Não chegou à rua principal. Pouco depois viu uma ampla carroça parada, na parte exterior da cidade. E um carro velho, mas sólido e arranjado.
Perto do carro, um rapazote soprava para uma fogueira que acabava de acender. Mas o rapazote tinha umas formas arredondadas, que não eram naturais. Não, aquilo não podia ser. Roy sentiu-se como se tivesse apanhado uma pancada no crânio.
— Ingrid! — gritou.
A rapariga voltou a cabeça.
Ficou também corno que petrificada ao ver o rapaz. Levantou-se lentamente, esquecendo a fogueira. Estava, como sempre, vestia com roupas de rapaz e cheia de carvão, com os seus loiros e curtos cabelos caídos para a testa.
Porém, as suas formas esculturais evidenciavam-se com aquelas roupas de homem, muito justas, mostrando que a sua proprietária era uma mulher.
Roy aproximou-se mais.
— Como é que vieste parar aqui? Convenci o velho a vir.
— Mas isso é uma loucura!
— Porquê? Ali tinham trabalho certo.
— Estava aborrecida daquele ambiente, daque-las caras. Sempre a ver a mesma coisa; todas as semanas o mesmo, ouvindo as pessoas que lá iam para ferrarem os seus cavalos, a falarem do que tinham visto em tal ou tal sítio.
Roy aceitou como boa aquela explicação. Nunca lhe ocorreu que a viagem da rapariga, precisamente a Tonopah, pudesse obedecer a outros motivos.
— Sabes em que te meteste? Não é fácil estabelecerem-se de novo.
— Já temos trabalho.
— Como?
— Uma mulher que tem uma mina de prata aqui, precisa de ferreiros para os seus cavalos e para as suas máquinas. Foi o administrador dela que nos disse isso quando nos contratou, acerca de uma hora.
— Essa mulher chama-se Hada?
— Creio que sim.
Roy passou a mão pelo queixo.
— Tem graça...
— Porquê?
— Porque sim. Mas olha que esta terra é perigosa. Onde está o velho?
Nesse momento apareceu Tom, saindo de detrás do carro.
— Roy: — exclamou ao ver o rapaz. — Isto é o que se chama uma boa surpresa!
— Como é que se lembraram de vir aqui?
— Nos lembrámos? Não fales no plural, rapaz. Como é que ela se lembrou é que deves perguntar. Que teimosia em querer vir a Tonopah. Queria vir aqui à viva força. Dizia que isto era maravilhoso e eu na verdade não vejo isso. Uma cidade rodeada de terra seca, como quase todas as de Nevada... O que é certo é que me obrigou a vender o negócio de qualquer mineira e a fazer as malas em dois dias. E ainda dizem que os filhos servem para alguma coisa. Com a minha idade... os sarilhos em que me vim meter por causa dessa teimosa!
— Não te preocupes — murmurou Ingrid em tom conciliador. — Bem vês que já temos trabalho...
— Mas não é a mesma coisa... A verdade é que não esperava encontrá-lo aqui, Roy.
— Casualidades — disse o rapaz.
E o pior foi que o disse de boa-fé. Se chegasse a ver o olhar que Ingrid lhe deitou caía para o lado.
— Será possível? — perguntava Ingrid a si própria. — Será possível que este burro ainda não tenha percebido por que razão quis vir para Tonopah?
Mas a verdade é que Roy não percebera nada e nenhuma outra ideia lhe passava pela cabeça.
Ingrid suspirou desalentadamente.
— Onde ficam as oficinas dessa companhia mineira? Interessa-nos chegarmos lá quanto antes.
Roy apontou para o horizonte.
— Vês aquela casa?
— Sim.
— É aí. Os proprietários da mina são um casal. Suponho que lhes darão também alojamento, mas, entretanto, onde acamparão?
— Aqui.
— Está bem. Ao anoitecer virei aqui ver-te.
— Obrigado, Roy.
Roy voltou rapidamente a cabeça para a olhar.
— Roy? Que confiança é essa? Dantes tratavas-me por Senhor Roy. As raparigas devem ser bem-educadas.
E afastou-se tranquilamente, Ingrid fez-se pálida, depois corou e finalmente ficou amarela.
— Com que então «raparigas bem-educadas», como na escola, hem? — pensou.
Esteve quase a atirar-lhe com uma pedra, mas não encontrou nenhuma por ali. Foi isso que salvou Roy. De contrário teria apanhado com uma boa pedrada.
*
Anoitecia quando Roy voltou. O carro encontrava-se no mesmo sítio. Uma pequena fogueira iluminava melhor os contornos das coisas, na luz um pouco irreal do crepúsculo.
Ingrid encontrava-se ali. Parecia sozinha. Preparava uma cafeteira de café.
Roy encostou as costas ao carro e acendeu um cigarro, sem dizer uma palavra. Parecia sentir-se ali tão à vontade, como se Ingrid não fosse uma rapariga, mas efetivamente um rapazote.
Ela, por sua parte, tentava manter-se indiferente, se bem que lhe doesse o pescoço por ter de fazer tantos esforços para não se voltar para ele.
Foi Roy quem quebrou o silêncio e disse urna coisa bem inesperada.
— Perdoa-me.
Ingrid voltou-se de repente.
— O que queres que te perdoe!
— O que te disse esta manhã. Quanto mais penso nisso mais estúpido me parece.
— A que te referes?
— A querer que tu me chamasses «Senhor Roy».
— Ah... isso... já está esquecido.
