegou num bisturi e deu dois golpes, separando os bordos com pinças. Não sangrava. Qualquer coisa, palpitante, estremecia por trás do avermelhado osso de uma costela.
— Tem o coração à prova de balas — disse, rindo, Luker. — Ainda funciona.
— Está meio parado — resmungou Carter, em cuja testa brilhava agora o suor. — Afaste-se da luz, por favor.
O homem do revólver assim fez, embora não deixasse de observar os manejos do médico na sua surda luta para vencer a morte. Ajudado por outra pinça, com sumo cuidado, foi extraindo o desfigurado projétil, achatado na ponta. Uma golfada de sangue, morno e espesso, tingiu-lhe os dedos. Depois, a hemorragia foi aumentando, apesar das compressas e enchimento de algodão e da rapidez com que Carter a secava com a mão esquerda. Ao sair a bala, Hammer remexeu-se debilmente e exalou um suspiro. — Vive! — gritou Luker, com os olhos brilhantes. Salvámo-lo!
— Acaba de falecer — declarou Carter, baixando a cabeça com sincera pena. — O tampão deixou escapar a sua existência... para sempre.
Luker contraiu as feições, adquirindo uma expressão bestial. Afastando o médico com um, empurrão, aproximou-se do Hammer sacudindo-o com violência e gritando-lhe que voltasse a si. O corpo, ainda morno, não respondeu às suas ordens mas o foragido continuou a abaná-lo até que a cabeça do rapaz pendeu para a beira da marquesa e as suas pupilas vidradas muito abertas olharam o teto do quarto, com mortal fixidez.
— Que se passa? Responda, doutor!
— Está a sacudir um cadáver.
— Não, pode ser!
— Já lhe tinha dito que era um caso perdido. Tentámos a única coisa possível. Mas, estava praticamente morto quando o trouxeram à minha casa. Resta-lhe a bala. Talvez lhe sirva para recordar que...
— Foi você! — gritou Luker, com o olhar desvairado. — Não o negue!
O doutor Carter contemplou-o com serena calma, dono dos seus nervos.
— Sim -- admitiu. — Fui eu. Tentei arrebatar à morte uma presa que tinha conquistado havia algum tempo. Convém que saia a dar a notícia aos seus companheiros. Devem estar desejando conhecer o resultado...
— Você é um assassino. Um indecente charlatão. Avisei-o de que ou salvava Hammer ou corria a mesma sorte!
Carter encolheu os ombros e, amargamente, o seu olhar deteve-se no ensanguentado rapaz que ia adquirindo rigidez. Mentalmente, completou o seu pensamento, sundo às pragas que Luker Farson soltava, furioso. Era pena que tivesse morrido tão novo. A vida talvez ainda lhe pudesse oferecer os seus melhores frutos pois até ali só devia ter encontrado espinhos, unido a um selvagem como Luker.
— Volte-se!
Foi um bramido, um rugido feroz que destilava veneno e ódio incontidos. Ao virar-se, o médico deu de cara com um homem que lhe apontava o revólver, sem o menor vestígio de humanidade. Refulgia o crime no seu olhar descolorido e a sede de vingança — uma vingança que a injustiça transformava em abjeta — crispava a boca cruel. Não pôde evitar um estremecimento.
— O prometido é devido — sussurrou Farson, sem paliativos, curvando o indicador em torno do gatilho do «Colt». — Adeus, doutor.
— Espere, louco! Não compreende que...
Pum! Carter, aterrado pela escalafriante verdade que lia naqueles olhos, tentou lançar-se sobre ele, mas o vivo clarão da. detonação cegou-o e a bala derrubou-o, raivosamente, para o lado... Pum! Desesperadamente, sobrepondo-se à dor, esforçou-se por se levantar, mas o segundo tiro, dado à queima-roupa, projetou-o para trás, indo chocar com a vitrina mais próxima.
Invadiu-o a debilidade da morte e, ao cair, já não pôde ouvir o estilhaçar de vidros produzido pelo móvel ao ser derrubado. Puni! O terceiro e último tiro de Luker Farson trespassou a cabeça de um cadáver, destroçando-lhe a testa e perfurando-lhe a nuca. Um assassínio a sangue-frio, horrível e brutal, que só podia ser executado por um ser de tão maquiavélicos instintos.
Frio, tranquilo e quase risonho, Farson passou a vista pelo homem que pouco antes tanto se empenhara para salvar Hammer. As suas almas seguiam já o mesmo caminho. A visão da selvajaria cometida contribuiu liara acalmar a sua cólera homicida. O arrastar das portas de correr arrancou-o da sua contemplação e, ao mesmo tempo, viu irromper na clínica os seus amigos, armados e vigilantes. Um grito de espanto, o único a ser ouvido, escapou-se da garganta do taberneiro Pitchman, que teve de, se encostar à parede, ao descobrir o que se passara com o respeitado e querido doutor Carter. A bárbara agressão deixou-o aniquilado.
— Julgámos que estavas em perigo — explicou Westay. — Como foi?
— Matou Hammer — declarou Luker. torcendo a boca. — Grande canalha! Tive de lhe pagar na mesma moeda.
— Bem feito — aprovou, sorridente, Grapes. — Desde que o vi, que me pareceu um tipo abominável.
Luker acionou o extrator e deitou fora as cápsulas sem préstimo, tratando de repor as munições com os cartuchos do cinturão. Deu várias voltas ao revólver com a mão e guardou-o novamente, com agilidade de quem tinha grande prática.
— Não fiquem aí parados — resmungou por entre dentes. — Tragam, o cadáver do rapaz... porque gosto de enterrar os meus homens, como bom cristão.
— Sim, chefe — afirmou Collier, sempre servil. — Onde abriremos a cova?
— Ao pé de uma árvore. O pobre gostava tanto das árvores! -- condoeu-se Farson, com ingénua amargura. — Em qualquer armazém da terra nos emprestarão o que for preciso. Ocupa-te disso, Kinglatt. Tu sabes convencer as pessoas sem gastar palavras. Os outros vão para a rua. Saiamos já daqui, porque isto cheira a desinfetante...
Pitchman, apoiado na parede, não dava crédito ao que estava vendo com os seus próprios olhos. Os forasteiros passaram por ele sem lhe concederem o menor interesse. Ouviu as suas vozes, o riso grosseiro de Pineshead e o estrondo da porta ao fecharem-na. Sentia-se como que ausente, vagueando no espaço, ressequido por dentro. O doutor Carter crivado de balas! Incrível e horroroso!
Como um autómato, vacilante, caminhou até junto dele e ajoelhou-se a seu lado. Lá fora, na rua, soava, o retumbar de cascos ferrados, marcando o trote dos seis cavaleiros que escoltavam o infeliz Hammer. Não pôde pensar em nada coerente durante vários minutos.
— Que lhe parece?
— Responda antes à minha pergunta. Há quanto tempo?
—. Dois dias ---- confessou Luker, depois de uma pausa. — Mas, isso pouco importa.
— Pelo contrário. Importa muitíssimo.
— E então?
— Suponho que preferirá a verdade sem rodeios.
— Claro.
— Não há remédio. A infeção dominou-o. O seu coração deixará de bater, dentro de umas horas.
O forasteiro semicerrou as pálpebras, friamente, e os seus penetrantes olhos incolores procuraram os do médico.
— Essa não é a verdade. Tem de o salvar. Faça alguma coisa.
— Não há remédio — repetiu calmamente o doutor Carter.
— Extraia a bala. Assim acabará a infeção.
— Talvez não saiba, Farson, mas se este homem vive ainda é graças ao projétil. Está alojado debaixo da víscera cardíaca, roçando o extremo inferior. Tem servido de tampão e por isso o sangue tem ido saindo pouco a pouco. Se lha extraísse, seria como quem abre a válvula dum lavatório. A pequena quantidade de sangue que ainda lhe resta sairia em golfadas e deixá-lo-ia exangue em pouco tempo.
— Tenho ouvido falar em qualquer coisa que se chama transfusão. Tenho cinco homens dispostos a dar sangue.
— Felicito-o. Mas, talvez também já tenha ouvido falar de uma coisa chamada gangrena. Olhe os bordos da ferida. Está tudo gangrenado.
Farson apagou o sorriso dos seus lábios. Pela primeira vez se lembrava de que o doutor Carter não pertencia ao seu bando. Isto tornava-se terrível para um homem tão acostumado a mandar e a ser obedecido como ele. Não aceitaria a negativa que podia desprestigiá-lo perante os seus camaradas.
— Opere-o — ordenou. --- Não consinto que o deixe morrer.
— Não sou eu mas sim vocês que o mataram, obrigando-o a cavalgar dois dias seguidos. O pó, o suor e o sangue...
— Tire a bala! ---- gritou Luker, aproximando as mãos das armas.
Carter ergueu o queixo e suportou, desafiante, o seu olhar furioso. Não tinha medo, talvez porque moralmente a sua consciência estava limpa.
- Eu avisei-o, Farson, — respondeu. — Mas, vejo que estudou mais Medicina que eu. Porque não se encarregou você pessoalmente de o curar?
— Estamos a perder um tempo de vital importância para Hammer. Também eu o aviso de uma coisa. Salve-o... ou mato-o. Uma vida em troca de outra. Aposto que o encontra menos grave agora.
- Em trinta anos tenho ouvido muitas ameaças parecidas. O curioso do caso é que tenho passado centos de certidões de óbito... e eu continuo vivo.
—.Se me conhecesse bem, compreenderia que não gosto de ameaçar em vão. Quero que esse rapaz volte a cavalgar comigo e não me interessam as suas explicações de infeção, gangrena e mais disparates. Para a frente, doutor. — Moveu velozmente a mão direita e um comprido revólver de seis tiros surgiu nela, apontando-lho direito ao estômago. — Decida-se.
— Sempre existe uma possibilidade.
— Sabia que «isto» o obrigaria a mudar de opinião.
- Ainda que não seja aconselhável forçá-la neste caso — completou Carter. — O ferido não está em condições.
— Prove. Ordeno-lhe que tente essa possibilidade.
— Para ele será antecipar-lhe a morte.
— Você tem boas mãos. — O revólver deixou escapar o seu metálico estalido ao ser armado o percutor. — Lembre-se de que estou a apontar contra si... e que o preço é a sua vida.
O médico, olhando-o, desdenhoso, voltou-lhe as costas. Sem se preocupar mais com o azulado «Colt» que o outro lhe apontava, abriu uma das vitrinas e tirou vários instrumentos, compressas, algodão e uma garrafa do um líquido transparente.
— Vou tentar tudo — disse. — Mas, não pelo revólver nem pela ameaça. Seria um prodígio se ele sobrevivesse à operação.
— Então, considerá-lo-ia um deus... e até lhe pediria perdão, doutor Carter. Comece. O tempo passa depressa.
Embora esta recomendação fosse descabida, o médico absteve-se de objetar. Com hábeis gestos, dispôs os instrumentos numa bandeja e concentrou-se na intensidade da delicada tarefa. Rasgou a camisa até deixar uma espaçosa abertura por onde pudesse trabalhar sem que alguma coisa o impedisse. Molhou um bocado de algodão no líquido do frasco, cujo odor forte se espalhou pelo consultório, e lavou a ferida. A seguir, sério e grave, pegou num bisturi e deu dois golpes, separando os bordos com pinças. Não sangrava. Qualquer coisa, palpitante, estremecia por trás do avermelhado osso de uma costela.
— Tem o coração à prova de balas — disse, rindo, Luker. — Ainda funciona.
— Está meio parado — resmungou Carter, em cuja testa brilhava agora o suor. — Afaste-se da luz, por favor.
O homem do revólver assim fez, embora não deixasse de observar os manejos do médico na sua surda luta para vencer a morte. Ajudado por outra pinça, com sumo cuidado, foi extraindo o desfigurado projétil, achatado na ponta. Uma golfada de sangue, morno e espesso, tingiu-lhe os dedos. Depois, a hemorragia foi aumentando, apesar das compressas e enchimento de algodão e da rapidez com que Carter a secava com a mão esquerda. Ao sair a bala, Hammer remexeu-se debilmente e exalou um suspiro. — Vive! — gritou Luker, com os olhos brilhantes. Salvámo-lo!
— Acaba de falecer — declarou Carter, baixando a cabeça com sincera pena. — O tampão deixou escapar a sua existência... para sempre.
Luker contraiu as feições, adquirindo uma expressão bestial. Afastando o médico com um, empurrão, aproximou-se do Hammer sacudindo-o com violência e gritando-lhe que voltasse a si. O corpo, ainda morno, não respondeu às suas ordens mas o foragido continuou a abaná-lo até que a cabeça do rapaz pendeu para a beira da marquesa e as suas pupilas vidradas muito abertas olharam o teto do quarto, com mortal fixidez.
— Que se passa? Responda, doutor!
— Está a sacudir um cadáver.
— Não, pode ser!
— Já lhe tinha dito que era um caso perdido. Tentámos a única coisa possível. Mas, estava praticamente morto quando o trouxeram à minha casa. Resta-lhe a bala. Talvez lhe sirva para recordar que...
— Foi você! — gritou Luker, com o olhar desvairado. — Não o negue!
O doutor Carter contemplou-o com serena calma, dono dos seus nervos.
— Sim -- admitiu. — Fui eu. Tentei arrebatar à morte uma presa que tinha conquistado havia algum tempo. Convém que saia a dar a notícia aos seus companheiros. Devem estar desejando conhecer o resultado...
— Você é um assassino. Um indecente charlatão. Avisei-o de que ou salvava Hammer ou corria a mesma sorte!
Carter encolheu os ombros e, amargamente, o seu olhar deteve-se no ensanguentado rapaz que ia adquirindo rigidez. Mentalmente, completou o seu pensamento, sundo às pragas que Luker Farson soltava, furioso. Era pena que tivesse morrido tão novo. A vida talvez ainda lhe pudesse oferecer os seus melhores frutos pois até ali só devia ter encontrado espinhos, unido a um selvagem como Luker.
— Volte-se!
Foi um bramido, um rugido feroz que destilava veneno e ódio incontidos. Ao virar-se, o médico deu de cara com um homem que lhe apontava o revólver, sem o menor vestígio de humanidade. Refulgia o crime no seu olhar descolorido e a sede de vingança — uma vingança que a injustiça transformava em abjeta — crispava a boca cruel. Não pôde evitar um estremecimento.
— O prometido é devido — sussurrou Farson, sem paliativos, curvando o indicador em torno do gatilho do «Colt». — Adeus, doutor.
— Espere, louco! Não compreende que...
Pum! Carter, aterrado pela escalafriante verdade que lia naqueles olhos, tentou lançar-se sobre ele, mas o vivo clarão da. detonação cegou-o e a bala derrubou-o, raivosamente, para o lado... Pum! Desesperadamente, sobrepondo-se à dor, esforçou-se por se levantar, mas o segundo tiro, dado à queima-roupa, projetou-o para trás, indo chocar com a vitrina mais próxima.
Invadiu-o a debilidade da morte e, ao cair, já não pôde ouvir o estilhaçar de vidros produzido pelo móvel ao ser derrubado. Puni! O terceiro e último tiro de Luker Farson trespassou a cabeça de um cadáver, destroçando-lhe a testa e perfurando-lhe a nuca. Um assassínio a sangue-frio, horrível e brutal, que só podia ser executado por um ser de tão maquiavélicos instintos.
Frio, tranquilo e quase risonho, Farson passou a vista pelo homem que pouco antes tanto se empenhara para salvar Hammer. As suas almas seguiam já o mesmo caminho. A visão da selvajaria cometida contribuiu liara acalmar a sua cólera homicida. O arrastar das portas de correr arrancou-o da sua contemplação e, ao mesmo tempo, viu irromper na clínica os seus amigos, armados e vigilantes. Um grito de espanto, o único a ser ouvido, escapou-se da garganta do taberneiro Pitchman, que teve de, se encostar à parede, ao descobrir o que se passara com o respeitado e querido doutor Carter. A bárbara agressão deixou-o aniquilado.
— Julgámos que estavas em perigo — explicou Westay. — Como foi?
— Matou Hammer — declarou Luker. torcendo a boca. — Grande canalha! Tive de lhe pagar na mesma moeda.
— Bem feito — aprovou, sorridente, Grapes. — Desde que o vi, que me pareceu um tipo abominável.
Luker acionou o extrator e deitou fora as cápsulas sem préstimo, tratando de repor as munições com os cartuchos do cinturão. Deu várias voltas ao revólver com a mão e guardou-o novamente, com agilidade de quem tinha grande prática.
— Não fiquem aí parados — resmungou por entre dentes. — Tragam, o cadáver do rapaz... porque gosto de enterrar os meus homens, como bom cristão.
— Sim, chefe — afirmou Collier, sempre servil. — Onde abriremos a cova?
— Ao pé de uma árvore. O pobre gostava tanto das árvores! -- condoeu-se Farson, com ingénua amargura. — Em qualquer armazém da terra nos emprestarão o que for preciso. Ocupa-te disso, Kinglatt. Tu sabes convencer as pessoas sem gastar palavras. Os outros vão para a rua. Saiamos já daqui, porque isto cheira a desinfetante...
Pitchman, apoiado na parede, não dava crédito ao que estava vendo com os seus próprios olhos. Os forasteiros passaram por ele sem lhe concederem o menor interesse. Ouviu as suas vozes, o riso grosseiro de Pineshead e o estrondo da porta ao fecharem-na. Sentia-se como que ausente, vagueando no espaço, ressequido por dentro. O doutor Carter crivado de balas! Incrível e horroroso!
Como um autómato, vacilante, caminhou até junto dele e ajoelhou-se a seu lado. Lá fora, na rua, soava, o retumbar de cascos ferrados, marcando o trote dos seis cavaleiros que escoltavam o infeliz Hammer. Não pôde pensar em nada coerente durante vários minutos.
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