domingo, 13 de agosto de 2023

ARZ161.04 O romance nasce na caravana que segue para território índio

A jovem ia retirar a tábua que cobria o poço, quando um homem se aproximou dela, tirando o chapéu e dizendo amavelmente:

— Não tire água desse poço, menina. Está estragada, atiraram um animal morto lá para dentro.

A jovem «quáquer» pareceu atrapalhar-se. Era muito bela. A touca emoldurava-lhe o rosto, destacando a perfeição das suas feições. Umas madeixas douradas assomavam ousadamente.

— Oh, então... — murmurou.

O homem apontou para as barracas das cavalariças.

— Há outro poço atrás dessas barracas. A água de lá é boa.

A jovem agradeceu a indicação com um sorriso e dirigiu-se para as barracas, com a celha sobre a anca. Ao dar a volta às barracas deteve-se, pois não via poço algum. Só um espaço vazio, abandonado, com o solo coberto de mato entre as traseiras das barracas e a paliçada exterior do forte.

Ia voltar-se quando o homem que lhe dera a indicação surgiu atrás dela, sorrindo sujamente. E outro surgiu do outro lado, entre as duas das barracas. Também sorria.

— Não se assuste, boneca. Depois poderá ir buscar água. O poço é bom. Mas primeiro queremos comprovar se vocês, os «quáqueres», são tão bons e doces como dizem. Se é verdade isso de não se defenderem quando os atacam. E nós não queremos fazer-lhe mal, boneca, só ver até onde chega a sua doçura e a sua resignação...

A jovem tinha retrocedido, até que bateu com as costas na paliçada. A celha caiu-lhe ao solo. Olhava para os dois homens com espanto. Viu-os aproximarem-se, sempre sorrindo.

Quatro sujas e ávidas mãos agarraram-na pela roupa, como garras. Um dos homens recomendou:

— Não grites, pequena. Poderiam vir os teus companheiros e alguém ficaria magoado. Vocês não querem que ninguém se magoe, não éverdade?

Ela não gritava. Tinha fechado os olhos. Ia desmaiar. Quando as quatro mãos se dispunham a agarrar a roupa, aproximaram-se passos apressados. Um dos homens voltou a cabeça, dizendo apressadamente:

— Cuidado!

Ao mesmo tempo largava a jovem e levava as duas mãos aos revólveres. Empunhou-os velozmente, mostrando grande prática. E disparou-os com igual rapidez, enquanto o seu companheiro recorria também às armas.

O homem que chegava a correr deteve-se bruscamente, e como o que disparara contara com o seu movimento, apontando um pouco mais para a frente, as balas foram cravar-se na parede das cavalariças.

Enquanto se detinha, o recém-chegado movia a mão direita e disparava um revólver de calibre médio. Uma só vez, e o projétil não se cravou na madeira, mas sim no coração de um dos homens que atacara a jovem.

O outro disparava também, mas o seu inimigo fez outro movimento surpreendente, deixando-se cair e disparando novamente antes de ficar de joelhos.

A jovem «quáquer» viu tombar o segundo dos seus atacantes. Então lançou um grito de espanto. O homem que a tinha defendido levantou-se. Era jovem, magro, vestia-se como um caçador do Norte e cobria-se com um gorro de peles. Tinha um rosto quase infantil, ainda que a dureza da sua expressão não fosse exatamente infantil.

— Menina, acalme-se... jápassou tudo. Vi como esses dois homens a seguiam e supus que...

Em torno deles começou a juntar-se gente. Vários soldados, um oficial e um grupo de «quáqueres», cujo acampamento estava próximo. Um deles era o «Patriarca», que se apressou a aproximar-se da rapariga e segurá-la protectoramente por um braço. Depois olhou para os dois homens estendidos no solo.

— Violência, morte, sangue! Só o homem é inimigo do homem!

—Esses dois indivíduos atacaram a menina... Tive de disparar, eles fizeram-no primeiro.

—Foi assim, Deborah?

A jovem assentiu. Não tinha forças para falar. O coronel Morgan chegava nesse momento; um simples olhar contou-lhe o que acontecera. Um oficial disse:

— Esses dois tipos... Ambos dispararam. Parece que o Roscher teve de defender-se. Tinham trazido essa jovem para aqui, para a ofenderem...

— Bom. Terá de escrever uma informação a este respeito, Roscher. Vocês, por favor, voltem ao acampamento — disse ao «Patriarca».

Os «quáqueres» rodeavam Deborah. O chefe deles disse iradamente:

— Não queremos que ninguém derrame sangue, nem sequer para defender uma das nossas mulheres! Este homem deveria ser castigado!

O coronel Morgan resmungou:

— Suponho que imagina o que esses dois tipos queriam da pequena. O Roscher esteve a pontos de morrer para defendê-la. Não lhe parece que merece o seu agradecimento?

— Não posso agradecer que alguém mate, nem sequer para defender a Deborah! Nós não queremos que nos defendam com o uso das armas! A vida humana é sagrada, ninguém pode dispor dela!

Morgan encolheu os ombros. Roscher, o jovem guia que defendera Deborah, olhava para ela como deslumbrado. Ela, de cabeça baixa, só olhava para ele de vez em quando, corando.

Os «quáqueres» afastaram-se, aparentemente muito irritados. Uma mulher franzina, impecavelmente limpa, atrasou-se um pouco, murmurando a Roscher:

— Sou mãe da Deborah, senhor... Muito obrigada pelo que fez. Por favor, não diga ao «Patriarca» que lhe falei!

A mulher afastou-se a passo vivo e o grupo desapareceu.

O coronel Morgan olhava com desgosto para os cadáveres.

— Disparas muito bem, Roscher.

O jovem sorriu, como desculpando-se. Ensinou-mo a vida no Norte, coronel. E estes homens não eram aprendizes.

— Claro que não. Mas podias ter-lhes atravessado as pernas e não o coração. Quando um civil como tu mata alguém num forte, é preciso enviar milhares de papéis para o Este.

Roscher murmurou:

— Se sou apenas um civil incómodo, abandonarei o forte. Mas alguém terá de tomar conta dessa gente. Com o seu pacifismo estão à mercê de todos os patifes. Estes quiseram ofender a pequena, outros quererão roubá-los.

Morgan respondeu, autoritário:

— Tu não sais daqui. E, quanto aos «quáqueres», esperarei um par de semanas. Se esse imbecil do cartógrafo alto aparecer com o mapa, irão sem ele.

— Alguém terá de guiá-los, coronel — disse Roscher. — A passagem é muito difícil.

Morgan sorriu, compreendendo.

—E esse alguém poderias ser tu, não é verdade? Estás louco, rapaz. Os «quáqueres» não consentem que ninguém que não seja um deles se aproxime das suas mulheres. Se essa pequena te agrada, e compreendo-o, esquece-te dela. Já deve ter escolhido marido entre o seu grupo. O «Patriarca» escolhe-lhe marido e decide quando devem casar. Esquece essa jovem. É o melhor.

Roscher, a quem todos chamavam «Montana» por ser desse Estado, insistiu:

— De todos os modos, deixe-me ir com eles, coronel. Apesar de toda a sua secura, aprumo e segurança neles mesmos, são como crianças. Se no Lemhi Range há dificuldades, como pensa que há devido à falta de notícias da gente que para lá enviou, esse grupo estará indefeso. Bem sabe, quando lhes batem oferecem a outra face...

— Sim — murmurou Morgan. — E o pior é que os outros, quando alguém lhes oferece a outra face, tornam a bater e ainda com mais força. Sem dúvida que era uma bênção para o forte que essa gente se vá embora, e se tu fores com eles ainda melhor. Disparas demasiado bem, Roscher. Graças a isso estás vivo, mas deixaste demasiados cadáveres atrás de ti.

Roscher «Montana» acentuou a sua expressão de inocência. O coronel Morgan bateu-lhe nas costas, acrescentando:

— Reúne tudo o que encontrares a respeito do Lemhi Range. Irás com eles, já que é preciso. Mas espero que o cartógrafo regresse antes de vocês partirem, não gostaria muito de ficar sem ti para sempre, rapaz. Por uma temporada, será um descanso. Mas prefiro que voltes.

— Tem um coração de ouro, coronel — disse Roscher.

O coronel carraspeou, afastando-se dignamente. Ninguém no forte sabia que Roscher era filho do seu melhor amigo. O coronel Morgan detestava os sentimentalismos.

 *

 A caravana avançava penosamente por uma pista que nunca conhecera a roda. Não era possível aproveitar a potência dos cavalos, os veículos sacudiam-se, atascando-se frequentemente.

Os colonos tinham de trabalhar duramente para os libertar. Por vezes tinham de deter-se durante horas, para alargarem o caminho com pás e picaretas.

A viagem da colónia «quáquer» para o Lemhi Range iniciava-se sob maus auspícios. Um carroção partiu um eixo e foi preciso fazer um alto de dois dias para que os ferreiros o arranjassem. Foi durante esse alto que o «Patriarca» se aproximou de Roscher «Montana». Sentou-se junto dele. Roscher enrolava um cigarro e ofereceu a bolsa de tabaco ao chefe dos «quáqueres».

— Nós não precisamos de nos aturdir com fumo para enfrentar as dificuldades da vida, jovem. Quero dizer-lhe algo muito importante. Soube que se ofereceu voluntariamente para nos guiar. Agradeço-lho muito. Mas... só receberá de nós amizade e gratidão, nada mais. As nossas mulheres não se usam como paga de nenhum serviço. E quanto à Deborah... já tem dono.

Roscher atirou ao solo o cigarro que acabava de enrolar.

— Vocês deixam-me louco! Imaginam que todos os que não pertencem à vossa seita são malvados e ruins! Além disso, você não tem o direito de dispor da vida de ninguém, nem sequer da Deborah!

O «Patriarca» levantou-se, sorrindo.

— Já o imaginava. Você pensa ter mais direitos que eu sobre essa inocente rapariga, mas os pais dela decidiram que fosse eu a guiar os seus passos e a planear a sua vida, e já o fiz. Nós obedecemos sempre aos nossos maiores. A Deborah recebeu ordens de não falar consigo, de não olhar sequer para si. E cumpri-las-á. E agora falemos de outra coisa. Quando chegaremos à passagem Saddle?

— Sabê-lo-á quando lá estivermos — respondeu Roscher. — Eu sou o guia e não aceito ordens de um velho déspota.

Roscher deixou de ver Deborah, que viajava sempre dentro de um dos carroções. As outras mulheres caminhavam valentemente atrás dos veículos, e empurravam quando era necessário.

Uma tarde, ao atravessarem um pequeno rio, um dos carroções voltou-se aparatosamente, o toldo de lona rasgou-se e uma mulher foi lançada à água. Roscher, que estava a meio do rio sobre o seu cavalo, apressou-se a desmontar, segurando a mulher quando a água começava a arrastá-la. Era Deborah.

A jovem corou violentamente ao ver-se nos braços dele. Roscher ficou como deslumbrado.

— Deborah... está bem?

Ela não respondeu. Várias mãos arrebataram-na dos braços dele, outras afastaram o jovem, empurrando-o. Vários «quáqueres» olhavam para Roscher com ira, especialmente um deles, forte, de barba negra e espessas sobrancelhas.

— Senhor Roscher, tinha-lhe dito que...! — gritou o «Patriarca».

— Para serem tão pacíficos, têm muito maus modos, senhores. A jovem ia afogar-se.

O homem da barba negra respondeu:

— Não volte a tocar na minha Deborah.

Roscher olhou para o homem que falava. Era então aquele o dono de Deborah, o homem a quem a jovem estava destinada. Afastou-se deles, voltando ao seu cavalo. Deborah tinha sido rodeada por várias mulheres. Mas Roscher, enquanto cavalgava para a cabeça da caravana, só pensava no olhar da jovem.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário