sábado, 30 de setembro de 2017

PAS794. Liberdade para as prisioneiras

Quando James ouviu a acusação de Godfrey dando Pierce como assassino de seu pai, este olhou interrogativamente para o seu chefe cujos olhos despediam clarões de indignação, o que levou o jovem bandido a olhar novamente para o pistoleiro ruivo.
— Juro que foi ele. Matou teu pai da maneira mais...
Não pôde continuar porque do revólver de James acabava de sair uma língua de fogo precursora da bala que se lhe cravou na testa. Caiu de bruços em cómica adoração ao homem que o matara que, não satisfeito com o primeiro tiro, continuou a fazer girar o tambor do seu «colt» em disparos consecutivos até que a cabeça de Godfrey ficou totalmente desfeita.
E quando o gatilho mordeu a espoleta da última bala, James voltou-se para Pierce que recuou um passo.
— Filho... Juro-te que não fui eu quem matou teu pai. Foi Godfrey. Pena é que Twingg tenha morrido; ele é que poderia explicar-te como as coisas se passaram.
-- Basta de explicações, Carl... Não duvido nem um momento da tua palavra. Nem sequer atribuo a Godfrey a morte de meu velho pai; o verdadeiro culpado foi Pres-tou, o avô da rapariga, mas esse já amargou bem a sua miserável ação.
Deixou de olhar para Pierre e virou-se para Doris que o escutava suspensa das suas palavras.
— O bom do velho rancheiro perdeu cem mil dólares... e perdeu também a sua neta.
Um grito dilacerante saiu do peito da infeliz menina que, abandonando a índia a que se abraçava, correu a esconder-se no interior da cabana, seguida de perto pela pele-vermelha.
— Estou decididamente resolvido a ficar com aquela mulher — disse James, olhando para Pierce. — A não ser que a queira para si...
— É tua, rapaz. Mas recomendo-te que tenhas as maiores precauções com ela; Godfrey atreveu-se a visitá-la e foi por um triz que ela o não estendeu com uma bala.
— Sei como se dominam essas ferazinhas — disse James, sorrindo superiormente. — E agora podemos regularizar as nossas contas. Está bem?
Pierce e James dirigiram-se para casa, libertando-se dos demais companheiros, dois dos quais arrastaram pelos pés o cadáver de Godfrey.
Doris, apenas pôs os pés na cabana que a albergara durante todo aquele tempo, atirou-se para cima da cama e meteu a mão por baixo do travesseiro em busca do punhal que a índia lhe ofertara. Empunhou-o com decisão e apontou a extremidade ao sítio do coração cujas pulsações lhe faziam arfar os seios.
Alguém lhe caiu em cima: «Bela Estrela» que lutou decididamente pela posse do precioso objeto. A jovem pele-vermelha foi ao ponto de morder o pulso de Doris para conseguir que ela largasse o punhal da mão. Uma vez logrado o seu objetivo, ocultou-a entre o vestido, empurrando a outra para sobre a cama onde ficou soluçando aflitivamente.
— Que ias tu fazer? — perguntou a índia.
Doris voltou-se com os olhos lacrimejantes.
— O que tu própria me aconselhaste. Será inútil impedires-me de o fazer. De uma forma ou de outra, porei termo à existência.
— Aconselhei-te por que não te estimava... mas também te não odiava. Pensava muito convictamente que seria essa a melhor solução para uma mulher que se encontrasse nas tuas condições, mas agora...
— Agora quê ? Podes proporcionar-me outra alternativa?
— Sim. Que continues a viver. li tão agradável viver, respirar!... Custar-te-á muito nos primeiros dias, mas...
— Desaparece da minha vista! Não quero ver-te mais! E... és tu que dizes que és minha amiga? E és tu que me pedes que viva para ser a...
Doris não sabia se tinha dormido ou se estivera todo aquele tempo insensível de corpo e de espirito. Tinha frio. «Bela Estrela» já ali se não encontrava e pela fresta da porta entreaberta penetrava uma guieira demasiado fresca. Pôs-se em pé e foi fechar a porta. Voltou para a cama e, como se encontrava fisicamente esgotada, adormeceu profundamente até de manhã, visto que durante a noite não houve mais surpresas.
Só no dia seguinte, já com a manhã bastante adiantada, é que recebeu a visita do homem que declarara que ela lhe pertenceria. James observou-a durante um minuto. Doris encontrava-se acocorada de encontro à parede da cama que se não atrevia a abandonar. Na cara do homem estampou-se uma expressão de desgosto.
-- Não gosto de ver-te assim. Não estás bonita, apesar do lindo vestido que tens.
Avançou alguns passos e pegou na fímbria do vestido a que acabava de aludir, sem que a jovem fizesse qualquer movimento.
—E uma bela peça de vestuário, não te parece? «Bela» é muito boa rapariga. Fez-te presente dele, não foi? Gostaria imenso que vocês fossem amigas.
A mão de James, ante a passividade de Doris permitindo-lhe aquelas liberdades, procurou acariciar-lhe um braço o que provocou na jovem uma reação de nojo como se tivesse tocado em algum réptil.
O homem soltou uma estridente gargalhada, mas não se atreveu a continuar.
— Não te assustes, cachopa. Não sinto qualquer prazer em cortejar as mulheres durante o dia. Sou de opinião que a noite é mais propicia aos mistérios do amor.
Doris soltou um suspiro de alivio ao ver que James se retirava. E as horas começaram a escoar-se lentamente, mas ao mesmo tempo rápidas demais, dada a hipótese de, naquela noite...
Notou a ausência da índia que, apesar de o sol ter desaparecido há bastante tempo, ainda não voltara a dar sinal de si. Ao meio dia, uma mulher que não abriu a boca fosse para o que fosse, veio trazer-lhe uma bandeja repleta de comida que colocou sobre a mesa, mas em que a prisioneira não se dignou tocar.
As sombras da noite, adensando-se cada vez mais, sobressaltaram-na. Esperaria o tempo que fosse necessário para dar ocasião a que os homens estivessem reunidos como era seu costume, a fim de pôr em prática o seu projeto de fuga.
A jovem tinha traçado um audacioso plano de evasão: aproveitando-se da escuridão, rastejaria até ao lugar que servia de entrada e de saída do refúgio. Ela lembrava-se muito bem da prevenção da índia, acerca dos múltiplos perigos a que se expunha, mas pensava para consigo que se fosse descoberta e morta pela sentinela, seria também uma forma de se evadir. Se ela dispusesse de uma arma qualquer ao seu alcance, não teria sido ela própria a deixar voluntariamente a vida?
Abandonou a cama em que se refugiara e aproximou-se da porta com passos vacilantes - e abriu-a lentamente. Destacando-se no vão da porta recortavam-se os contornos de um vulto. Era James que desfranziu os lábios num sorriso acanalhado.
— É como vês, meu amor. Há qualquer coisa que nos atrai um para o outro. Como conseguiste adivinhar que eu me aproximava de ti?
Doris recuou, tapando com as mãos a boca que se lhe abria horrorizada. James entrou na cabana com a maior tranquilidade, fechando a porta atrás de si com um dos pés, porque trazia ambas as mãos ocupadas.
— Quis ser eu próprio a trazer-te a comida para a tua ceia... ou, por outra, para cearmos ambos porque eu desejo fazer-te companhia.
Colocou sobre a mesa os alimentos de que era portador, riscou um fósforo e acendeu o candeeiro. A jovem tentou correr para a porta, mas foi imediatamente agarrada por James que a segurou por um braço, atraindo-a para si.
— Que é isso, minha flor, foges de mim? Nunca encontrei na vida uma mulher tão pouco curiosa. Sabes que estive com a tua família e não perguntas nada?
Doris libertou-Se das mãos de James com um violento esticão e, sem dizer palavra, encarou-o altiva e sobranceria.
— Nem sequer me perguntas nada a respeito de Bernard? — inquiriu, sorrindo.
— Se Bernard aqui estivesse... — contrapôs a rapariga.
James desatou à gargalhada, apoiando uma das mãos na mesa.