Mas a voz levemente crispada da rapariga indicava que não. Que aquilo, nunca seria esquecido.
— Parece mentira a influência que tem sobre nós a nossa primeira profissão... — murmurou Roy, quase sem dar por isso. — Quando era professor, tinha um interesse especial em que me chamassem «senhor». Isso fazia parte da educação dos meus alunos. Dizia para comigo: — Que vai ser deles se no próprio colégio não se habituam a falar com delicadeza? — E foi essa recordação que fez com que te dissesse aquele disparate.
Ingrid apertou os lábios.
— Claro, porque me consideras como um rapazelho.
— Não, as circunstâncias mudaram. E eu já não sou professor, mas sim um sujo pistoleiro. E tu és uma menina.
Ingrid, que estava ajoelhada junto da fogueira, levantou-se lentamente, olhando-o com uma espécie de êxtase, como se tivesse acabado de fazer uma descoberta maravilhosa.
— Oh, já reparaste que eu sou quase uma mulher. Já não era sem tempo!
Mas Roy não reparou na expressão que havia nos olhos da rapariga. Não a olhava.
— No entanto — disse severamente, como se voltasse aos seus antigos tempos — não basta sê-lo. É preciso também parecê-lo e tu não pareces.
Ingrid respondeu:
— Ah... E toda ela pareceu encolher-se, como um balão despejado.
— Tens de te vestir como as outras raparigas — decidiu Roy.
— Não me apetece fazê-lo. As raparigas são todas umas patetas e umas imbecis!
— Pode-se ser uma mulher formidável e usar saias, que diabo!
— Pois eu hei-de continuar a vestir-me como até aqui! Além disso, se me vestisse de outra maneira, não poderia trabalhar como ferrador.
— E já entraram, em acordo com a dona da mina?
— Sim e convém-nos, se bem que ela quisesse convencer-me a não trabalhar.
— É que não vais mesmo trabalhar, Ingrid.
— Queeeeeeeeeê?...
— Vi-te de longe a fazeres a prova, ferrando um cavalo. Em Elko era diferente, porque estavas sozinha com Tom, mas aqui existem pelo menos mais meia dúzia de ferradores e nenhum deles fez nada enquanto tu trabalhaste. Estavas inclinada, de costas voltadas, não estavas? Pois asseguro-te que eles conhecem tão bem a forma das tuas pernas e costas que poderiam desenhá-las. De cada vez que te inclinavas as calças cingiam-se às pernas e os homens estavam capazes de comerem as ferraduras que tinham nas mãos. Não, Ingrid, não se pode trabalhar dessa maneira.
Uma luzinha de esperança apareceu nos olhos da rapariga.
— Não gostas que os outros me olhem?
— Não é isso.
— Ah.. Não é isso.
— Não quero que te suceda nada. Nem que te aborreçam. Não vais estar todo o dia metida entre homens!
— Mas não sei fazer outra coisa! Não me ensinaram nenhum outro ofício!
Roy atirou o cigarro para a fogueira.
— Já pensei no caso. Não é em vão que fui professor, sabes? Parece-me que desde então se passou um século, mas, no entanto, só decorreram dois anos. A uma rapariga como tu posso ensinar rapidamente a multiplicar e a dividir, que é o que te faz falta. E então poderás empregar-te nos escritórios da mina, porque sei que precisam de uma pessoa para a contabilidade. Não é nenhum cargo brilhante, mas é muito mais feminino. E ali poderás espetar tranquilamente até que encontres o homem que te queira.
— COM que então um homem que me queira, hem?
— Disse alguma coisa de mal?
— Não. Tu nunca dizes nada de mal, Roy. Isso é que aborrece!
— Na verdade não te compreenda!
— Sabes o que te digo? Que fizeste bem em mudar de profissão. Corno professor não devias valer nada. Nunca percebes coisa nenhuma. Os alunos deviam fartar-se de rir à tua custa.
— Cada vez te percebo menos, Ingrid.
— Então...
De repente Roy agarrou-a por um braço. Fê-lo sem dar por isso, sem pensar. Qualquer outro teria reparado na expressão de prazer de Ingrid, ao ver-se assim, meio abraçada, mas Roy não reparou nisso.
— Vais fazer o que eu te digo, ouves?
— E o que é que me dizes?
— Vais viver para um hotel.
— Contigo?
Roy olhou-a.
— Que estás para aí a dizer, rapariga? Eu não posso estar no mesmo hotel que tu porque corro perigo. Não ganho a vida a cravar ferraduras, mas a cravar balas. Vê se percebes de uma vez o que te estou a dizer! Mas quero que te transformes numa rapariga como as outras. Que aprendas coisas. E que não tragas sempre a cara suja de carvão, que diabo!
— Isso tudo se fará só se Tom quiser. Ele é que manda em mim — protestou a rapariga.
— Tom já está no hotel que escolhi para vocês viverem. Fi-lo mudar de roupa e tomar um banho.
— Ele... ele tomou um banho?
— Ao princípio foram precisos quatro homens para o agarrarem. O caso foi complicado, acredita. Começou por gritar por socorro. Mas depois tomou gosto na coisa e agora não se cansava de pedir mais água quente. Creio que' esgotaram as reservas do hotel. E diz-se por aí que a cidade está seca.
Ingrid soltou uma gargalhada.
— Teria gostado de o ver! Eu gostaria era de ver-te a ti — disse sombriamente Roy. — Porque a ti seriam necessários oito para te prenderem... Andando!
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