sábado, 30 de setembro de 2017

PAS794. Liberdade para as prisioneiras

Quando James ouviu a acusação de Godfrey dando Pierce como assassino de seu pai, este olhou interrogativamente para o seu chefe cujos olhos despediam clarões de indignação, o que levou o jovem bandido a olhar novamente para o pistoleiro ruivo.
— Juro que foi ele. Matou teu pai da maneira mais...
Não pôde continuar porque do revólver de James acabava de sair uma língua de fogo precursora da bala que se lhe cravou na testa. Caiu de bruços em cómica adoração ao homem que o matara que, não satisfeito com o primeiro tiro, continuou a fazer girar o tambor do seu «colt» em disparos consecutivos até que a cabeça de Godfrey ficou totalmente desfeita.
E quando o gatilho mordeu a espoleta da última bala, James voltou-se para Pierce que recuou um passo.
— Filho... Juro-te que não fui eu quem matou teu pai. Foi Godfrey. Pena é que Twingg tenha morrido; ele é que poderia explicar-te como as coisas se passaram.
-- Basta de explicações, Carl... Não duvido nem um momento da tua palavra. Nem sequer atribuo a Godfrey a morte de meu velho pai; o verdadeiro culpado foi Pres-tou, o avô da rapariga, mas esse já amargou bem a sua miserável ação.
Deixou de olhar para Pierre e virou-se para Doris que o escutava suspensa das suas palavras.
— O bom do velho rancheiro perdeu cem mil dólares... e perdeu também a sua neta.
Um grito dilacerante saiu do peito da infeliz menina que, abandonando a índia a que se abraçava, correu a esconder-se no interior da cabana, seguida de perto pela pele-vermelha.
— Estou decididamente resolvido a ficar com aquela mulher — disse James, olhando para Pierce. — A não ser que a queira para si...
— É tua, rapaz. Mas recomendo-te que tenhas as maiores precauções com ela; Godfrey atreveu-se a visitá-la e foi por um triz que ela o não estendeu com uma bala.
— Sei como se dominam essas ferazinhas — disse James, sorrindo superiormente. — E agora podemos regularizar as nossas contas. Está bem?
Pierce e James dirigiram-se para casa, libertando-se dos demais companheiros, dois dos quais arrastaram pelos pés o cadáver de Godfrey.
Doris, apenas pôs os pés na cabana que a albergara durante todo aquele tempo, atirou-se para cima da cama e meteu a mão por baixo do travesseiro em busca do punhal que a índia lhe ofertara. Empunhou-o com decisão e apontou a extremidade ao sítio do coração cujas pulsações lhe faziam arfar os seios.
Alguém lhe caiu em cima: «Bela Estrela» que lutou decididamente pela posse do precioso objeto. A jovem pele-vermelha foi ao ponto de morder o pulso de Doris para conseguir que ela largasse o punhal da mão. Uma vez logrado o seu objetivo, ocultou-a entre o vestido, empurrando a outra para sobre a cama onde ficou soluçando aflitivamente.
— Que ias tu fazer? — perguntou a índia.
Doris voltou-se com os olhos lacrimejantes.
— O que tu própria me aconselhaste. Será inútil impedires-me de o fazer. De uma forma ou de outra, porei termo à existência.
— Aconselhei-te por que não te estimava... mas também te não odiava. Pensava muito convictamente que seria essa a melhor solução para uma mulher que se encontrasse nas tuas condições, mas agora...
— Agora quê ? Podes proporcionar-me outra alternativa?
— Sim. Que continues a viver. li tão agradável viver, respirar!... Custar-te-á muito nos primeiros dias, mas...
— Desaparece da minha vista! Não quero ver-te mais! E... és tu que dizes que és minha amiga? E és tu que me pedes que viva para ser a...
Doris não sabia se tinha dormido ou se estivera todo aquele tempo insensível de corpo e de espirito. Tinha frio. «Bela Estrela» já ali se não encontrava e pela fresta da porta entreaberta penetrava uma guieira demasiado fresca. Pôs-se em pé e foi fechar a porta. Voltou para a cama e, como se encontrava fisicamente esgotada, adormeceu profundamente até de manhã, visto que durante a noite não houve mais surpresas.
Só no dia seguinte, já com a manhã bastante adiantada, é que recebeu a visita do homem que declarara que ela lhe pertenceria. James observou-a durante um minuto. Doris encontrava-se acocorada de encontro à parede da cama que se não atrevia a abandonar. Na cara do homem estampou-se uma expressão de desgosto.
-- Não gosto de ver-te assim. Não estás bonita, apesar do lindo vestido que tens.
Avançou alguns passos e pegou na fímbria do vestido a que acabava de aludir, sem que a jovem fizesse qualquer movimento.
—E uma bela peça de vestuário, não te parece? «Bela» é muito boa rapariga. Fez-te presente dele, não foi? Gostaria imenso que vocês fossem amigas.
A mão de James, ante a passividade de Doris permitindo-lhe aquelas liberdades, procurou acariciar-lhe um braço o que provocou na jovem uma reação de nojo como se tivesse tocado em algum réptil.
O homem soltou uma estridente gargalhada, mas não se atreveu a continuar.
— Não te assustes, cachopa. Não sinto qualquer prazer em cortejar as mulheres durante o dia. Sou de opinião que a noite é mais propicia aos mistérios do amor.
Doris soltou um suspiro de alivio ao ver que James se retirava. E as horas começaram a escoar-se lentamente, mas ao mesmo tempo rápidas demais, dada a hipótese de, naquela noite...
Notou a ausência da índia que, apesar de o sol ter desaparecido há bastante tempo, ainda não voltara a dar sinal de si. Ao meio dia, uma mulher que não abriu a boca fosse para o que fosse, veio trazer-lhe uma bandeja repleta de comida que colocou sobre a mesa, mas em que a prisioneira não se dignou tocar.
As sombras da noite, adensando-se cada vez mais, sobressaltaram-na. Esperaria o tempo que fosse necessário para dar ocasião a que os homens estivessem reunidos como era seu costume, a fim de pôr em prática o seu projeto de fuga.
A jovem tinha traçado um audacioso plano de evasão: aproveitando-se da escuridão, rastejaria até ao lugar que servia de entrada e de saída do refúgio. Ela lembrava-se muito bem da prevenção da índia, acerca dos múltiplos perigos a que se expunha, mas pensava para consigo que se fosse descoberta e morta pela sentinela, seria também uma forma de se evadir. Se ela dispusesse de uma arma qualquer ao seu alcance, não teria sido ela própria a deixar voluntariamente a vida?
Abandonou a cama em que se refugiara e aproximou-se da porta com passos vacilantes - e abriu-a lentamente. Destacando-se no vão da porta recortavam-se os contornos de um vulto. Era James que desfranziu os lábios num sorriso acanalhado.
— É como vês, meu amor. Há qualquer coisa que nos atrai um para o outro. Como conseguiste adivinhar que eu me aproximava de ti?
Doris recuou, tapando com as mãos a boca que se lhe abria horrorizada. James entrou na cabana com a maior tranquilidade, fechando a porta atrás de si com um dos pés, porque trazia ambas as mãos ocupadas.
— Quis ser eu próprio a trazer-te a comida para a tua ceia... ou, por outra, para cearmos ambos porque eu desejo fazer-te companhia.
Colocou sobre a mesa os alimentos de que era portador, riscou um fósforo e acendeu o candeeiro. A jovem tentou correr para a porta, mas foi imediatamente agarrada por James que a segurou por um braço, atraindo-a para si.
— Que é isso, minha flor, foges de mim? Nunca encontrei na vida uma mulher tão pouco curiosa. Sabes que estive com a tua família e não perguntas nada?
Doris libertou-Se das mãos de James com um violento esticão e, sem dizer palavra, encarou-o altiva e sobranceria.
— Nem sequer me perguntas nada a respeito de Bernard? — inquiriu, sorrindo.
— Se Bernard aqui estivesse... — contrapôs a rapariga.
James desatou à gargalhada, apoiando uma das mãos na mesa.
— Se Bernard aqui estivesse! — repetiu ele, em frouxos de riso. — Se aqui estivesse já tinha morrido de medo a estas horas. Esse badamento não passa de um cobarde. Esbofeteei-o apesar de me encontrar desarmado e ele empunhar o seu revólver... e nem assim foi capaz de disparar ou de reagir.
A jovem encolerizou-se ao ouvir a afirmação do bandido. De que se teria valido aquele miserável para agredir Bernard? Ela sabia perfeitamente que o seu namorado, quase seu noivo, não era um cobarde; era, pelo contrário, um homem como os que o sabem ser.
O golpe que Bernard não conseguiu aplicar no dia anterior, por atenção à vida dela que corria perigo iminente, foi agora desferido pelas suas frágeis mãos. Frágeis, apenas na aparência, por que depois do tremendo bofetão que aplicou a James, a face avermelhada deste demonstrou claramente a violência da pancada.
James pôs-se muito sério para, seguidamente, soltar uma cínica gargalhada.
— Mas se no final de contas a mocinha gosta a valer daquele lanaboia, tanto quanto melhor. Estou farto do amor fácil que todas as mulheres me oferecem. Tenho muito boa cotação entre o belo sexo. Todas são de opinião que eu sou na verdade um perfeito rapaz. Que dizes?
Tentou aproximar-se da rapariga que começou a recuar até junto da porta que tentou abrir em vão. James caiu-lhe em cima com um enorme salto, passou-lhe os braços sob os sovacos e enleou-a, ao mesmo tempo que a levantava em peso.
As mãos de Doris, porém, encontravam-se livres. As suas unhas afiadas rasgaram-lhe o rosto de alto a baixo, cavando profundos sulcos sangrentos, até que, finalmente, acabou por ser dominada. James agarrou-lhe ferozmente numa madeixa do cabelo, inclinou-lhe a cabeça para trás e ficou a contemplá-la durante alguns segundos.
Doris, com a cabeça imobilizada pela violência do puxão, olhava com os olhos esbugalhados para o homem que aproximou a sua cara da dela, continuando a sorrir escarninhamente.
— Já foste beijada alguma vez na tua vida, rapariguinha? Ser-me ia muito agradável que assim tivesse sido, para que tenhas ocasião de comparar o beijo de um homem autêntico com o de um...
A pobre vítima, invalida pela angústia e pela raiva, escarrou naquela horrível boca que pretendia unir-se à sua; e quando parecia que a sua fragilidade ia consentir que os desejos do homem se consumassem, foi a boca dela que se aproximou da boca que lhe cansava tanta repugnância, não para a beijar, mas para a morder, para enterrar os dentes no queixo do energúmeno que a enlaçava.
Saboreou o gosto do sangue que brotava dos rasgões feitos pelos seus dentes, ao mesmo tempo que um potente bofetão se lhe estampava na cara, estirando-a ao comprido. O homem vociferava e blasfemava, desvairado, assentando a pesada bota no corpo da rapariga.
— Cadela raivosa! Arranjaste pelas tuas próprias mãos o castigo de que és merecedora...
Doris não imaginava como aquele chicote apareceu nas mãos de James que o brandia, inexorável, disposto a fustigar-lhe o rosto. Cobriu-se, instintivamente, com as mãos e…
Uma série de detonações disparadas no exterior deteve o braço do homem pronto a desferir a chicotada. James abriu a porta arrastando a jovem atrás de si sem quaisquer contemplações e saiu para a rua. Doris pôs-se em pé e assomou-se quanto pôde, descortinando por entre as trevas alguns clarões que iluminavam o local. O ruído das detonações aumentava de minuto a minuto.
A luz que se escoava pela porta da casa principal Doris lobrigou um dos bandoleiros dobrar-se sobre si mesmo e cair estatelado!... Graças ao todo-poderoso havia sido descoberto o refúgio dos sequestradores e a libertação aproximava-se, pensou a prisioneira.
Um vulto aproximou-se rapidamente dela e obrigou-a a reentrar na cabana: era James; era de novo aquele hediondo e repulsivo homem. Nos olhos do bandido brilhava uma chama que a deixou gelada.
— É o fim que se aproxima, sabes? Por que hei-me ser forçado a morrer, matando? Não seria preferível amar?
Era indubitável que o homem tinha enlouquecido. Acabara de se convencer de que não havia salvação possível e, dentro da sua mente escandecida, surgiu aquela determinação selvática: digno remate de uma vida que foi uma sucessão de crimes.
James enlaçara a jovem que não fazia qualquer tentativa para defender-se, dada a surpresa com que foi colhida quando se julgava já livre do miserável. Tinha o vestido rasgado nos ombros pelo violento empuxão que James lhe dera, e os seus ombros apareciam nus aos olhos concupiscentes do aventureiro.
A boca do homem abriu-se num esgar estranho. Não tinha nada do habitual cinismo o sorriso que lhe esgarçava os lábios e os seus braços penderam frouxos, enquanto os seus olhos começavam a enevoar-se.
A jovem, uma vez desamparada pelos braços que a seguravam, tombou no solo, ficando a olhar espantada para o homem de cuja boca escorriam dois fios de sangue. Caiu de joelhos, deixando sair dos lábios um débil murmúrio, talvez o último da sua vida:
— Obrigado, «Bela»... A mãe de Doris não merecia que eu fizesse isto a sua filha...
Dobrou a cabeça, dando a impressão de que o seu desejo era procurar um regaço de mulher para seu último consolo, mas, a verdade é que James deixara de existir.
Doris descobriu o vulto de uma mulher por detrás do homem caído: era a índia a autora da punhalada que impediu que James consumasse os seus nefastos propósitos.
— Se o amavas tanto... porque fizeste isto?
— Porque não podia consentir que esse grande canalha... Estou horrorizada de mim mesma. Apesar de saber que ele não passava de um miserável, jamais pude supor que fosse possuidor de tão baixos instintos.
Ajudou Doris a levantar-se e, sem a largar, saiu com ela da cabana. O matraquear das armas de fogo tinha terminado, ouvindo-se em seu lugar um alarido que perturbava a calma da noite. Doris viu uma multidão de sombras exóticas que surgiam por toda a parte e agarrou-se desesperadamente à sua amiga. Eram peles-vermelhas, pintalgados e vociferantes.
— Nada receies — disse a índia. — São os meus. Desde há dias que eu vinha fazendo sinais de fumo, a partir do dia em que me convenci de que ele pretendia possuir-te. Não te disse uma vez que meu pai, «Bear-Claw», era o chefe dos «shoshones»?
Tinham chegado à entrada da casa principal e Doris viu estendido no solo um cadáver cujos olhos vidrados pareciam contemplá-la e amaldiçoá-la: era Carl Pierce. Pouco tempo demorou a sua contemplação porque um dos selvagens se lançou sobre o corpo, brilhando-lhe na mão a lâmina de uma faca.
— Afastemo-nos daqui. Não é agradável ver escalpelar um homem ainda que esse homem seja Carl Pierce.
Ao anoitecer do dia seguinte em que a tribo dos (shoshones», guiada pelos sinais de fumo feitos por «Bela Estrela», arrasou o acampamento do bando de Pierce, Doris Ames era conduzida ao rancho de seu avô.
O velho Preston, após as primeiras efusões de alegria por voltar a ver e abraçar sua neta, deu largas ao seu mau humor, censurando-se a si mesmo por se ter deixado enganar pelo tal James.
A outra Doris, a mãe da rapariga, depois também das suas maternais expansões e já na intimidade do aconchego do seu lar e satisfeitas já todas suas curiosidades, ainda teve de responder a uma pergunta formulada pela jovem:
— Mamã, como explicas tu aquelas estranhas palavras que o homem pronunciou antes de morrer? 
A mãe olhou vagamente para as sombras que a cercavam e respondeu:
— Que sei eu?... Esse rapaz viveu aqui quando era criança e conhecia-me muito bem... Naquele tempo nunca pensou, certamente, que viria um dia a ser um pistoleiro.
 

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