segunda-feira, 27 de março de 2023

6BL007.10 O último acto


Carbajal estava sumido nas suas reflexões. Pensava em Colorado Silver, isto é, em Gringo Sonora? Porque tentaria dar cabo dele?

Duas perguntas sem respostas... pelo menos de momento.

Soaram uns tiros no exterior. Carbajal não se moveu. Limitou-se a continuar com o olhar fixo num ponto indefinido do "saloon”. Encheu outro copo de tequila. Bebeu-o muito lentamente. Gringo Sonora aproximava-se. Matá-lo-ia como a um cão. Mas, consegui-lo-ia? Limpou algumas gotas de suor que lhe perlavam a testa. A ansiedade fazia-lhe bater o coração descompassadamente. Seria aquilo medo?

O relógio da Junta descarregou uma única badalada. Dez e um quarto.

Carbajal sobressaltou--se. Quase se levantou da cadeira. E, de súbito, rebentou o inferno.

Os batentes abriram-se violentamente, dando entrada a Colorado Silver, uma espingarda de dois canos na mão.

Simultaneamente, a porta das traseiras também se abriu, e Porfírio entrou a disparar o seu rev6lver, como um diabo.

Os bandidos tiveram um momento de hesitação, não sabendo a qual dos dois enfrentar primeiro. Mas não havia tempo para reflexões. Silver, espingarda à altura da anca, fez alguns disparos.

Os dois homens, que estavam ao balcão caíram, mortalmente atingidos. Carbajal terminou o seu movimento, começado inconscientemente. Derrubou a mesa e entrincheirou-se atrás dela, sacando rapidamente o seu enorme "Colt".

Da galeria sobranceira ao salão, um dos pistoleiros abriu fogo sobre Silvei., atravessando-lhe a copa do chapéu com um tiro.

Silver levantou cano da espingarda e voltou a disparar, acabando com a vida de mais um foragido. Depois, deixou cair a espingarda e sacou os seus dois 45, com uma velocidade impossível de seguir com a vista. O da sua mão direita varreu o balcão. Um dos bandidos que bebiam levou as mãos à garganta, deixando cair o copo, num último intento de deter a morte.

Um outro atirou-se ao chão, salvando-se. Os que, sentados numa mesa, jogavam às cartas, levantaram-se bruscamente e as bocas dos revólveres procuraram o corpo de Silver.

Porfírio, avançou pelo outro lado, encarregando-se deles

Os dois amigos encontraram-se a meio do "saloon". Os bandidos que não tinham caído até aí procuraram refúgio atrás das mesas que derrubavam, preparando-se para passar ao ataque.

Silver compreendeu que a momentânea surpresa desaparecera já. Por isso, com um gesto, ordenou a Porfírio que saísse, correndo também ele para a porta, disparando para proteger a retirada.

O tiroteio na pousada atraiu as hostes dispersas pelo povoado. Aproximaram-se a correr, convencidos de que a sua vigilância fora inútil.

Gringo Sonora conseguira chegar ao "saloon". Colorado ouviu-os chegar. E, imediatamente, pensou outro plano de ataque. Correu, seguido por Porfírio, para a corda que pendia da chaminé. Num segundo, estavam, de novo, no telhado, enquanto os bandidos se reuniam no "saloon".

Silver puxou a corda e deixou-a junto à chaminé, sem a desamarrar, já que pensava utilizá-la mais tarde. No entanto, sem que se apercebessem do facto, o rolo de corda voltou a escorregar pelo telhado, caindo ao chão. Lentamente, acercaram-se da claraboia. O cheiro a índio era mais intenso agora.

— Vou descer. — sussurrou Silver. —A ordem de cegar os cavalos foi de Carbajal, mas estes índios levaram-na a cabo. Os animais tinham o seu pestilento cheiro. Espera aqui. Se algo me acontecer, fuja.

Tirou do bolso a sua navalha. Abriu-a e, depois, descalçou as botas e deixou cair o cinturão.

Sem o menor ruido, deixou-se deslizar pela claraboia. Calculou que os dois índios estariam colados parede, evitando, assim, atacarem-se um ao outro na escuridão.

Apesar de não fazer qualquer barulho, sabia que os índios, com o seu apurado ouvido, tinham captado a sua entrada. Respirou pela boca para não delatar a sua presença e esperou.

Silêncio, calor e tensão naquele ambiente. E de súbito...

Algo se aproximava dele, sentia-o, ainda que não pudesse vê-lo nem ouvi-lo. Inesperadamente, um corpo entrou em contacto com a sua mão esquerda, estendida. Era a ocasião! Sentiu a navalha entrar na carne do adversário. O índio gritou. Foi um grito mais de surpresa do que de dor.

A navalha escapou-se-lhe da mão, húmida como estava do suor. E ao mesmo tempo, algo frio entrava em contacto com o seu corpo.

Saltou freneticamente para a direita, enquanto a gélida folha de aço de um machado recuava para descarregar outro golpe. Mas ele não chegou a aparecer. A vida fugiu do homem que o manejava.

Uma serpente assobiou, Não! O índio que restava brandia o machado, às cegas, esperando ferir o adversário. Silver estava desarmado! Tinha de fazer qualquer coisa para sobreviver. Lenta, penosamente, arrastou-se pelo chão, numa busca interminável.

A sua mão tocou num charco viscoso. Devia estar próximo do cadáver do primeiro índio, e, consequentemente, do seu machado. Continuou a apalpar o chão, sentindo uma profunda náusea revolver-lhe o estômago.

Encontrou-o por fim. Apertou o cabo do machado: E, de súbito, ocorreu-lhe uma ideia.

Tirou da algibeira a sua caixa de fósforos. Lentamente, foi espalhando-os, um a um, num amplo semicírculo. Os índios iam calçados com sandálias. Talvez os fósforos se incendiassem em contacto com elas. Aguardou, encolhido como um tigre, na escuridão, o machado empunhado ao alto.

Ssss!

Um fósforo incendiou-se a menos de duas jardas dele. Como uma mola de aço, Silver lançou-se sobre o índio. O machado fendeu carne e ossos como se fossem de manteiga.

O atingido soltou um grito pungente, desumano, e Silver retrocedeu, espantado.

Uma sombra recortou-se na claraboia. Porfírio, sobressaltado com o grito do índio, tentava perfurar as trevas.

— Silver! — gritou. -- Está bem?

— Sim — foi a tranquila resposta. — Sinto vontade de vomitar, mas estou bem. Pode descer.

Porfírio deixou-se escorregar pelo vão. E, quando acendeu um fósforo, esteve a ponto de soltar um grito de surpresa. Havia sangue por todo o lado. Os dois índios estavam estendidos no chão. O primeiro, anavalhado, morto. O outro, gemendo desesperadamente, com o machado enterrado num ombro, recuou para a parede, retorcendo-se horrorosamente, com um terror sobrenatural nos olhos.

Uma voz, vinda do "saloon", fez-se ouvir:

— Ponk, Huitle! — Carbajal chamava os seus homens.

Silver aproximou-se da porta e abriu-a, no momento em que Porfírio deixava cair o consumido fósforo. O índio ferido arrastou-se como uma coleante serpente. O seu último desejo era sair dali, deixar de ver Silver. As escadas que conduziam ao "saloon" começavam, bruscamente, logo à saída da porta.

O índio rolou por elas e, quando chegou aos pés de Carbajal, estava morto. Os olhos dos bandidos foram repetidas vezes do índio à porta.

Silver arrastou o outro cadáver e lançou-o escadas abaixo.

Carbajal sentiu como se o coração lhe parasse. Gringo Sonora lutara com os seus índios na escuridão e vencera-os! Um dos bandidos gritou, cheio de terror:

— É o diabo em pessoa! Fujamos!

 

++++++

 

Carbajal sacou o seu pesado "Colt" e meteu uma bala nas costas do homem que fugia. Depois, soprou o cano e voltou-se para a porta de acesso à claraboia. Agora seria diferente. Não poderiam contar com a surpresa. A mais horrível morte esperaria aqueles dois homens se tentassem descer.

Paulo, o mestiço de confiança, entrou naquele momento, em rápida correria.

— Há uma corda atada â chaminé do "saloon" — disse em voz baixa. — Subi ao telhado e encontrei isto.

Estendeu-lhe um cinturão, com dois coldres; de negro couro. O de Silver. Porfírio, inexplicavelmente, esquecera-se dele quando se juntara ao amigo.

— Paulo — sorriu Carbajal, — leva Nicásio e faz com que saiam do seu esconderijo. Dentro de meia hora, Gringo Sonora não passará de um cadáver.

Silver, apesar da porta estar entreaberta, não ouviu a conversa. Mas teve como um pressentimento.

— As minhas pistolas. Deixei-as ficar no telhado.

— Vou buscá-las! — ofereceu-se Porfírio, subindo o pulso, depois de se pendurar na claraboia.

Havia uma claridade difusa, anúncio do novo dia. O mexicano, surpreso, comprovou o desaparecimento das armas. Uma telha rangeu, ao ser pisada por uma bota. Voltou-se rapidamente, no momento em que Paulo, por detrás da chaminé, fazia ladrar o revólver. O impacto da bala fê-lo dar meia-volta. E, vendo que nada poderia fazer, deixou-se cair pela claraboia.

O ruido dos dois mexicanos, correndo sobre o telhado, deu a Silver uma perfeita ideia do que ocorria. Inclinou-se para Porfírio, apossando-se do seu revólver. Apontou ao tecto. Este era composto por uma armação de canas que sustentavam as telhas. Os passos dos inimigos delataram o lugar onde se encontravam.

Calmamente, disparou. Ao terceiro tiro, correspondeu um grito de dor. Um corpo caiu pesadamente e resvalou para o chão. Os outros três tiros que lhe restavam serviriam para pôr em debandada o outro bandido.

Rapidamente, içou-se para o telhado. Comprovou o desaparecimento das armas, calçou-se e desamarrou o laço da chaminé. Então, voltou a descer pela claraboia.

Porfírio estava sentado no chão, com as costas apoiadas na parede, tentando deter a hemorragia com o lenço. A difusa claridade do novo dia, Silver pôde ver a extrema palidez do seu rosto.

— Não é nada. Um buraquito sem importância, nada mais.

Com uma careta de dor, desmaiou. O projétil atravessara-lhe o peito, muito alto, sob o ombro direito. Não parecia uma ferida mortal, mas também não era "um buraquito sem importância".

De súbito, chegaram da rua uns disparos. Uma espingarda que Silver conhecia muito bem pois era a sua. O vidro da janela voou em estilhaços.

Paulo, que. escapara com vida dos tiros de Silver, no telhado, foi atingido, no pescoço, morrendo instantaneamente. Carbajal, ao seu lado, lançou-se para o chão. Depois, avançou para a janela, surpreso com aquele inesperado ataque. Quem poderia ser?

Um cauteloso olhar fê-lo respirar fundo. O atacante era nada mais nada menos do que Maria Alvarez de Camporreal, a proprietária do rancho "Pedra Negra". Tinha a espingarda encravada e tentava, nervosamente, pô-la, de novo, a funcionar.

Como um ágil puma, Carbajal saltou pela janela e desarmou-a, prendendo-lhe, depois, as mãos nas costas, com umas tiras do seu próprio vestido.

Um rumor de cascos fê-lo voltar a cabeça. Os seus homens batiam em retirada. Abandonavam-no. Aceitou o facto quase com indiferença. Seis ou sete homens, quantos lhe restavam do seu antigo bando. E levando as armas dos mortos, o que de maior valor havia naquelas terras.

Debruçou-se para a jovem, depois de a derrubar, amarrando-lhe os pés. E então, aproximou--se da porta do "saloon", gritando:

— Gringo Sonora! Espero-o aqui fora! Saia sozinho ou a sua amiga morrerá!

A figura do padre Alberto atravessou a praça, entrando no botequim.

Silver, no varandim do "saloon", compreendeu que chegara o momento do último acto da tragédia. Com Porfírio às costas, desceu as escadas, deixando-o sobre uma mesa, recuperados já os sentidos.

— Carbajal está lá fora — disse o padre com voz rouca. — E tem Maria com ele.

— Bem o sei, padre.

Voltou-se para o ferido e tirou-lhe o cinturão. Examinou o 45 e verificou que estava vazio. Olhou interrogadoramente Porfírio.

— Não tenho um só cartucho. Gastei-os todos.

A situação roçava a tragicomédia. Chegara o momento final e estava desarmado. Deitou um olhar pela destroçada janela. Até àquele instante, Barreal era uma povoação adormecida. Mas, agora, parecia que todos os habitantes estavam na rua, para ver o final da representação.

— Que poderemos fazer? — inquiriu o padre, limpando o suor que lhe corria pelo rosto.

— Eu irei buscá-lo — sorriu Silver. E cingiu o cinturão de Porfírio, colocando o revólver na funda.

— Com uma arma descarregada?

— Carbajal não o sabe. Reze por mim, padre.

Avançou até à rua. Cem passos mais acima, próximo da Junta, Carbajal aguardava a pé firme. Ao seu lado, estendida no chão, Maria.

O modo como saiu do "saloon", a calma com que parara para acender um cigarro, tudo naquele desconhecido impressionou vivamente Carbaja1. Soube, imediatamente, que Gringo Sonora o mataria.

Ali, diante de todo o mundo, cairia aos pés do adversário, e os habitantes de Barreal; rir-se--iam dele até ao fim das suas vidas.

Sentia um medo terrível, brutal. Não queria morrer. Não queria que o chumbo de Gringo Sonora lhe destroçasse as vísceras, fazendo-o expirar sobre o p6 da praça, enquanto um enxame de moscas lhe viria cobrir as feridas.

Fascinado, como o indefeso pardal que contemplava a serpente que o vai devorar, Eudosio Carbajal olhava o oponente. Viu-o fumar durante uns segundos, longos como horas, e, depois, atirou o cigarro para longe. E aproximava-se dele.

A cada passo, a sua estatura parecia aumentar. Depois, viu os seus olhos, dois pedaços de gelo verde, carecendo por completo de expressão. Recordou algo que ouvira contar: Gringo Sonora nunca saca sem o adversário o ter feito primeiro. Silvar passava pelo momento mais tenso de toda a sua vida. No seu cérebro, latia a angustiosa pergunta: quando sacaria Carbajal?

Aproximou-se uns passos mais. E, de súbito, algo ganhou vida na sua mente. Estava a menos de dez passos do bandido e este ainda não sacara! Procedeu então sem pressas, mas aproveitando cada fração de segundo.

A cena ficou gravada para sempre na memória de quantos a ela assistiram. Silver chegou junto de Carbajal, que parecia convertido numa estátua. Estendeu a mão esquerda e desarmou-o. Depois, com a direita, cruzou-lhe o rosto, numa seca bofetada.

Carbajal caiu de joelhos. Abriu a boca, mas fechou-a imediatamente. Depois, como um sonâmbulo, levantou-se e começou a andar. Silver não lhe dedicou a menor atenção. Debruçou-se para Maria, desamarrando-a.

Entretanto, Carbajal aproximava-se do cavalo, vacilante. Os habitantes de Barreal afastavam-se dele, sem tentar sequer maltratá-lo. Para eles, que o tinham temido durante anos, não era agora nada. Estava muito abaixo de um cão. Era final. Carbajal partiria e jamais se atreveria a aparecer pela região.

Mas, de súbito, aconteceu o inesperado. Uma mulher saltou diante do bandido, brandindo algo brilhante. Foi tudo demasiado rápido. A mulher gritou. Carbajal recuou, mais inseguro ainda. No seu peito, no meio de uma roseta de sangue, o trabalhado cabo de uma navalha mexicana.

— E Anita Lopez — ciciou Maria.

A filha do cego Lopez acabava de cobrar a sua divida. Olho por olho, dente por dente.

— Gringo Sonora! — o grito jubiloso de Porfírio chegou inesperadamente até ele. — Cantar-se-ão histórias em sua honra desde o México ao Cabo de Hornos!

Apoiado no frade, o jovem mexicano aproximava-se, indiferente à dor do ombro. Chegou junto dele, rindo como um louco.

— Dê-me o meu revólver, 'Silver.

O aludido estendeu-lhe o cinturão. Porfírio olhou em redor, as pupilas brilhantes pela febre. — Bando de cobardes! — gritou. — Um povoado inteiro temendo um homem que não pôde enfrentar-se com Gringo Sonora, apesar de este usar uma arma descarregada! Verifiquem com os vossos próprios olhos e que o diabo vos leve a todos!

Atirou o revólver ao grupo mais próximo. E, pouco depois, um clamor aumentava de intensidade, à medida que os habitantes de Barreal comprovavam a veracidade das palavras de Porfírio.

E a apatia dos homens desapareceu como por encanto. Um grupo de cavaleiros, recorrendo a todas as armas possíveis, partiu a galope para fora da cidade.

— Vão para os lagos — disse, com certa preocupação o padre Alberto. — Espero que não consigam encontrar os restantes bandidos. Já correu demasiado sangue em Barreal.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário