quinta-feira, 17 de agosto de 2023

ARZ161.08 O fanatismo leva a entregar dois jovens aos desígnios da Providência cercados de gelo e lobos

Sem dúvida a Jovem Deborah tinha recebido uma dura educação, Entre os seus não havia excessivos sentimentalismos; aceitavam-se as disposições do destino com o maior estoicismo, Ela aceitou a morte dos pais e de todos os seus companheiros, limitando-se a voltar as costas a «Montana» para rezar. Depois, Roscher viu lágrimas nos olhos da bela «quáquer». Era um choro doce e resignado.

— Eles chegaram já à sua terra prometida — disse.

Roscher tinha decidido tentar o regresso ao Forte Butte. Os «arapahos» deram-lhes cavalos e viveres e escoltaram-nos até às montanhas. Uma vez aí «Montana» disse ao chefe John Moose que poderiam seguir sozinhos. Os «arapahos» despediram-se com poucas palavras, regressando aos seus povoados.

«Montana» e Deborah começaram a internar-se na passagem, onde a neve era muita, Nenhum carroção conseguiria seguir por ali, mas os cavalos índios, com os seus cascos largos e peludos, avançavam com relativa facilidade.

Cavalgaram até ao entardecer. «Montana» procurava um lugar para acampar, e quando o encontrou desmontaram.

— Vou procurar lenha sob a neve, Fique você sob essa rocha, Junto do calor dos cavalos.

Deborah disse:

— Eu... prefiro ir consigo.

Apesar de todo o seu estoicismo, bem provado, era apenas uma jovem que tinha medo da solidão. «Montana» sorriu, compreendendo.

— Bem, procuraremos lenha os dois juntos.

Deixaram os cavalos amarrados. Tinham passado por um bosque baixo. Removendo a neve apareciam arbustos quase secos. «Montana» cortava-os a golpe de faca, amontoando os ramos no solo.

Estavam os dois tão absorvidos no trabalho que não notaram a silenciosa chegada de curiosos. Em determinada altura «Montaria» levantou a cabeça, e a sua surpresa foi enorme. Os «quáqueres» que ele julgava soterrados sob toneladas de neve na encosta estavam ali, turvos, com gelo nas barbas. Iam-se aproximando. Com eles estavam as mulheres e as crianças. Saiam de entre o pequeno bosque. Deborah gritou, alvoroçada:

— Pai! Mãe! Estão vivos! Estão todos vivos, Roscher!

Roscher «Montana» deixou de sorrir, porque os pais de Deborah, que se encontravam no grupo mais próximo, não correspondiam à alegria da filha, porque se deu conta da gravidade daqueles rostos.

O «Patriarca» destacou-se dos outros. Parecia envelhecido; a fadiga tinha-o vencido.

— Por fim encontramos os dois pobres pecadores. Tantas horas de caminhar. Mas era forçoso que os nossos caminhos se cruzassem. Roscher «Montana», você encheu de vergonha o nosso povo. Sempre desconfiámos de si. Perdeu uma pobre criança inocente, fazendo-a esquecer os seus compromissos...

Roscher ficou furioso ao ouvi-lo:

— Não seja tolo e deixe essa linguagem de melodrama! A Deborah e eu fomos feitos prisioneiros pelos índios e o nosso único pecado foi ter-nos deixado surpreender.

O «Patriarca» assentiu, com tristeza.

— E agora fugiam para Este, em vez de voltarem ao nosso acampamento na encosta.

Os «quáqueres» aproximavam-se mais. As mulheres tinham ficado para trás. «Montana» tentava acalmar-se. Aqueles fanáticos Irritavam-no.

— O vosso acampamento não existe! A Deborah e eu julgávamo-los mortos! Uma avalancha arrasou tudo. Perderam tudo, carroções e cavalos. Vocês salvaram-se por terem vindo à nossa procura. Escute, «Patriarca», contar-lhe-ei o que se passou!

— Conte, jovem. Todos têm o direito de se defenderem.

Roscher contou a história de O'Donell, do seu ouro, dos «arapahos» acobardados, da morte de O'Donell e dos dois guias. Os «quáqueres» escutavam-no sem mostrarem demasiado interesse, nem sequer à menção da fabulosa fortuna que os índios tinham levado para a sua montanha.

— O chefe Moose John vai devolver o outro aos arroios. Diz que a eles pertence, que só tirarão o que for preciso para os seus adornos, do mesmo modo que só matam a caça de que precisam para comer. Agora felicitem-se por terem salvo as vossas vidas, ainda que tenham perdido tudo o mais. E tentemos organizar o regresso a Butte, ainda que vá ser muito difícil. Não poderão instalar-se no Lemhi antes da Primavera e será preciso que as autoridades voltem a negociar com os «arapahos».

A mãe de Deborah era a única que de soslaio lançava olhares comovidos à filha. Deborah tinha voltado à sua passividade resignada, olhando para o solo sem dizer nada.

— Nós não regressaremos, jovem -- disse o «Patriarca». — Você diz que salvámos as nossas vidas por sorte. Não é assim, as nossas vidas estão traçadas. Salvámo-las para que pudéssemos cumprir o nosso dever de perseguir esta pecadora e o homem diabólico que a perdeu. Nós continuaremos a nossa viagem...

— Morrerão antes que consigam construir cabanas! O Inverno ainda nem começou!

— Morrerão os mais fracos de entre nós, e os que restarem construirão uma cidade. Nós nunca nos detemos. E a sua história pode ser verdadeira, menos num princípio. Você veio connosco com a intenção de enganar a Deborah. Só por isso, com o desejo de a subtrair à nossa autoridade e ao seu destino.

Roscher «Montana» gritou, furioso:

— Sim, claro que sim! Vim porque a amo, porque queria casar-me com ela! Mas não queria enganá-la, e quanto à vossa autoridade, ninguém tem autoridade sobre a Deborah. É um ser livre e pode decidir da sua vida como lhe parecer!

O «Patriarca» fez um gesto de pena.

— Compreendo. E aceito-o como uma confissão de culpa. Nós não praticamos a violência, você sabe-o. Mas toda a culpa tem um castigo. Vocês serão castigados...

Ergueu uma mão. Roscher tocou no seu revólver. Mas não podia disparar contra aquela gente desarmada, contra aqueles loucos. Quis afastá-los, mas eram demasiados. Não batiam, limitaram-se a imobilizá-lo, agarrando-o com força. Depois de uns instantes de luta, Roscher ficou quieto.

— Como pensa castigar-nos, «Patriarca»? — perguntou, furioso.

— O destino decidi-lo-á. Você e a Deborah ficarão aqui, amarrados a estas árvores, e o destino decidirá...

— Sabe muito bem que o destino nos matará em poucas horas! É a isto que chama não ser violento? Isto é assassínio! Não se atrevam a fazer o mesmo à Deborah! Você foi o culpado de tudo ao enviar uma rapariga sozinha procurar água num território selvagem, você...

«Montana» foi empurrado para uma das árvores e os «quáqueres», que não sabiam usar armas, mas sabiam fazer nós, amarraram-no com tremenda força, imobilizando-o por completo. Amarraram depois as cordas aos ramos baixos, para que Roscher não pudesse deslizar-se para o solo. Tiraram-lhe as armas todas, incluindo a faca. Roscher tinha deixado de gritar insultos; era demasiado orgulhoso para suplicar.

Deborah continuava imóvel. O «Patriarca» indicou-lhe outra árvore e ela foi colocar-se encostada ao tronco. Começaram a amarrá-la, com a mesma violência. Então Rocher gritou à mãe da rapariga:

— Senhora, é sua filha! Não o consinta! Vai morrer e está inocente! Está inocente...

Deborah voltou a cabeça. Tinha os olhos húmidos, mas sorria.

— Não o sou, Roscher... Sou culpada, porque te amo, porque estava disposta a fugir contigo. Devo ser castigada por isso, por faltar às ordens do «Patriarca». Sou culpada...

A mãe de Deborah começou a soluçar. O marido afastou-a dali. Outras mulheres, vestidas de negro com toucas brancas, rodearam-na. O «Patriarca» disse:

— Se não fomos justos para com vocês, a Providência salvá-los-á. Mas julgamos agir com justiça, A nossa consciência está tranquila.

Voltou-lhes costas e todos o seguiram. A comitiva de enlutados «quáqueres» afastou-se sobre a branca neve e desapareceu na escuridão,

Não nevava. Tinha cessado o vento, mas a cada minuto que passava a temperatura ia ficando mais baixa. A imobilidade naquele clima era mortal, Roscher sabia muito bem. Era de Montana, onde os Invernos são muito rigorosos. Tentou libertar-se das cordas, mas em breve compreendeu que era inútil.

O frio entrava-lhe nas roupas, endurecia-lhe as sobrancelhas, esticava-lhe a pele da cara, tornando-a dolorosa. Era apenas uma questão de horas. O seu sangue ir-se-ia tornando cada vez mais espesso e acabariam por morrer.

— Deborah... pequena... devia ter-te defendido a tiro. Não imaginei que fossem capazes de te fazer isto, a que és uma dos seus...

— Meu Deus, virão os lobos!

— Os lobos não se atreverão a atacar-nos enquanto estivermos vivos. Matar-nos-á o frio. É terrível morrer: precisamente agora, quando sei que me amas, que estavas disposta a desafiar esse louco barbudo por mim...

A jovem chorava. «Montana» teve um acesso de raiva e só conseguiu cravar mais as cordas na carne. Compreendeu que a única coisa que podia fazer era distrair Deborah, tentar impedi-la de pensar no que os esperava. Começou a falar. A temperatura continuava a descer.

A madrugada ia ser terrivelmente fria. Uma calma absoluta rodeava-os... Deborah deixou de chorar.

— O frio... sinto-o cá dentro...

Uma hora mais tarde a jovem quase não respondia às palavras de «Montana». Ele disse, com um esforço:

— Agora está a passar o frio, não é verdade? Talvez nos salvemos ainda.

Mas o frio era muito mais intenso. A rapariga começava a perder a sensibilidade. Roscher quase chorava de raiva, de impotência. Fez novos esforços para soltar-se. Não sentia já a mordedura das cordas. Também ele ficava Insensível. De vez em quando chamava a jovem. Ela movia a cabeça, mas não respondia.

Roscher perdeu por completo a noção das coisas. Não soube quanto tempo esteve desmaiado. Já não sentia o frio. Envolvia-o um estado de letargia quase agradável.

— É o fim... Dentro em pouco o coração deter-se-á. Deborah! Pobre criança!

Fechou os olhos. Quando os voltou a abrir, julgou estar sonhando. Havia um pouco de luz, tudo parecia azulado. Com muito esforço conseguiu voltar a cabeça. Deborah estava inconsciente.

— Talvez morta, já!

Quis chamá-la, mas a voz não lhe saia da garganta. Começava a amanhecer, Era o momento de mais baixa temperatura. Roscher voltou a fechar os olhos. Antes de perder a consciência, ouviu um leve ruído. Pensou:

«Lobos!»

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