— Se Bernard aqui estivesse! — repetiu ele, em frouxos de riso. — Se aqui estivesse já tinha morrido de medo a estas horas. Esse badamento não passa de um cobarde. Esbofeteei-o apesar de me encontrar desarmado e ele empunhar o seu revólver... e nem assim foi capaz de disparar ou de reagir.
A jovem encolerizou-se ao ouvir a afirmação do bandido. De que se teria valido aquele miserável para agredir Bernard? Ela sabia perfeitamente que o seu namorado, quase seu noivo, não era um cobarde; era, pelo contrário, um homem como os que o sabem ser.
O golpe que Bernard não conseguiu aplicar no dia anterior, por atenção à vida dela que corria perigo iminente, foi agora desferido pelas suas frágeis mãos. Frágeis, apenas na aparência, por que depois do tremendo bofetão que aplicou a James, a face avermelhada deste demonstrou claramente a violência da pancada.
James pôs-se muito sério para, seguidamente, soltar uma cínica gargalhada.
— Mas se no final de contas a mocinha gosta a valer daquele lanaboia, tanto quanto melhor. Estou farto do amor fácil que todas as mulheres me oferecem. Tenho muito boa cotação entre o belo sexo. Todas são de opinião que eu sou na verdade um perfeito rapaz. Que dizes?
Tentou aproximar-se da rapariga que começou a recuar até junto da porta que tentou abrir em vão. James caiu-lhe em cima com um enorme salto, passou-lhe os braços sob os sovacos e enleou-a, ao mesmo tempo que a levantava em peso.
As mãos de Doris, porém, encontravam-se livres. As suas unhas afiadas rasgaram-lhe o rosto de alto a baixo, cavando profundos sulcos sangrentos, até que, finalmente, acabou por ser dominada. James agarrou-lhe ferozmente numa madeixa do cabelo, inclinou-lhe a cabeça para trás e ficou a contemplá-la durante alguns segundos.
Doris, com a cabeça imobilizada pela violência do puxão, olhava com os olhos esbugalhados para o homem que aproximou a sua cara da dela, continuando a sorrir escarninhamente.
— Já foste beijada alguma vez na tua vida, rapariguinha? Ser-me ia muito agradável que assim tivesse sido, para que tenhas ocasião de comparar o beijo de um homem autêntico com o de um...
A pobre vítima, invalida pela angústia e pela raiva, escarrou naquela horrível boca que pretendia unir-se à sua; e quando parecia que a sua fragilidade ia consentir que os desejos do homem se consumassem, foi a boca dela que se aproximou da boca que lhe cansava tanta repugnância, não para a beijar, mas para a morder, para enterrar os dentes no queixo do energúmeno que a enlaçava.
Saboreou o gosto do sangue que brotava dos rasgões feitos pelos seus dentes, ao mesmo tempo que um potente bofetão se lhe estampava na cara, estirando-a ao comprido. O homem vociferava e blasfemava, desvairado, assentando a pesada bota no corpo da rapariga.
— Cadela raivosa! Arranjaste pelas tuas próprias mãos o castigo de que és merecedora...
Doris não imaginava como aquele chicote apareceu nas mãos de James que o brandia, inexorável, disposto a fustigar-lhe o rosto. Cobriu-se, instintivamente, com as mãos e…
Uma série de detonações disparadas no exterior deteve o braço do homem pronto a desferir a chicotada. James abriu a porta arrastando a jovem atrás de si sem quaisquer contemplações e saiu para a rua. Doris pôs-se em pé e assomou-se quanto pôde, descortinando por entre as trevas alguns clarões que iluminavam o local. O ruído das detonações aumentava de minuto a minuto.
A luz que se escoava pela porta da casa principal Doris lobrigou um dos bandoleiros dobrar-se sobre si mesmo e cair estatelado!... Graças ao todo-poderoso havia sido descoberto o refúgio dos sequestradores e a libertação aproximava-se, pensou a prisioneira.
Um vulto aproximou-se rapidamente dela e obrigou-a a reentrar na cabana: era James; era de novo aquele hediondo e repulsivo homem. Nos olhos do bandido brilhava uma chama que a deixou gelada.
— É o fim que se aproxima, sabes? Por que hei-me ser forçado a morrer, matando? Não seria preferível amar?
Era indubitável que o homem tinha enlouquecido. Acabara de se convencer de que não havia salvação possível e, dentro da sua mente escandecida, surgiu aquela determinação selvática: digno remate de uma vida que foi uma sucessão de crimes.
James enlaçara a jovem que não fazia qualquer tentativa para defender-se, dada a surpresa com que foi colhida quando se julgava já livre do miserável. Tinha o vestido rasgado nos ombros pelo violento empuxão que James lhe dera, e os seus ombros apareciam nus aos olhos concupiscentes do aventureiro.
A boca do homem abriu-se num esgar estranho. Não tinha nada do habitual cinismo o sorriso que lhe esgarçava os lábios e os seus braços penderam frouxos, enquanto os seus olhos começavam a enevoar-se.
A jovem, uma vez desamparada pelos braços que a seguravam, tombou no solo, ficando a olhar espantada para o homem de cuja boca escorriam dois fios de sangue. Caiu de joelhos, deixando sair dos lábios um débil murmúrio, talvez o último da sua vida:
— Obrigado, «Bela»... A mãe de Doris não merecia que eu fizesse isto a sua filha...
Dobrou a cabeça, dando a impressão de que o seu desejo era procurar um regaço de mulher para seu último consolo, mas, a verdade é que James deixara de existir.
Doris descobriu o vulto de uma mulher por detrás do homem caído: era a índia a autora da punhalada que impediu que James consumasse os seus nefastos propósitos.
— Se o amavas tanto... porque fizeste isto?
— Porque não podia consentir que esse grande canalha... Estou horrorizada de mim mesma. Apesar de saber que ele não passava de um miserável, jamais pude supor que fosse possuidor de tão baixos instintos.
Ajudou Doris a levantar-se e, sem a largar, saiu com ela da cabana. O matraquear das armas de fogo tinha terminado, ouvindo-se em seu lugar um alarido que perturbava a calma da noite. Doris viu uma multidão de sombras exóticas que surgiam por toda a parte e agarrou-se desesperadamente à sua amiga. Eram peles-vermelhas, pintalgados e vociferantes.
— Nada receies — disse a índia. — São os meus. Desde há dias que eu vinha fazendo sinais de fumo, a partir do dia em que me convenci de que ele pretendia possuir-te. Não te disse uma vez que meu pai, «Bear-Claw», era o chefe dos «shoshones»?
Tinham chegado à entrada da casa principal e Doris viu estendido no solo um cadáver cujos olhos vidrados pareciam contemplá-la e amaldiçoá-la: era Carl Pierce. Pouco tempo demorou a sua contemplação porque um dos selvagens se lançou sobre o corpo, brilhando-lhe na mão a lâmina de uma faca.
— Afastemo-nos daqui. Não é agradável ver escalpelar um homem ainda que esse homem seja Carl Pierce.
Ao anoitecer do dia seguinte em que a tribo dos (shoshones», guiada pelos sinais de fumo feitos por «Bela Estrela», arrasou o acampamento do bando de Pierce, Doris Ames era conduzida ao rancho de seu avô.
O velho Preston, após as primeiras efusões de alegria por voltar a ver e abraçar sua neta, deu largas ao seu mau humor, censurando-se a si mesmo por se ter deixado enganar pelo tal James.
A outra Doris, a mãe da rapariga, depois também das suas maternais expansões e já na intimidade do aconchego do seu lar e satisfeitas já todas suas curiosidades, ainda teve de responder a uma pergunta formulada pela jovem:
— Mamã, como explicas tu aquelas estranhas palavras que o homem pronunciou antes de morrer? 
A mãe olhou vagamente para as sombras que a cercavam e respondeu:
— Que sei eu?... Esse rapaz viveu aqui quando era criança e conhecia-me muito bem... Naquele tempo nunca pensou, certamente, que viria um dia a ser um pistoleiro.
 

PAS793. Eis o homem que matou o teu pai

Como se a proximidade do jovem pistoleiro lhe tivesse redobrado as forças, Pierce valeu-se de todos os seus recursos, conseguindo pouco depois colocar-se por cima do seu adversário, pondo-se seguidamente em pé.
— Vem ai James; vou dar-lhe a honra de acabar contigo — disse Carl, olhando para o homem caído e que se não atrevia a levantar-se.
Doris divisou muito longe dali o vulto de um cavaleiro que se aproximava velozmente. Tinha passado muitas horas suspirando pela sua vinda, acreditando firmemente que isso representaria a liberdade para ela... Aquele que fora em busca do dinheiro do resgate tinha acabado de chegar. Que iria acontecer agora?
James apeou-se da montada, olhou à sua volta, perguntando finalmente:
— Que significa isto?
— Foi esse imbecil do Godfrey que tentou abusar da rapariga... e ela repeliu-o a tiro, vendo-se ele obrigado a fugir — disse Pierce. — Foi condenado à morte; acaba tu com ele.
 James avançou alguns passos e debruçou-se sobre Godfrey que nada de bom devia ter lido nos olhos do mancebo porque começou a rastejar para trás enquanto dizia:
— Um momento, James! Deixa-me falar...
O recém-chegado deu uma forte calcadela num dos pés do vencido para o impedir de continuar a afastar-se.
— Porque desejas falar? L para rezar as tuas orações?
Godfrey, apoiando-se em ambos os braços, erguia-se o mais possível, talvez para que o ouvissem melhor:
— Escuta-me, James!... Tu que passaste toda a tua vida a querer saber quem matou teu pai... vais sabê-lo agora: Ai o tens! Carl Pierce é o homem que assassinou teu pai!

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

PAS792. Resistir

Doris cerrava os dentes e dobrava-se para trás quanto lhe era possível. O punhal, se pudesse tê-lo ao seu alcance, com quanta satisfação ela própria se teria libertado da vida como a índia lhe aconselhara.
— Socorr... — tentou ela gritar! Mas a mão do homem tapou-lhe imediatamente a boca.
De alguma coisa lhe serviu o seu grito sufocado, porque Godfrey se viu obrigado a desistir do beijo que quase esteve a ponto de imprimir no pescoço da rapariga.
Os seus olhos, ao poisá-los agora nos olhos da sua vítima, estavam impregnados de um brilho mais intenso.
— Isso é que nunca, boneca; se começas a ganir obrigas-me a abrir-te a cabeça. Porque é que não hás-de ser condescendente?... Ah! maldita...
A última exclamação do homem provinha da dor produzida pela mordedura que Doris lhe dera na mão com que ele pretendia tapar-lhe a boca. E como a violência da dor o obrigasse a fazer um movimento de recuo, aliviando assim a pressão do seu braço, a jovem atirou-se para trás cora todas as suas forças, conseguindo afastar-se do energúmeno e deixando-se cair na cama de onde o homem a tinha levantado.
Mas foi sol de pouca dura porque Godfrey voltou a cair-lhe em cima com violência redobrada. Ela vociferou, arranhou e cuspiu, mas o outro, sem que desse grande importância aos ferimentos recebidos, pretendia a todo o custo aproximar o seu rosto do da rapariga.
Doris ficara com um braço estendido para trás em virtude da queda, imobilizado sob a pressão da mão do seu perseguidor. Os dedos da jovem, crispados pelo esforço e pela ânsia de libertação, sentiram a certa altura o contacto frio e metálico de um objeto que lhe iluminou o cérebro. Era o revólver. Tinha-o ali ao alcance da sua mão e conseguiu apoderar-se dele.
Quando parecia já ser impossível evitar o odioso beijo que o outro forcejava por conseguir, o seu dedo apertou o gatilho, produzindo-se um enorme estampido. Se bem que a bala fosse cravar-se na parede, a jovem conseguiu, ainda que mais não fosse, que o homem se afastasse dela, grandemente assustado.
— Que acabas de fazer, minha viborazinha? Imaginas o sarilho que vais arranjar com isto?
E como Doris tivesse começado a levantar-se, estendeu-a de novo com um formidável bofetão. Recuou dois passos, protegendo-se com as mãos, como se quisesse defender-se das balas, prontas a disparar pelo revólver que ela lhe continuava assestando.
— Não, rapariga... Eu vou-me já embora... mas, por Deus, não dispares — dizia Godfrey ao mesmo tempo que recuava em direção à porta.
A jovem hesitou um segundo. Matar um seu semelhante... Mas, seria na realidade seu semelhante aquele réptil com forma humana que tentou abusar da sua fragilidade e que retrocedia agora suplicante? Que Deus lhe perdoasse!
E fechando os olhos, apertou segunda vez o gatilho. Godfrey caiu desamparado para trás batendo com a cabeça na porta que produziu um som cavo. Reergueu-se rapidamente como se fosse um gato, levantou o fecho da porta franqueando a saída, perseguido por um novo tiro disparado por Doris, quando se certificou de que o não tinha atingido.
Seguiu-se um minuto de silêncio, após o qual começaram a sentir-se no exterior ruídos de vozes e de correrias numa algazarra medonha. A jovem teve o ânimo suficiente para ir espreitar o que se passava, vendo então um numeroso grupo de homens que saiam da casa principal, perguntando uns aos outros o que havia acontecido. Um deles destacou-se do conjunto e dirigiu-se para ela. Era Pierce.
— Que acaba de se passar aqui, pequena? — perguntou ele, iluminando-lhe o rosto com a lanterna de que era portador e a cuja luz pôde verificar a existência do revólver na posse da rapariga. — Que é isso? Onde foste tu arranjar esse traste?
Doris podia ter-se servido da arma. Se ela fosse um homem, talvez não tivesse hesitado em o fazer; por seu mal, não passava de uma pobre mulher e foi como tal que entendeu dever proceder: deixou cair a arma aos pés e encostou-se á chorar à ombreira da porta.
Cari obrigou-a a voltar-se para ele, pegando-lhe no queixo com a mão.
— Fala, pequena. Contra quem disparaste?
Soou ao longe uma detonação, o que obrigou Pierce a deixar a mulher e a correr para fora, gritando:
— Foi para os lados da entrada. Que diabo...
Todos os outros homens o seguiram, adiantando-se alguns deles a cavalo. Uma sombra aproximou-se de Doris. –
- Eu não te preveni? Foste visitada por alguém, não é verdade?
A jovem, que acabava de reconhecer a índia, correu á abraçar-se a ela.
— Tinhas razão. São todos uns canalhas!... Esse autêntico louco que é Godfrey tentou...
«Bela Estrela» deu curso ao caudal das suas ternuras para acalmar a inditosa rapariga. E tinha quase conseguido o seu objetivo, quando os homens começaram a regressar envoltos pelos clarões das lanternas e dos archotes que transportavam. Constituíam uma espécie de cortejo que veio deter-se junto das duas mulheres.
A seus pés veio estatelar-se um homem que havia sido violentamente empurrado. Pierce, que fora o autor do empurrão, tomou a palavra, olhando para Doris:
— Diz-me se é verdade o que eu suponho: este miserável coiote infiltrou-se no teu quarto e tu sentiste-te na necessidade de atirar sobre ele, é isto exato?
A jovem olhou para o homem caído que a fitava cheia de angústia agitando a cabeça, como que a implorar-lhe que negasse. Sentiu pena, tal era o terror que, aqueles olhos exprimiam. Um terror pânico de um ser que se aferra desesperadamente à vida... Que obrigação tinha ela de defender aquele canalha que...
— Sim senhor. Foi tal qual assim. Doris contou-me como as coisas se passaram — respondeu, em vez dela, a' outra mulher.
Pierce mostrou os dentes num sorriso de ferocidade.
— Nunca te supus tão estúpido, Godfrey... Tinhas obrigação de saber que depois de uma tal proeza nunca te podia perdoar. Era por isso que querias safar-te de junto de nós. Foi uma pena que nem Doris nem Sam te tivessem atingido... Porque esperas para apertar o cinturão, grande cachorro?
Godfrey tinha acabado de desafivelar o cinto, ficando completamente desarmado.
— Não, Carl... Para que necessito eu dele? Eu não desejo defrontar-me contigo... És muito rápido. Tens de me perdoar. Foste, aliás, o primeiro a dizer que se James a não quisesse...
O chefe aproximou-se e aplicou-lhe uma tremenda patada nos costados.
— Defende-te, cobarde! Queres obrigar-me a matar-te como a um cão?
Godfrey, arrastando-se aos pés de Pierce, implorava lamentoso:
— Não me mates... Prometo-te...
-- Está bem; vou desfazer-te com as minhas mãos! — gritou Pierce, desafivelando por sua vez o cinturão de que pendiam os seus revólveres.
Godfrey olhava-o surpreendido. Os seus olhos já não exprimiam o mesmo terror; talvez pensasse que uma luta corpo a corpo... A mão de Pierce agarrou uma porção de cabelos do bruto e, endireitando-lhe um pouco a cabeça, ' descarregou-lhe um tão potente murro no nariz que o corpo do outro ficou estendido no terreno, enquanto na sua mão ficava o punhado de cabelo em que lhe agarrara momentos antes.
A botifarra de Carl elevava-se agora, no propósito de esmagar a cabeça de Godfrey, o que teria certamente conseguido se aquele se não desviasse como o fez, agarrando subitamente no pé de Pierce e dando-lhe uma torcedela que o fez desequilibrar. Pierce caiu no solo, indo juntar-se aquele que pretendia esmagar.
Godfrey não perdeu tempo. Caiu sobre ele e agrediu-o violentamente, a murro e a pontapé, tanto na cara como no resto do corpo. Ele, que tanto medo tinha do seu chefe quando armado, atrevia-se agora a lutar com ele, confiando sem dúvida em que podia vencê-lo, uma vez que o seu adversário era muito mais velho do que ele.,
Um dos que assistiam à luta deu alguns passos, no intuito de socorrer o velho, do que foi impedido por um terceiro:
— Deixa-os, Ralph; o chefe não gostaria que qualquer de nós interviesse.
O silêncio que os envolvia, apenas interrompido pelo respirar arquejante dos contendores em luta, foi quebrado pelo grasnar de uma ave de rapina soando a grande distância.
— James... é James que está de volta — disse Pierce, apesar da difícil posição em que se encontrava, sob a pressão de Godfrey.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

