quarta-feira, 12 de setembro de 2018

CLF026.08 Legião da VIgilância

Dan sentia os joelhos insolitamente rijos enquanto permanecia ajoelhado no banco da pequena igreja da missão dos franciscanos. A missa parecia-lhe extraordinariamente longa e cada vez lhe era mais difícil segui-la.
Meia dúzia de vezes se erguem antes de tempo, quando a maioria dos paroquianos já estavam de pé outras vezes só o frufru dos vestidos femininos o preveniu a tempo de que devia ajoelhar-se.
A seu lado, Andrés não conseguia conter de todo um sorriso perante a atrapalhação do seu amigo. Montalvo sabia que grande parte disso se devia ao facto de que Dan passava anos sem assistir a nenhum ofício religioso; mas a causa dominante da sua falta de atenção estava devotamente ajoelhada no outro lado da nave, com os seus finos dedos ocupados a passar as contas do rosário.
O jovem viu-se obrigado a admitir que, certamente, como sempre tinha pensado, Virgínia era uma criatura extraordinariamente formosa. Agora, ao deslizar de quando em quando um olhar para ela, verificava que o seu rubor aumentava.
Todavia, a rapariga parecia não se precatar dos olhares cada vez mais prolongados que Dan lhe dirigia. Seria que ela sentia a sua intensidade?
Ao lado de Virgínia, Matias Galvez roncava suavemente, com o proeminente queixo pendente sobre o peito, enquanto que do púlpito um austero sacerdote condenava justamente as loucuras e as vaidades da corrupta humanidade.
Terminado que foi o sermão, o franciscano desceu do púlpito e ajoelhou-se ao pé do altar. A missa acabara.
Rezaram-se as últimas orações e foram benzidos os paroquianos. Estes saíram em fila, passando perante as pias de água-benta. Depois, encontraram-se sob o resplandecente sol, que vaidoso enchia o pátio da missão.
—E era a ti que queriam fazer clérigo? — troçou Andrés, assim que se encontraram cá fora.
Dan concordou sorridente.
—Receio que as bênçãos da Santa Madre Igreja não sejam para mim. A verdade é que me não mostrei muito devoto.
— Nem um pouco sequer — riu o seu amigo. — Nada, é a expressão justa.
— Não podia deixar de olhar para ela. Lamento muito. É tão formosa!
—Pelo que vejo estás irremediavelmente perdido.
— Achas que o senhor Galvez se deterá a cumprimentar-nos quando passar por aqui?
— Suponho que sim.
—E disse-te para me convidares para ir a sua casa?
Andrés olhou-o com ar trocista.
— Na verdade ainda não acreditas? Pois olha que já to repeti mais de uma centena de vezes.
— Sim, já sei.
— De qualquer modo, também te disse que não é este o momento mais oportuno para o abordar.
—Porquê?
— Não sei exatamente o que o trouxe a São Francisco, pois o velho odeia profundamente a cidade, mas julgo que se aproximam grandes acontecimentos.
— Estás louco, se julgas que podia esperar tranquilamente que voltasse a Monterrey
—Bem. Olha, aí vêm a tua adorada e seu pai. Ou será que é a ele que tu adoras?
— Vai para o diabo!
— Como Ultimamente mostras tanto interesse por ele...
Dan resmungou algo indecoroso, mas não o disse em voz alta porque a carruagem auriverde aproximava-se lentamente através de um intrincado cardume de veículos. Tanto ele como Andrés tiraram o chapéu e inclinaram-se.
Matias Galvez retribuiu-lhes o cumprimento com gravidade, e mandou parar a carruagem.
— Bons dias, cavalheiros — disse—. Alegro-me bastante em o ver, Andrés. Queria falar consigo.
— Muita honra me dá — fez uma ligeira pausa antes de acrescentar — : Senhor, permite-me que lhe apresente o meu bom amigo Daniel Winter?
O ancião assentiu levemente, enquanto os seus negros olhos perscrutavam os de Dan.
—Na verdade tenho ouvido falar muito de si ultimamente, senhor.
— Espero que lhe não tenham dito mal de mim —sorriu o rapaz — Um seu criado!
— Já conhece a minha filha, não é verdade?
Dan inclinou-se.
—Já tive essa honra—disse olhando-a intensamente. — Mas há tanto tempo já, que não sei se ela se lembrará de mim ainda.
Virgínia corou, baixando os olhos apressadamente.
—Oh, sim! — afirmou tão baixinho que mais não era do que um suspiro.
— Está bem, senhores — interveio o velho fidalgo—. Querem escoltar-nos? Também gostaria de falar consigo, senhor Winter.
Os dois jovens inclinaram-se novamente, e, retrocedendo, para ir buscar os cavalos, que segurava um peão, montaram agilmente situando-se um de cada lado da carruagem. Andrés teve de colocar-se ao lado do velho Galvez.
O local da reunião ficava fora da cidade, e a carruagem evitava-a deliberadamente, dirigindo-se para a parte alta, onde viviam as pessoas mais importantes. Todavia, cada dia chegavam mais revoadas de Iluminados que se espalhavam por todo o lado, e se cruzavam com vários grupos de homens, esfarrapados, muitos deles, mas sem que a nenhum faltasse o pesado revólver pendurado ou metido no cinturão.
— Estive muito tempo perguntando a mim próprio se você não teria preferido que eu não voltasse a apresentar-me — murmurou Dan, inclinando-se para a linda rapariga californiana.
— E eu começava a perguntar a mim própria se eu o voltaria a ver alguma vez mais.
Ele ficou-se a olhá-la com os olhos brilhando com fogo, verdadeiramente deslumbrado.
— Ter-se-ia importado? — perguntou meigamente.
Os negros olhos de Virgínia alargaram-se e a palidez seráfica da sua cútis adquiriu um leve tom rosado. Mas quando falou a sua voz era firme.
— Sim — disse claramente — . Ter-me-ia importado.
Dan respirou fundo, sentindo que o sangue lhe circulava quente e veloz pelas veias, latejando fortemente nas artérias. Não tinha encontrado ainda a forma de expressar quanto sentia, quando o sobressaltou uma voz fazendo-o erguer vivamente a cabeça.
—Aí vai esse maldito velho que quer acaba connosco. Vamos pendurá-lo com uma boa corda par ver como ele esperneia?
O penetrante olhar do jovem descobriu, no meio dos transeuntes, um grupo de seis homens, mineiros indubitavelmente com exceção de um cujo casaco bem talhado contrastava com as roupas desalinhadas dos seus companheiros.
— Não! — gritou o do casaco dando uns passos em frente, ao mesma tempo que levava a mão ao peito—. Isto assim é mais rápido! Seis meses de contínua prática tinham feito com que Dan fosse capaz de empunhar o revólver na quarta parte de um segundo, e o bandoleiro estava ainda empunhando a sua pistola, quando se ouviu um estalido seco, e um buraco negro, apareceu junto à lapela esquerda do casaco. Dando meia volta, o homem estatelou-se no chão.
— Quietos! — ordenou Winter com voz tão enérgica e imperiosa como o próprio disparo, apontando o fumegante revólver ao resto do grupo.
Os homens, que já iniciavam o movimento de pegar nas pistolas, imobilizaram-se perante a intimação, olhando rancorosamente para o jovem.
Andrés também empunhara entretanto uma arma mas encontrava sérias dificuldades com o seu cavalo, espantado, pela detonação, assim como também se tinham assustado os que puxavam a carruagem dos Galvez, pelo que Dan ficou para trás enfrentando-se, só, contra os cinco mineiros, que o olhavam com ódio, tensos os músculos e crispadas as mãos, esperando o menor descuido para crivar o ousado mocetão que os mantinha em respeito com o seu revólver.
Mas o formoso cavalo negro que Winter montava, domara-o e adestrara-o Díego, o capataz, que não tinha par como vaqueiro e corredor de pradarias pelo que continuava imóvel, como uma formosa estátua, primorosamente talhada em magnífico ébano.
— A andar! — ordenou Dan, secamente, uma vez que os sujeitos não se decidiam a caminhar.
— Hás-de nos pagar isto — rugiu ameaçadoramente um dos mineiros.
— Para a frente. Mexe uma mão que seja e será a tua morte.
Andrés chegou naquele momento, pondo-se ao lado do seu amigo.
— Maldita corja — vociferou num inglês corrente—. Fora daqui!
—Meninos café com leite, porcos! — cuspiu o mesmo tipo de há pouco—. Venham a «Barbary Coast». Temos muitas gravatas de bom cânhamo para vocês.
—E aqui há bastante chumbo para ti— replicou Winter —. Desaparece de uma vez para sempre ou apanhas com tanto que o não conseguirás digerir.
O indivíduo lançou-lhe um olhar de ódio mas dando meia volta afastou-se seguido pelos outros quatro. Os dois jovens aguardaram, com os revólveres aperrados, até que aqueles indesejáveis se tivessem afastado suficientemente, antes de voltarem a agrupar-se. O velho Galvez tinha-se apeado do coche e também empunhava uma pistola.
—Maldita peste! — resmungou quando os dois homens se juntaram a ele—. É como vê, senhor — acrescentou dirigindo-se a Dan— . O ouro trouxe para estas terras a escória do mundo. