segunda-feira, 21 de agosto de 2023

ARZ161.12 O salmo da Esperança trouxe o salvador e futuro guia

Algumas mulheres gritaram. Vários homens correram junto do seu chefe, o «Patriarca».

Deborah, que avivava uma fogueira, apressou-se a reunir as crianças que procuravam lenha entre a neve.

Os infelizes «quáqueres», que tinham perdido tudo, sem armas e quase sem roupas, tremendo de frio, contemplaram com assombro e temor as várias centenas de índios que os rodeavam.

— São os «arapahos»! Trazem penas de guerra nas suas lanças! — gritou um homem.

O «Patriarca» ordenou:

— Cala-te! Não é necessário assustar mais as mulheres.

— São muitos, e nós não temos armas nem quem nos defenda.

— Não blasfemes! Sempre tivemos defensor. Se está disposto que paguemos pela má ação dos nossos companheiros, é justo! Mas não há necessidade de assustar as mulheres. Vou falar com o chefe deles.

O «Patriarca» separou-se do grupo, avançando uns passos para Moose John, cuja qualidade de chefe se evidenciava pela sua corte de guerreiros. Mas o avanço do «Patriarca» foi cortado por uma lança, que silvou furiosamente e foi cravar-se ante os seus pés. Moose John disse então:

— Não continues, homem branco. Assassinaram vários dos meus homens, roubaram o que era nosso, trouxeram a guerra ao Lemhi, pagando mal a nossa generosidade. O meu conselho decretou a vossa morte. É inútil falar. Já está tudo dito.

O «Patriarca» inclinou a cabeça, regressando ao grupo. Deborah segurou-lhe um braço.

—Diga-lhe que não fomos nós quem os atacou!

— Achas que não? Esses quinze homens eram dos nossos. Ele tem razão... trouxemos a guerra connosco... Foram «quáqueres» os que assassinaram e roubaram. Fomos nós, filha. É necessário aceitá-lo — ergueu a voz, gritando: — Cantem comigo, irmãos! Cantemos o nosso Salmo à Esperança!

Começou a cantar com voz grave, segura, sem o menor tremor. Pouco a pouco, todos se uniram ao seu canto, até as crianças. Cantavam com força, quase com alegria.

Moose John crispou as mãos. Um dos guerreiros disse-lhe:

— Os homens esperam a tua ordem, chefe.

— A minha ordem! Há mulheres e crianças entre eles...

— Disseram que vinham cultivar a terra e mataram o teu filho e outros bravos para roubar a areia dourada! São mentirosos e falsos, como todos os homens brancos!

— São fracos, como todos os homens, seja qual a sua cor. Mas deve fazer-se justiça... Eles o quiseram, não eu.

Ergueu a lança, mantendo-a quieta durante alguns instantes. Os guerreiros esticaram os seus arcos. Centenas de arcos, com centenas de setas, apontadas ao grupo que cantava com renovada força. Centenas de setas mortais para três dezenas de pessoas que tinham ido para o Lemhi Range na esperança de ali encontrarem uma terra de promissão e que só iam encontrar terra para as suas próprias tumbas,

A lança com o penacho de penas de corvo iniciou o seu movimento. Moose John ia lançar o grito de ataque. Mas nesse mesmo instante soaram dois tiros, que tiveram a virtude de silenciar os «quáqueres» e de deter o movimento da lança do chefe «arapaho».

Pouco depois os tiros repetiram-se. Moose John e os seus guerreiros voltaram-se. E viram um quadro assombroso. Um homem quase coberto de gelo aproximava-se deles, montando um cavalo índio. Atrás dele seguiam outros oito cavalos, arrastando a sua carga. Sacos de couro, e sobre eles quinze cadáveres.

Moose John baixou a lança e com aquele movimento os arcos afrouxaram-se e as setas deixaram de apontar aos «quáqueres».

Roscher «Montana» guardou os seus revólveres. Tinha disparado para o ar ao ver a lança de Moose John, mas não queria que os índios o vissem armado, pelo que guardou as armas e ergueu uma mão num gesto de saudação.

Moose John disse aos seus:

—Deixai que esse homem se aproxime. Traz os cavalos dos nossos homens, e também o ouro. E também cadáveres de homens brancos.

«Montana» deteve-se diante do chefe e falou:

— Moose John, estiveste quase a cometer uma grande injustiça, e sei que tu és um homem justo. A gente que aí está é inocente da morte do teu filho e dos seus companheiros. Os culpados estão aqui, com o vosso ouro e o vossos cavalos. Esses são os assassinos. São os únicos dos colonos que tinham armas de fogo. Quinze traidores quinze loucos, que abandonaram os seus, sem se importarem com a vossa vingança, porque o ouro os enlouqueceu.

Moose John conduziu o seu cavalo para junto dos de carga. Sem desmontar, examinou os corpos. Fez um gesto e um dos seus homens comprovou o conteúdo dos sacos

— Quem os matou?

— Eu. Teria gostado de os trazer vivos, para os entregar à tua justiça, mas não foi possível. Teriam fugido depois de matar-me. Tive de defender-me.

Moose e os seus guerreiros olharam para «Montana» com surpresa. Moose disse:

— És um grande guerreiro... Quinze homens mortos tu sem uma ferida. Mas estes homens vestem como os outros, são do mesmo povo. Do povo que vinha para Lemhi cultivar a terra, viver pacificamente.

— Sim. São «quáqueres». Num grupo de meia centena, quinze resultaram maus, chefe. Mas tu és um homem sábio, tu conheces os homens. Acaso entre os «arapahos: não há também desleais, malvados, traidores, que enganam os outros? Eu sei que nas montanhas mais alta vivem «arapahos» separados das tribos pela sua má conduta, guerreiros que pensaram só no seu benefício e não no de todos. Estes quinze homens mataram, e pagaram o seu crime. Tu, que és um homem justo, não podes castigar todos os outros, os pacíficos que querem estabelecer o seu lar no Lemhi.

Moose John ficou silencioso. Um dos seus homens disse com raiva:

— Mataram o teu filho! Todos devem morrer! Também esse homem que fala, chefe! Já não poderemos acreditar nos brancos! O Lemhi Range é nosso. Fomos generosos e eles trouxeram a morte ao nosso povo.

—Não escutes esse homem, chefe! É a voz do ódio! Tu sabes que o chefe de Buttle enviará muitos soldados! Morrerão as vossas mulheres e os vossos filhos! Quinze homens assassinaram! Só eles são culpados, e estão aqui!

— Ninguém devolverá a vida ao teu filho! — gritou o guerreiro.

Moose John baixou a cabeça. No seu interior travava-se uma luta entre o desejo de vingança e a bondade.

— Também não será matando essa pacífica gente que devolverás a vida ao valente Moose Red! Diz aos teus homens que os revistem! Não encontrarão uma só arma entre eles! Vieram em paz, não para trazer violência! — disse «Montana» persuasivo.

Moose John ergueu a cabeça, respondendo:

— Mas trouxeram a morte, amigo, trouxeram os assassinos.

Os guerreiros gritaram de alegria, começando a voltar os cavalos. «Montana» empalideceu, ao mesmo tempo que gritava:

— Não, chefe, isso não é digno de ti, não cometas essa crueldade! Há mulheres e...

Moose John ergueu uma mão e os seus homens deixaram de gritar.

— Não vamos matá-los. Os culpados foram castigados, é evidente, Mas o pacto não foi cumprido pelos colonos. Os nossos mortos foram vingados. Mas o nosso pacto com o forte Buttle foi quebrado, ainda antes de iniciar-se. Não queremos conviver com eles, não há pacto. O Lemhi pertence-nos e a experiência de compartilhá-lo com os brancos foi um fracasso. Que partam. Se ainda estiverem no Lehmi ao fim de cinco dias, então mataremos.

Roscher não disse nada. Não podia. Moose John era, evidentemente, generoso. O chefe «arapaho» afastou-se com os seus guerreiros. Os outros foram-se agrupando novamente, deixando a beira da depressão. Depois colocaram-se em grandes filas, formando um impressionante esquadrão, com o seu chefe à frente. E empreenderam o regresso à montanha, no mesmo momento em que a ventania voltava com força.

Levavam os cavalos com os sacos de ouro, deixando na neve os cadáveres dos seus inimigos. Na depressão, os «quáqueres» cantavam de novo, desta vez um hino de graças; e agora as suas vozes tremiam.

— Eles foram os únicos «quáqueres» que encontraram a sua terra no Lemhi Range — disse o «Patriarca». -- Terminamos, Roscher. Podemos iniciar a viagem quando quiser.

— Quanto antes. Cinco dias não é demasiado tempo para chegar à passagem Saddle com este temporal. E o Moose John cumprirá a sua ameaça. Atacará se permanecermos aqui mais de cinco dias.

Os «quáqueres» tinham sido enterrados sob a neve as suas tumbas estavam cobertas com pequenos montículos de pedras e toscas cruzes, O «Patriarca», que tinha perdido definitivamente a sua dureza e a confiança em si mesmo afastou-se delas. «Montana» conservava o seu cavalo, o único para toda o grupo. Decidiu que o utilizariam as mulheres e as crianças, por turnos. Disse-o a Deborah, que sorriu.

— Começarão as crianças. Podem ir várias juntas.

Escoltando o cavalo carregado de crianças envoltas em mantas, Roscher e Deborah precediam o grupo, caminhando sobre a neve. A escuridão era muito intensa. Ninguém incomodava já os dois jovens por caminharem juntos, por se falarem, por darem as mãos de vez em quando.

— É uma pena. O Lemhi na Primavera deve ser maravilhoso... Teria gostado tanto de construir a nossa casa junto do rio... — dizia Deborah.

—A casa para os teus pais e para ti, não é verdade? — perguntou Roscher.

Ela assentiu.

— Sim, é isso. Que outra coisa posso pensar?

Roscher voltou a cabeça. Os «quáqueres» avançavam penosamente atrás deles.

— São terras muito ricas. Nunca foram exploradas. Teria sido uma glória cultivar nela trigo e aveia para o gado, ter bons cavalos... Também eu gostaria de erguer essa casa, Deborah. Mas conheço em Butte bons terrenos que poderiam comprar-se, e tenho algum dinheiro no Banco. Estou pensando que talvez os teus pais me aceitassem... como sócio...

Deborah negou.

— Nunca aceitariam o teu dinheiro. Os «quáqueres» não se associam a pessoas de outras comunidades.

— Também não permitem que as suas filhas se casem com estranhos?

Deborah corou.

— Também não. Mas há ocasiões... Conheço um caso em que os pais de uma rapariga aceitaram um estranho na família. A. comunidade deve-lhe muito. Até o chefe deu o seu acordo. Quero dizer... dá-lo-ia, no caso de estranho lhe pedir.

«Montana» segurou-lhe uma mão.

— Pedir-lho-ei, Deborah... Faremos uma grande casa. Os teus pais viverão connosco. Trabalharemos duramente para fazer prosperar a nossa propriedade. E esqueceremos estes dias no Lemhi, esta retirada pela neve...

Deborah sorria, feliz. O grupo continuava o seu avanço. Sabiam que os «arapahos» os vigiavam. Agora deixavam-se ver de vez em quando, ameaçadoramente.

Quando a noite tornou praticamente impossível a marcha, prepararam um alto. Era necessário descansar, comer as poucas provisões que lhes restavam, aquecerem-se.

 Acenderam uma fogueira, mas a busca de um pouco de lenha seca deixou-os esgotados, Os homens deitaram-se sobre as mantas, insensíveis ao frio e à neve que continuava a cair.

Roscher «Montana» foi dos últimos a deitar-se. Deborah e os pais estavam perto. Roscher sentia-se feliz no meio daquele grande fracasso. Havia algum tempo que estava cansado da sua vida selvagem, das suas contínuas correrias; agora ia iniciar-se para ele uma nova vida. <Quando os pais da Deborah se separarem da sua gente e da influência do seu chefe, será mais fácil conviver com eles. Seja como for, são os pais da Deborah, e os pais de uma pequena como ela têm o direito de ser um pouco difíceis».

Bem envolto na manta, adormeceu. O seu sono era o de um homem acostumado à intempérie. Na realidade, nunca estava completamente adormecido, havia sempre nele algo de alerta. Por isso despertou bruscamente, quando a seu lado estalou a neve.

O instinto manteve-o imóvel. Só abriu os olhos. A seu lado havia uma sombra. Não teve tempo de ver mais, pois escutou uma respiração que se tornava mais intensa, um ruído de roupas.

Rodou para um lado, com força. Um grito abafado, depois uns passos que se afastavam, a correr, e a escuridão tragou o atacante. Porque tinha sido um ataque. «Montana» levantou-se. Cravada na sua manta estava uma faca de esfolar, uma arma de folha larga, com o punho muito gasto. Uma arma que estivera quase a cravar-se-lhe no coração.

Pegou na faca, examinando-a. Depois de levantar a manta, cobrindo-se com ela, seguiu as pegadas deixadas na neve. Mas, tal como esperava, perdeu-as pouco depois; sobre a neve endurecida, e de noite, era impossível segui-las.

Regressou ao acampamento. Todos pareciam dormir. Mas Roscher já não conseguiu dormir durante o resto da noite.

 

 

 

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