PAS791. Nas mãos de um ser asqueroso

Pierce veio visitá-la algumas horas depois, dando-lhe um tratamento amabilíssimo como se se tratasse de uma verdadeira hóspede. Ela respondeu com monossílabos às interrogações que o homem lhe dirigia, perguntando-lhe, em certo momento, à queima-roupa:
— Está na disposição de me mandar para casa depois de receber o preço do resgate?
Pierce titubeou e abriu ainda mais o seu sorriso!
— Estás a ser muito curiosa, pequena. Ainda não temos o dinheiro em nosso poder.
E sem acrescentar mais palavra, abandonou a cabana precipitadamente. «Bela Estrela» entrou a seguir, a fim de lhe trazer mais comida. Doris, que elaborara já o seu plano, experimentou pô-lo em prática. Sondou-a.
— Impossível fugir daqui — respondeu. — Já, certamente, verificaste que ninguém se dá ao trabalho de fechar a porta da tua prisão. Para quê? Existe apenas um caminho que está permanentemente vigiado. Qualquer homem, sem mais ajuda, poderá fazer frente a mais de um cento.
— Não queres ajudar-me? — queixou-se a jovem.
— Não é bem assim. Não é não querer; é não poder. A tua sorte depende exclusivamente de ti; ou ficas aqui a compartilhar a sorte de muitas outras desgraçadas que, como tu, vivem para o capricho do bando, ou...
Efetivamente, Doris tinha observado em diversas ocasiões, através da porta entreaberta, que algumas mulheres deambulavam por ali, entrando e saindo da casa principal. Ficou-se novamente sozinha, com os seus receios e com os seus remorsos, recriminando-se a si própria pelas desgraças que até aí lhe tinham sucedido e que eram o fruto da sua insensatez, ao ter persistido em seguir viagem, a despeito dos perigos que lhe anunciaram.
O dia decorreu com toda a normalidade. A noite há muito já que cobria toda a terra, mas ela persistia em manter os olhos abertos, estendida sobre a cama, com a atenção posta na porta de entrada, único ponto que podia ser utilizado por quem intentasse...
Estremeceu. Um débil ruído preveniu-a de que alguém tentava levantar o tranquete. Encolheu-se toda e esperou, anelante, alguns segundos. A escuridão era absoluta e uma aragem fresca que lhe beijou as faces deu-lhe a entender que a porta se abria lentamente. Mal teve tempo para dizer:
—És tu Bela?
Agora sim, podia ver nitidamente que um vulto deslizava para dentro, fechando a porta atrás de si e que um vago riso lhe punha os cabelos em pé.
— Isso é uma galanteria? — sussurrou uma voz. —Bela, eu?
 E o estúpido sorriso do homem ria-se agora da sua própria ironia.
Doris já não podia ter dúvidas acerca de quem se tratava: era aquele repugnante homem de pelo ruivo que durante o caminho lhe insinuara as suas pretensões amorosas.
A jovem ficou paralisada pelo terror. Apenas os seus olhos se revolviam nas órbitras, acompanhando aqueles outros olhos que cintilavam na obscuridade e avançavam em direção à cama. Ouviu o respirar ofegante do homem de mistura com um risinho soez.
— Eu só pretendo ajudar-te sabes, minha rosa? Anda, se fores condescendente comigo verás como 'ficamos a rir-nos de todos os outros... Gosto tanto de ti!
E como a jovem não se movia nem gritava em virtude do pânico e da repugnância de que estava possuída, foi aquele silêncio tomado pelo homem como um sinal de anuência aos seus desejos, sem suspeitar que era tudo fruto do nojo e da repulsa que Doris sentia por ele. Inclinou-se e pegou-lhe pelos ombros, na intenção de aproximar o seu rosto do dela. O contacto daquelas horríveis mãos devolveram à jovem toda a energia do seu carácter, levando-a a reagir de uma maneira altamente dolorosa para o homem: as suas afiadas unhas enterraram-se na epiderme de Godfrey, muito próximo dos olhos que certamente lhe teriam saltado das órbitras, se não tivesse cerrado instintivamente as pálpebras.
As mãos de Godfrey abandonaram os ombros de Doris para descerem até ao seu frágil pescoço que apertou com a maior violência, vendo-se a jovem na contingência de retirar as suas mãos da cara do homem para conseguir libertar-se das garras que a impossibilitavam de respirar. O homem, como não tinha intenção de a estrangular, deixou de comprimir-lhe o pescoço para lhe prender os braços, impossibilitando-a assim de toda e qualquer defesa.
— Talvez me tivesse desgostado se te tivesses entregado sem resistência; assim é mais saboroso — segredou-lhe ele ao ouvido.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

PAS790. Um vestido e um punhal para a prisioneira

Ao entardecer daquele mesmo dia em que Pierce e os seus homens iludiram os seus perseguidores, o bando dos sequestradores, levando consigo a jovem raptada, fazia a sua aparição no alto vale das «Big Horn» que eles apelidavam de «Gruta das Aguias».
A jovem prisioneira, completamente derreada pela dura caminhada a que fora obrigada, quase se sentiu alegre pela chegada aquela casa que iria ser dal em diante a sua prisão. Não sentiu ânimo para admirar as paisagens e simplesmente se apercebeu que era levada para uma espécie de cabana de sólida aparência, distante cerca de vinte metros da casa principal. Essa cabana era constituída por um singelo compartimento. Apesar disso emanava de toda ela uma espécie de conforto que lhe advinha da cama de pernas curtas e que parecia oferecer uma certa comodidade, a julgar pelo amplo colchão que ostentava.
Uma espessa pele de urso servia-lhe de «édredon» e aos pés da mesma cama, outra pele, também de urso, dava uma agradável sensação ao seu corpo pisado, como se fosse um fofo tapete.
Doris, que se deixara cair na cama logo que Pierce a deixou sozinha, sobressaltou-se grandemente quando sentiu que alguém batia à porta. Sabia que adormecera, mas, por quanto tempo? Não o sabia; mas a vaga claridade que se coava pelo postigo já não existia. Antes que tivesse mandado entrar quem batia, abriu-se a porta e a luz de uma lanterna portátil encandeou-a por um momento.
 Por fim, foi-lhe possível verificar quem era a pessoa portadora do farol: tratava-se de uma mulher, de cujo rosto e ombros nós se espargiam reflexos cor de bronze. Era uma mulher nova e bonita, apesar de um certo ar selvagem que se desprendia da sua pessoa. Talvez esse aspeto fosse devido às estranhas roupas que vestia: uma curta saia feita de pele de anta que não chegava a cobrir-lhe os joelhos e uma espécie de blusa ou jaleco do mesmo material, com que cobria os dois seios, mostrando a sua doirada carne entre a saia e o jaleco.
A jovem prisioneira reparou então que a outra era portadora de uma tigela fumegante que lhe ofereceu quando se aproximou. Afinal de contas, Pierce, no seu desejo de querer ser amável, tinha-se lembrado dela.
-- Podes levá-la; não tenho apetite nem disposição para comer seja o que for — disse Doris, não muito convencida de que a índia a tivesse compreendido.
— Como quiseres — respondeu a rapariga que trouxe os alimentos e no tom das suas palavras havia qualquer coisa de altivo e de arrogante. -- Mas, segundo disse Carl, ainda hoje não comeste nada; se o fazes por desprezo entendo que é uma grande tolice porque te prejudicas a ti mesma.
Doris devia ter reconsiderado por que se sentou na cama e apoderou-se da tigela. Não cheirava mal; devia tratar-se de um guisado de carne de veado. Olhou sem agrado para a índia que, como resposta, deixou ficar a lanterna sobre uma mesa e encaminhou-se para a porta. Chegada ali e antes de fechar a porta atrás de si fletiu ligeiramente os joelhos, imitando o cumprimento de uma mulher civilizada. E se não tivesse fechado rapidamente a porta, talvez lhe viesse cair em cima a tigela que a prisioneira segurava nas mãos, por se ter apercebido do escárnio da reverência.
Cheia de raiva, mas também cheia de apetite a rapariga acabou de comer o que a tigela continha, lamentando não ter à mão um pedaço de pão ou de bolo para o ensopar no molho. Não havia dúvida de que o molho estava uma delicia. Atirou com a tigela ao chão e deitou-se toda para trás, mas ergueu-se rapidamente e foi empurrar a mesa contra a porta, juntamente com dois bancos rústicos ali existentes. Voltou para a cama, estendeu-se e cobriu-se com metade da pesada pele de urso. Tinha de pensar em muitas coisas: a sua pobre mãe, o seu avô que talvez aquelas horas fossem já sabedores das suas angústias...
Alguma coisa de insólito lhe roçava pelos cabelos, o que a levou a abrir um dos olhos e a espreitar de soslaio: era a mão da índia que lhos acariciava, completamente debruçada sobre si. Ergueu-se de um salto, o que obrigou a outra a dar um pulo para trás toda assustada, mostrando-lhe de seguida e, risonhamente, uma fiada de dentes como pérolas, tendo na boca uma expressão de bonomia.
— Que estavas fazendo? — perguntou Doris, sendo ela agora a agarrar-lhe nos cabelos com desconfiança.
— Queria simplesmente verificar se o teu cabelo... era mesmo cabelo ou se eram fios de ouro.
Doris sorriu-se ante a ingenuidade da rapariga.
—E porque te pareceu que seria ouro?
— Porque ao entrar fiquei maravilhada pela maneira como ele brilhava ao dar-lhe a luz do sol.
A prisioneira parecia agora muito assustada.
— Como é que conseguiste entrar aqui? A porta está atravancada...
— Eu sei, porque experimentei. E custou-me bastante a consegui-lo porque tu não respondeste ao meu chamamento.
A luz do sol batia agora em cheio no rosto de Doris, levando-a a perguntar:
— Que horas são?
— Muito tarde. Vim para te ajudar a vestir, foi Pierce quem mo pediu.
— Vestir-me? Ainda não reparaste que nem sequer me despi esta noite?
Os olhos da índia foram poisar-se num objeto de cor intensamente vermelha que se destacava. sobre a mesa: um vestido feminino.
— Mas, afinal, que é isto? — disse Doris.
— É o que estás vendo. É para ti, sou eu que to ofereço. Sempre te assentará melhor a ti do que a mim.
Doris que, no fundo, era mulher, não pôde evitar a tentação de se aproximar da mesa e de mergulhar as mãos no tecido.
— Peço-te que o aceites. Foi-me trazido por James não há ainda muito tempo. Quando o vesti pela primeira vez, ficou aborrecido e disse-me que gostava mais de me ver com os meus trajes da selva.
— Mas tu não és nenhuma selvagem. Falas perfeitamente a nossa língua, mas... és porventura a «squaw» de James?
A índia sorriu-se tristemente.
— Foi um missionário que me ensinou a vossa linguagem... Não sou a «squaw» de James; meu pai, chefe dos «shoshones», ofereceu-lhe um «wigwan» na nossa tribo, mas o homem branco, James, não quis lá ficar.
— Trouxe-te, então, com ele?
— Não; eu é que resolvi segui-lo.
Um silêncio reinou momentaneamente, entre as duas mulheres. Seguidamente a pele-vermelha aproximou-se de Doris e ajoelhando-se a seus pés começou a despojá-la das roupas masculinas que ela vestia sem que esta fizesse qualquer objeção. Minutos depois as duas jovens admiravam, sorridentes, o efeito que o vestido vermelho fazia no corpo da de pele branca. Doris punha-se na ponta dos pés para conseguir mirar-se num minúsculo espelho suspenso numa das paredes.
— Sabes? — dizia a rapariga. — Minha mãe escandalizar-se-ia se me visse com este vestido tão berrante. Entre nós é de muito mau gosto as raparigas solteiras, vestirem-se assim. É claro que eu sempre tive desejos de me vestir assim. É verdade: ainda não me disseste como te chamas.
— James dá-me o nome de «Bela-Estrela». Diz que nos meus olhos brilha um luzeiro que... tolices... Aqui todos me conhecem assim.
— Os meus agradecimentos Bela; recordar-me-ei de ti quando regressar a minha casa.
Nas pupilas da rapariga não brilhou um luzeiro como afirmava James, mas sim uma espécie de relâmpago que melhor se diria de tristeza. Puxando por um afiado punhal que ocultava entre os seios estendeu a mão armada para Doris que, assustada, recuou dois passos.
— Toma. Quero oferecer-te também isto.
A prisioneira suspirou, aliviada.
— É um objeto muito bonito, mas não compreendo...
— Por mim, se não tivesse sido James quem... quereria ter ao alcance da mão urna arma assim no dia em que... Compreendes?
«Bela-Estrela» falava agora muito a sério e Doris, horrorizada, sentindo uma espécie de sinal de perigo, recusou.
— És muito inocente, pequena. Estás convencida de que voltarás algum dia a tua casa? É preferível que te desiludas e estejas avisada. Carl não pensa em deixar-te ir embora.
— Mas ele... exigiu um resgate.
Novo sorriso da índia.
— Ficarás com o dinheiro e contigo.
Doris revoltou-se, quase furiosa.
— Convenci-me de que eras boa rapariga e afinal estás a enganar-me. Não sei porquê, mas sei que mentes.
A jovem pele-vermelha aproximou-se e poisou as mãos nos ombros da outra e fixou os seus olhos profundos nos olhos de Doris.
— Ontem à noite, enquanto jantavam, foste disputada. Godfrey, o homem mais repugnante da quadrilha, reclamou-te para ele próprio. E sabes o que respondeu Cari? — Que era sua opinião que James tinha preferência sobre ti e que, se ele não estivesse interessado, então... Estás a ver como as coisas são? Para eles não és mais do que uma mercadoria; uma presa das suas rapinas.
Doris desprendeu-se da índia e correu a esconder-se na cama, tapou a cara com as mãos e começou a soluçar.
— Não é possível! Deus não pode consentir que me espere um tal destino. Será verdade que existam seres tão hediondos à superfície da terra?
Aos seus ouvidos chegou a voz pausada e convincente de «Bela Estrela».
— Tu própria viste a maneira como foram assassinados os teus companheiros de viagem. Julga, por ti, a que extremos são capazes de chegar.
Quando cessou de chorar, certamente porque as lágrimas lhe secaram, olhou para trás de si: a índia já ali não estava. Sentou-se na cama e viu brilhar sobre a pele que a cobria, o punhal que a outra lhe tinha oferecido. Apoderou-se dele, examinando com os olhos enxutos a ponta da arma que apontou a si própria.
Teria chegado a hora de servir-se dele? Valeria a pena esperar? Apesar de tudo... Aquela selvagem meio civilizada podia tê-la enganado: via-se que estava apaixonada por aquele assassino e, talvez por isso, a induzira ao suicídio para afastar, de vez, uma rival dos seus amores.
Esperaria e se o momento que a índia lhe anunciou acabasse por chegar, não hesitaria um segundo em pôr em prática o seu propósito. E o seu juvenil e decidido carácter que tão rapidamente sabia sobrepor-se às maiores adversidades, ainda a levou a sorrir vagamente quando foi juntar o punhal ao «colt» de que se apoderara na véspera na cova onde os últimos passageiros tinham sido assassinados. Pensou que estava senhora de um verdadeiro arsenal e, quem sabe se não viria ainda a dar que fazer aos seus sequestradores!...

terça-feira, 26 de setembro de 2017

BUF140. Fizeram-me bandido



(Coleção Búfalo, nº 140)
 
«Fizeram-me bandido» relata a pedaços da vida de James Corydon, parecendo querer desculpar a sua opção por uma existência à margem da lei. Na infância, James foi um desgraçado expulso com o pai de um rancho onde este cumpria as funções de aguadeiro, suportando todos os vexames que o dono Preston lhes infligia, apesar da bondade da filha Doris. Na sua caminhada para outra vida, o pai de James foi assassinado pelo bandido Pierce e James foi acolhido na quadrilha junto a quem cresceu.
Passados vinte anos, o rapaz comportava-se como qualquer outro membro da quadrilha, com a arrogância e violência que tinha aprendido no seu seio. O acaso levou-o a cruzar-se com a filha de Doris a quem raptou e por quem exigiu um resgate, alimentando a ideia de se vingar de Preston. Mas as coisas não correram como pensava devido ao comportamento e ação de mais uma vítima de rapto por parte da quadrilha: a filha de um grande chefe índio.
Não se espere o esboço de uma regeneração na personagem central da novela. James morreu como sempre tinha vivido e nós vamos surpreende-lo, nas nossas passagens, em pleno rapto da filha de Doris.
A capa é assinada pelo grande desenhador Pietro Muriana, retratando um pormenor do rapto.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

PAS789. Um colar feito de balas de prata

Era uma voz de mulher.
Ted pensou: «Moira, ela tem agora de ganhar. Sabe que eu não tenho comigo nem uma bala e tirou a máscara.»
Voltou lentamente o rosto até ao quarto.
Mas não viu Moira.
Deu-se conta de que a voz não vinha dali, mas das escadas. Reconheceu que só o nervosismo e a tensão dramática daquele momento, o tinham induzido em erro.
E voltou o rosto mais uma vez, silenciosamente.
Sibyl estava ali.
Sibyl, que lhe apontava um revólver.
— Que queres? — disse Ted, enquanto ela punha a ponta dos pés no último degrau das escadas que conduziam diretamente àquele ponto do corredor do hotel. — Para que é toda essa comédia?
— Calculo que tudo isto te surpreenda, Ted Curtis —sibilou Sibyl.
— Não é que me surpreenda. É que, simplesmente, não te compreendo. Que tenho eu a ver contigo?
Ela sorriu entre jocosa e cruel.
— Eu — declarou —, sou irmã de Boskam.
— O quê... tu... eras... a irmã desse bandido?
Ted estava aturdido com a surpresa. Se neste momento lhe tivessem metido uma bala no peito, nem teria dado por isso.
— Sim, sua irmã — ciciou tranquilamente Sibyl.
—Acompanhámo-nos durante algum tempo, quando ele ainda não estava enamorado dessa imbecil Moira. Mas ultimamente tivemos uma séria discussão por causa duma partilha de roubo, e ele temeu que eu o atraísse. Por isso enviou aqui Turner, um pistoleiro profissional, para me liquidar. A ti, encarregou-te de eliminar Moira por odiá-la devido ao desprezo dela.
E com um suave sorriso, acrescentou, enquanto levantava o revólver:
— Não penses que o quero agora vingar, Ted Curtis. Não... Boskam era um patife que devia ter morrido há muito. Mas só poderei reabilitar-me perante os do bando e assumir a chefia, se demonstrar que o vinguei. Já sabes... Até os bandidos têm em conta essas coisas. De modo que, querido, dispõe-te a morrer.
Ted tinha os olhos indiferentes e frios. Conseguiu esboçar um sorriso, enquanto dizia:
--Podes disparar. És pérfida e cruel como o teu irmão, mas isso não importa agora. Vamos, dispara... Não tenho nenhuma bala no revólver.
Sibyl sussurrou:
—Agora...
E nesse preciso momento em que ela ia apertar o gatilho, foi quando outra voz de mulher se ouviu:
— Retira essa arma, Sibyl, se queres salvar a tua vida. E se o que queres é luta... defende-te!
Ted Curtis voltou a cabeça, atónito, a tempo de ver Moira junto da porta do quarto. A rapariga não tinha ainda sacado, mas balanceava junto da anca a mão defeituosa. Conscientemente, dava a Sibyl todas as vantagens.
— Moira! —gritou Ted. — Não necessito que me defendas! Tu, não!
Foi-lhe impossível dizer mais.
Sibyl tinha considerado que do seu lado havia só vantagens, decidindo não perder aquela oportunidade. Desviou o revólver e, nesse momento, as ancas de Moira moveram-se, aquelas ancas redondas e harmoniosas que haviam entusiasmado os olhos de tantos homens. O revólver pareceu saltar magicamente e tal como Ted lhe tinha ensinado. Moira segurou-o o melhor que pôde. Duas balas saíram do cano, antes que Sibyl pudesse apertar o gatilho. Ambas foram direitas ao coração de Sibyl, dando-lhe morte rápida. 
Ted amparou-a nos seus braços para evitar que caísse e rolasse escadas abaixo. Foi então, ao tê-la assim, quase sob o seu corpo, que viu o que havia sob o fechado decote de Sibyl. Um colar. Um pequeno e estranho colar feito com balas de prata.
Nos olhos de Ted Curtis, o homem que nunca chorara, brilharam duas lágrimas.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

PAS788. Uma bala inesperada

A bala veio da porta, que se havia entreaberto silenciosamente sem que nenhum dos dois desse por isso. A bala disparada duma posição tanto forçada, foi disparada contra Moira, e arrancou alguns cabelos da cabeça desta. A rapariga teve um desmaio e caiu de joelhos ao chão, mas Ted e ela souberam imediatamente que o tiro não fora mortal.
O homem saltou de costas enquanto o revólver vomitava outra vez fogo, passando agora a bala inutilmente pelo centro do quarto. Ted não pôde saber quem tinha disparado, embora tivesse chegado a ver uma mão masculina empunhando um revólver.
Saltou até à porta com a arma em riste e chegou a abri-la.
A bala deixara-o quase cego.
Alguém tinha disparado à queima-roupa e o projétil passou junto dos olhos de Ted, tão perto que quase lhe queimou a ponta das pestanas. O rapaz atirou instintivamente, encolhendo-se e isso salvou-lhe a vida porque, ao menos, obrigou o inimigo a ocultar-se precipitadamente.
Seguindo a sua técnica de pistoleiro, segundo a qual nunca se deve perder o contacto com o inimigo para que este não se possa esconder, saltou para o meio do corredor, a descoberto, enquanto a sua arma ia vomitando fogo. O inimigo ia fazendo o mesmo e durante uns segundos as balas sibilaram naquele ponto do hotel, convertendo-o num inferno. Mas o desespero com que atiravam, concorreu para que nenhum dos dois pistoleiros se atingisse.
Por fim, o que atacara de surpresa, fugiu.
Pegando-se à parede, retrocedeu agilmente, fazendo sempre fogo. Ted viu-o num relance quando no seu percutor existia uma única bala. Era Boskam! Precisamente esse sinistro pistoleiro, Boskam!
— Quieto! — ordenou. — Quieto, Boskam!
O pistoleiro girou com a velocidade dum réptil para saltar para o outro lado do corredor e assim desbaratar toda a posição de tiro do antagonista. A sua técnica e agilidade eram diabólicas. Devia estar contando que o inimigo só teria agora uma a duas balas.
Quado o viu passar voando na sua frente, Ted Curtis apertou o gatilho.
Uma bala...
O projétil penetrou o peito de Boskam, fazendo-o largar um gemido.
Caiu pesadamente por terra, largando a arma e deixando sair da boca um fio de sangue.
Ted correu para ele e deu com o olhar do ferido, um olhar feroz, angustioso, de agonia.
—Por que disparaste, Boskam? — perguntou Ted. — Para que tentaste matá-la tu, se me encarregaste desse trabalho?
—Porque tu nunca te decidirias... imbecil. E porque... mesmo que a tivesses matado... virias depois buscar-me.., a mim.
O fluxo de sangue tornou-se mais intenso.
— Foi realmente ela quem te acompanhou, Boskam? — sussurrou Ted. — E quem era o que tinha de me dar o dinheiro?
Boskam ainda ergueu o rosto. Por um segundo o seu olhar animou-se, tornou-se fulgurante, metálico, sinistro, tal como quando ainda não lhe tinha sido cravada a bala no peito. Ia para falar, mas nesse momento foi acometido dum acesso de tosse. O afluxo de sangue avolumou-se e Ted viu logo que nunca mais poderia pronunciar uma palavra sequer. De facto, segundos depois, Boskam, o foragido, deixou cair a cabeça e fechou os olhos para sempre.
— Morreu... — pensou Ted. — Morreu sem falar... — disse.
—E para que precisavas que falasse? —disse então uma voz suave. — Para que precisavas tu de saber se vais morrer também?

terça-feira, 19 de setembro de 2017

PAS787. A mais bela sepultura de Tombstone

Com as feições alteradas, sem dar crédito ao que via, a rapariga observou a queda de Turner. O pistoleiro tinha dois orifícios na fronte e nem sequer lograra disparar. Moira contemplou assombrada o seu próprio revólver que não pôde segurar com a devida firmeza e do qual nem sequer saíra uma bala.
Turner caiu da entrada onde estava para o pó do chão, que se tingiu de sangue do pistoleiro.
Moira, atónita, guardou o revólver no coldre, sem saber bem o que fazia.
Ted salvara-a! Ted Curtis tinha velado por ela! Portanto era certo o que pensava ter visto nos seus olhos! Era certo que a amava!
A ponto de lançar um grito de alegria, sentindo que voltava a nascer, girou sobre o chão da porta.
Então, viu Sibyl.
Sibyl, com o revólver ainda fumegante, olhava-a brejeiramente.
— Obrigada — disse Sibyl.
 — Obrigada? Por... porquê?
— Turner ia matar-me.
—A... ti?
—Tinham-no contratado para isso e eu tentei encontrar um pistoleiro que me defendesse, mas esse imbecil do Ted Curtis não quis entrar em combinação comigo. Esta noite Turner ia realizar o seu trabalho. Mas saímos quase ao mesmo tempo para a rua, pelo que, ele distraiu-se olhando para as duas. Ao ver que tu também «sacavas», teve um momento de hesitação, o que lhe custou a vida. Morreu, sem dúvida, sem compreender muito bem o que se passava. Por isso te disse «obrigada».
Moira mal a escutava.
Estava mortalmente pálida, sentindo que o sangue se negava a subir ao seu rosto.
Turner não estava incumbido de a matar.
Então quem seria que a tinha de matar? Em nome do céu! Quem?
Desconjuntada, sentindo sacudidelas nervosas à flor da pele, regressou ao seu quarto.
Ali, esperaria Ted, cumprindo o desejo deste. Esperaria...
Entrou no quarto.
De repente, mal tinha fechado a porta, ficou paralisada, atónita, porque Ted Curtis estava ali. E apontava-lhe um revólver.
— Surpreendida?
Moira sentia que qualquer coisa se rompia na sua alma, que qualquer coisa mais formosa e forte que a própria vida, caía em pedaços a seus pés.
— Tu?... — balbuciou.
—Não acabaste de compreender, pois não, Moira?
Ela contemplava aqueles olhos pouco humanos, O revólver que lhe apontava ao centro da cabeça.
—Ted...
—Não é preciso chamares-me com essa voz — disse ele friamente. — Mandaram-me matar-te e matar-te-ei. Ou melhor, pelo menos tentarei fazê-lo.
—Ted... não entendo...
— Quando aceitei o cargo de verdugo de Tombstone, soube que Boskam procurava um pistoleiro para matar uma mulher que vivia aqui. Soube que mulher era e ofereci-me. Boskam deu-me cem dólares por conta, dizendo-me que o resto me seria entregue por uma pessoa que vivia na cidade, a qual se poria em contacto comigo. A noite passada tinha que dar-me o restante do preço… mas não compareceu. No lugar do encontro deparei com um papel que dizia que nos veríamos esta noite, depois de te liquidar.
Ela estava de boca aberta. A sua respiração, embora nem desse por tal, era ruidosa.
—Ted... continuo a não perceber… Vais fazer isso... por dinheiro?
— Por dinheiro, não. Todo o que vier será gasto na mais bela sepultura de Tombstone.
— Então...
—Mas ainda o perguntas? — disse ele, lentamente, deixando as palavras saírem uma a uma.— Perguntas isso depois de teres cavalgado ao lado de Boskam? Quem, senão tu, pode ter sido a mulher que dirigia o grupo quando o meu rancho foi assaltado? Quem, senão tu? — e a sua voz era rouca, sibilante.— Perguntaste-me, quando te beijei, o que era que tinha na minha algibeira e te magoara. Pois era isto! Olha!
Puxou, por um cordão que tinha ao pescoço e do qual pendia, como se fosse uma medalha, um objeto alongado.
— Que é isto? — rugiu, pondo aquilo junto dos olhos de Moira. —O que é? Diz!
Moira arquejou.
—Uma bala de prata...
—Esta bala tirei-a eu do peito de minha mulher quando ela já estava morta. Boskam tinha mandado fundir umas tantas balas destas no México e só eram usadas por ele e pelos seus sicários de maior confiança. O meu pequeno rancho, aquela humilde casa onde, não obstante, residia toda a minha felicidade, foi assaltada por alguns homens do Boskam... e por uma mulher! Quem, senão tu, Moira? Em nome do céu! Quem?
Procurava manter-se sereno, mas os seus olhos brilhavam. Moira viu que a mão que mantinha o revólver, lhe tremia.
Entreabriu os lábios, enquanto lhe suplicava com olhos meio suplicantes meio serenos.
E então Moira fez aquela pergunta inverosímil.
— Depois da morte de tua esposa não voltaste a amar nenhuma outra mulher, não é verdade?
— Por que perguntas isso?
— Por nada... Supus que serias capaz de voltar a amar.
Ted Curtis passou a língua pelos lábios ressequidos.
—No caso de ter amado alguém, seria a ti, Moira. Entre todas as mulheres do mundo, incluindo a falecida, és a mais bela e excitante que tenho conhecido, a mais estranha e enlouquecedora. Mas o meu coração está seco para ti, Moira, porque não passas duma assassina.
—Então para que me ensinaste a disparar? Para que adestraste de novo a minha mão direita?.
A voz de Ted Curtis era um rouco estertor, quando disse:
— Não sou um assassino, Moira. Repugna-me matar uma mulher que não seja capaz de defender-se. Por isso tratei de te tornar uma nova «Miss Morte», na mulher temida que sempre foste, naquela que abateu tantos homens. E agora, digo-te: defende-te! Agora, embora não tenhas a antiga rapidez, tornas a ser alguém perante a qual ninguém se pode descuidar nem uma fração de segundo, especialmente a tiro a curta distância onde não é quase necessária pontaria. Ninguém te dará tantas possibilidades para defenderes a tua pele, Moira, e quero que a defendas. Acaba os teus dias como «Miss Morte». Saca!
Ela não se moveu.
—Terás de matar-me assim, Ted.
— Defende a tua vida! Sabes que podes fazê-lo! Sabes que neste duelo não temos a vitória segura; nem tu, nem eu!
—Terás de matar-me assim, Ted. Se realmente crês que sou quem assassinou uma mulher e uma criança inocentes, não deves vacilar. Dispara a esta distância e atravessa-me os olhos.
A voz de Moira era clara, tranquila, serena. Nem sequer os olhos lhe pestanejavam. Ted engoliu saliva e a sua garganta produziu como que um estalido.
Moveu a mão direita lentamente e sacou revólver.
Olhava para Moira e pensava já no seu cadáver. Aquele cadáver que em breve veria a seus pés, sangrante, com os olhos varados pelas balas.
Os seus olhos...
Ted teve um estremecimento. Os olhos de Moira, que nunca mais tornariam a ver, que já não teriam vida...
—Não posso disparar assim — sussurrou. — Nunca o fiz. E eu ensinei-te a defenderes-te, Moira. Fá-lo! Defende-te!
—Não, Ted. Dispara.
E naquele preciso momento, alguém fez fogo.

Alguém, mas não Ted.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

PAS786. A mulher que sabia que ia morrer

As primeiras sombras da noite tinham caído sobre a cidade.
Da planície, chegava um vento fresco, agradável. As ruas de Tombstone — coisa extraordinária —silenciosas. Só de vez em quando se ouvia o som de alguma harmónica.
A cidade parecia aguardar alguma coisa.
Moira, a antiga «Miss Morte», cingiu lentamente o cinturão, enfiou o revólver no coldre e aproximou-se da janela. Via-se dali a rua principal de Tombstone, tranquila e vazia, como se se preparasse um funeral.
Ela voltou ao meio do quarto.
Colocou num lenço o que tinha: a medalha que tirara do cadáver de sua mãe, uma estampa que lhe ofereceram quando era criança e trinta dólares: todo o seu dinheiro. Atou o lenço feito num saco e, em cima escreveu num papel: «Para ser tudo entregue a uma mulher pobre desta cidade, que acabe de ter uma criança.»
Depois viu-se ao espelho e na frente deste, fez duas vezes o gesto de sacar o revólver. Em ambas as vezes conseguiu que a arma não se lhe escapasse dos dedos, mas demorou demais a pô-lo em linha de tiro. Não precisava de ser muito esperta para saber que ia morrer.
E o que mais lhe doía era ter que morrer com aquela roupa masculina. Mas era a única que resultava prática para lutar com um revólver. As roupagens femininas estorvá-la-iam no momento de «sacar».
Deu uma vista de olhos pelo modesto quarto do hotel onde vivera naqueles últimos tempos.
Era o final.
«Também, no fim de contas, já não tinha dinheiro para pagar o hotel» — disse para si própria, encolhendo os ombros.
Mas era inútil.
Doía-lhe aquela despedida cruel, aquela queda alucinante na eternidade.
Desceu pouco a pouco ao piso inferior e inteirou-se de que não ficava devendo nenhuma conta mais. Depois, foi para a rua.
Ouvia-se música de harmónicas. Que estranho era ouvir-se música nas ruas ensanguentadas de Tombstone! Que estranha se tornava aquela calma que envolvia tudo, que parecia pressagiar a sua própria morte!
Pensou em Ted Curtis.
Ted tinha-a aconselhado a não sair do quarto, mas ela sabia ser inútil. Melhor seria morrer na rua cara a cara com o inimigo, tal como ela sempre luta. E neste angustioso momento, Moira perguntou a si própria se Ted Curtis lhe fecharia os olhos.
Ninguém fizera tanto por ela. Ninguém... desde que seus pais tinham morrido.
Viu então Turner.
Este, passava no passeio oposto da rua, pisando forte sobre o tabuado da estrada.
Acabava de sair de um dos saloons onde, sem dúvida, estava espiando. Trazia um revólver bem visível, com o fraque puxado para trás e caminhava lentamente, ao mesmo ritmo dos passos da rapariga. Olhava para ela. Moira calculou que dum lado ao outro da rua, devia haver uns trinta passos.
Bom, a hora havia chegado.
Nem Turner nem ela podiam falar.
A vida pertenceria ao mais rápido.
Moira respirou fortemente, com ansiedade, tentando recordar a época, tão próxima ainda, em que ela era «Miss Morte». Um homem como Turner, não a venceria nessa altura, mas agora tudo era diferente. Agora Turner derribá-la-ia para sempre ao primeiro balázio.
Ela parou.
Turner parou também.
Trinta passos.
Moira conteve a respiração com o coração quase a estalar-lhe dentro do peito, enquanto acariciava lentamente a coronha do revólver. Turner fez o mesmo.
Era o fim.
A rapariga recordou as suas orações e pensou que, ao fim e ao cabo, morrer não era assim tão terrível.
Encolheu o braço para «sacar».
Turner fez o mesmo e naquele momento soaram dois disparos.

domingo, 17 de setembro de 2017

CLF096. "Miss" Morte

(Coleção Califórnia, nº 96)
 
 
 
A morte...
Sempre a morte...
A morte é palavra persistente nas novelas do Oeste.
Nesta aparece para identificar uma jovem que tinha extraordinária habilidade e rapidez para as armas e, à conta disso, fez muitos foragidos beijar o chão e partir deste mundo.
Mas as coisas não lhe correram bem. Apanhada por um facínora, este, a sangue frio, rasgou-lhe a mão com um punhal e entreteve-se a partir-lhe os ossos da mão direita um por um com a coronha do revólver.
Mais uma vez, Silver Kane mostra-nos a vida cruel do Oeste. E as coisas não ficaram pelo que se descreveu. Depois de relativamente recuperada e com a vida refeita, após uma fuga com êxito, a jovem recebeu uma carta com a ameaça de que a sua Morte estava a ser preparada e que o seu agente em breve chegaria à cidade. Mas a finalização foi surpreendente pois, além do facínora, mais alguém ali chegou.
A capa, não assinada, mostra um dos momentos do desfecho final, com a jovem, recuperada, a fazer frente aos facínoras que a perseguiam.

As passagens que apresentamos respeitam àquele momento em que tudo parece que se complica para esta mulher e afinal traz a necessária definição para pôr uma pedra no passado.