domingo, 5 de julho de 2015

PAS493. Um sorriso de gelar o sangue

Lentamente, virou o olhar para o homem alto, moreno e estranhamente vestido, que tinha surgido junto da roleta, no salão de jogo. A rapariga vestida de cor-de-morango chegava agora ao seu lado, falava com ele, implorando alguma coisa, ao que parecia. Paul Brighton sorria. Um sorriso insultante, cruel, daninho...
Alex Brampton apertou o copo do refresco entre os seus dedos. O vidro estilhaçou-se, ferindo-lhe a mão e derramando o frio conteúdo por cima da sua manga e do blusão.
— Cuidado, senhor, vai-se ferir! — exclamou um empregado do «bar». Algumas pessoas o olharam surpreendidas.
— Não é nada. — Brampton atou a mão ferida com um lenço de seda. Voltou os olhos, mais gelados do que nunca, para o par. David Marsh, aquele suposto Paul Brighton, conduzia Sheila Brice pelo braço, na direcção de uma porta lateral, coberta por espessas cortinas de veludo vermelho.
Faziam um bonito par. Mas era só na aparência. Alex lembrou-se duma fábula «A bela e o monstro».
O sorriso que assomou aos lábios de Alexis Brampton quando se afastou do «bar», abrindo passagem entre a multidão, teria gelado o sangue nas veias de Marsh, de Dawson e talvez da própria Sheila. Mas ninguém o viu...
 
***

— Não se admire. Os meus empregados informam-me, prontamente, de tudo quanto se passa, de anormal, na minha casa e sei que você ganhou dezassete mil dólares. Se Dawson, o meu sócio, não interviesse, você levaria a banca à glória... e já os dois não poderíamos negociar a salvação de seu irmão.
Sentada à frente dele, na solidão do seu escritório, Sheila sentiu uma aversão profunda, um ódio mortal àquele réptil humano que insinuava a brutal realidade com aquele sadismo. A lembrança do seu irmão em perigo deu-lhe ânimo e força para prosseguir.
— Este dinheiro não me serve para nada, e você sabe-o muito bem, Brighton — disse, em tom agressivo. — Queria ganhar mais, muito mais, mas não foi possível.
Paul Brighton esfregou os compridos e pálidos dedos rejubilando com o fácil triunfo que se lhe oferecia. Sheila Brice... Tinha-a desejado tanto... Os seus olhos brilharam doentiamente.
— Os vales serão seus... dentro dum momento. — Pôs-se de pé, aproximou-se dum cofre e rebuscou nele, tirando um maço de documentos. Dedos nervosos passaram folhas após folhas, até tirar três papéis. Mesmo àquela distância, Sheila reconheceu a assinatura de Dick. — São estes, menina Brice... Bem, melhor será chamar-te Sheila, querida. É mais íntimo...
A infeliz rapariga sentiu náuseas... Aquilo era superior às suas forças. Mas os vales estavam ali, ao alcance da sua mão... Ele mostrou-os, a distância, prudentemente.
— São estes. Um de dez mil, outro de vinte mil e outro de quinze mil. Com os cinco mil de juros, perfaz os cinquenta mil, querida Sheila...
— Canalha! — ciciou ela, incapaz de suportar mais.
— Cuidadinho, cuidadinho. Isso não são maneiras. — O sorriso infame de Marsh alargou-se.
Avançou uns passos. As suas mãos tremiam codiciosas. Era um monstro repulsivo, odioso. Sheila fechou os olhos. Sentiu o contacto repugnante das suas mãos ardentes sobre os seus braços, subindo para os ombros, puxando-a para ele...
 -- Que importuno sou, «não é verdade, David Marsh?».
A surpresa foi demasiado inesperada e brutal. Aquela voz fria, trocista, áspera, rude... Sheila gritou e afastou-se rapidamente enquanto as mãos vibráteis de Paul Brighton a largavam como se, de súbito, fosse um carvão em brasa viva.
— Eh! Quem é você? Como se atreve... a vir até aqui? — rugiu, raivoso, o jogador. Subitamente, pareceu entrar no seu cérebro a ideia de que lhe tinha chamado «David Marsh». — Corno... me chamou?
— David Marsh. — O intruso estava ali, de pé, junto da porta, com uma expressão dura, quase feroz, que assustava Sheila, refugiada num canto. O seu amigo da sala de jogo já não parecia tão jovem, nem tão atractivo. Era demasiado... violento o seu parecer. E o brilho dos seus olhos metia-lhe medo. — David Marsh, não, Paul Brighton. Não é aquele o seu verdadeiro nome?
Marsh recuou dois passos. Estava inquieto, mas conservou o sangue-frio.
— Saia daqui. Não sei como entrou, mas ordenarei que o espanquem como a um cão, se...
-- Se quê? Se continuar a impedir que manche de lama uma flor? — Sheila pensou que parecia impossível que aquele homem, todo dureza e frialdade, pudesse, em tais circunstâncias, ter urna frase bela para comentar o seu sacrifício.
— Basta! Vai sair a bem ou terei de expulsá-lo a tiro?
— Da mesma forma que a Garry Brampton, em Dodge City, Marsh?
Uma palidez mortal cobriu o rosto de Marsh, até o fazer parecer um grotesco palhaço enfarinhado. Recuou, como se fosse ferido no peito. Uns olhos negros, aumentados pelo terror, fixaram-se naquele homem, perigoso, ameaçador, impávido e rude.
-- Quê... que disse? — balbuciou.
— Procurei-te durante muito tempo, Marsh. Venho de Nova Orleães. Já lá não estavas, como julgava Randolph Adams. Mas disseram-me onde te podia encontrar, assassino.
--Randolph Adarns! Você... você matou-o?
-- Eu fiz justiça. Foi o primeiro dos quatro. Tu completarás o par de ases. Ases do crime, do mal, Marsh. Estareis melhor mortos, expulsos do mundo. Mas a conta não termina em ti, não. Ficam outros dois. É um «poker». Tu eras jogador, tu sabes disso. Um «poker» de morte... negro.
— Isso é absurdo -- rugiu Marsh, recuando mais dois passos. — Não pode continuar assim, anos e anos, à procura dos que mataram Garry, vingando-se dessa forma! Por que o há-de fazer, porquê?
— Eu era seu irmão, Marsh. Seu irmão. Tens uma dívida para comigo. Quarenta mil dólares e a vida... O dinheiro pode entregá-lo a esta menina. Perdoo-te os dez mil que sobram. Rasgue você esses vales, menina Brice. Não tenha escrúpulos. É o pagamento duma dívida, não é verdade, Marsh?
— Está bem... — sorriu forçadamente o jogador. Sabia muito bem quando perdia uma partida. Aquele não era como Garry. Não era possível enganá-lo. E ali estava só. Tinha medo. Medo do assassino de Adams, de Sheylander... — Você ganhou a partida, Brampton. Pegue nesses vales e parta de São Francisco, antes que faça seguir o mesmo caminho do seu irmãozinho...
— Não, Marsh, não me compreendeste. — O sorriso arrepiante daquele vingador louro gelou as veias de Sheila. E um medo horrível penetrou na cabeça e no coração de David. — Com isso não sie extingue a dívida. Deixa-te de fanfarronices. Sabes bem que estás perdido. Sabes que não poderás alcançar essa arma que tens aí, na gaveta da secretária. Porque eu puxarei antes pela minha e morrerás no mesmo instante. Vamos, não sejas palerma. Soou a tua hora. Vou cobrar, duma só vez... toda a dívida.
— Não! — interveio Sheila, angustiada. — Não o mate, Brampton. Você... você não tem estofo de assassino. Não é um pistoleiro. Leio-o nos seus olhos, na sua cara, apesar de toda a sua amargura e de toda a sua dor...
— Não pode compreender, menina Brice. — Alex pareceu não dar conta de que Marsh se aproximava cada vez mais da sua secretária. — Criei-me no ódio, cresci com a ideia fixa da vingança, no meu espírito e na minha alma. São três defuntos que me pedem que con clua a minha obra. Até então, eles não descansarão em paz.
— Não diga isso, Brampton! — A rapariga de cabelo cor-de-âmbar falou, apaixonada, influída estranhamente por aquele homem singular e desconhecido que a atraía, a quem não queria ver matar os seus semelhantes como se fosse um pistoleiro vulgar... — Eles descansarão em paz, onde estão, uma vez que desapareceram. Somos nós quem não descansará, julgando que eles pedem coisas tão monstruosas como matar. Matar é uma coisa horrível, Brampton. Não continue a fazê-lo. Deixe a sua vingança, deixe o seu «poker» sangrento incompleto... Os que estão mortos não desejam que continue a matar. Não nos compete a nós vingar ofensas; nem ditar sentenças. Deus está acima de tudo e de todos. Ele disse que devíamos perdoar, para que um dia... Cuidado, . Brampton! Meu Deus, não!
De sua boca partiu primeiro o aviso. Depois a exclamaçáo, perante o inevitável. Tinha querido impedir aquilo, mas... David Marsh aproveitou as suas palavras apaixonadas para alcançar a secretária, para agarrar na arma com uma rapidez de profissional e apontá-la velocissimamente para Alex Brampton. O jovem, arrebatado pelos argumentos daquela rapariga, que lhe falava rumo na vida jamais alguém lhe falara, estivera a ponto de ser vítima fácil. A advertência espontânea, rápida, da rapariga, salvou-o.
Brampton saltou para o lado, evitando a bala disparada por David Marsh, diabólicamente risonho, ao apertar o gatilho, saboreando ferozmente uma tão fácil vitória. Mas o seu chumbo encontrou o vazio e não o coração de Brampton, inclinado sobre a secretária, muito à esquerda da sua posição inicial. Dali, enquanto Sheila tapava os olhos, lançando um grito de terror, fez fogo uma só vez.
Alex Brampton não precisava nunca de repetir o disparo sobre um alvo humano. A bala abriu um orifício negro entre os olhos de Marsh, tão negros como o vácuo da morte. As pupilas vidradas abriram-se-lhe desmesuradamente. Não pôde compreender a razão da sua derrota, no momento em que abraçava o triunfo; Inclinou a cabeça, como a querer rezar uma oração impossível, e que jamais soube, resvalando lentamente para o soalho alcatifado, onde ficou, de joelhos, absolutamente apoiado na secretária.
Sheila, com um gemido, de nervos tensos, correu para os braços do jovem louro, refugiando-se neles da terrível realidade e da emoção vivida.
— Lamento, menina, — murmurou Alex, em, tom duro, largando a arma. — Não tive outro remédio. Você viu... Embora, na realidade, não merecesse outra coisa;
— Meu Deu... Meu Deus!. — gemeu ela, chorando encostada ao forte peito de Brampton. —É a primeira vez que vejo um homem morrer... assim. Mas seria mais horrível... vê-lo morrer a si...
Alex levantou a cara de Sheila com a mão, pegando--lhe pelo fino queixo. Emocionava-o aquele pranto de mulher. Era a primeira vez que uma rapariga como Sheila procurava os seus braços e sentia algo que não sabia explicar.
— Vamos, acalme-se. Já passou tudo — pediu ele. Depois viu-se nos dois redondos olhos cor-de-âmbar, reluzentes e muito abertos, que pareciam convidá-lo a olhá-los mais de perto.
Os seus lábios encontraram-se colocados aos lábios vermelhos e húmidos da rapariga, sem ter bem a noção exacta do que fazia.
 
***

— Vai-se já embora de São Francisco?
— Sim. Amanhã. A minha estadia foi muito curta. Mas não tenho outra solução, Sheila. Você mesmo viu esta noite. Não merecem viver...
— Deixe, então, que Deus os afaste do mundo. Não é tarefa sua.
— E era tarefa sua tirar a vida a meu irmão, quando começava a vivê-la?
— Você quer igualar-se a eles, Brampton, matando com uma simples máquina, vivendo escravo do seu revólver? Quanto tempo durará isso? Um dia compreenderá que o revólver, a violência, a vingança e o ódio não são nada no mundo. Que há outras coisas mais belas da nossa vida. O perdão, a compreensão, o amor...
— O amor... Há tanto tempo que não o conheço, Sheila — suspirou Alex, olhando a jovem. — Creio que meu pai me amou, e meu irmão também... e ela, Jessie...
— A sua noiva? -- O tom de Sheila foi estranhamente amargurado.
 

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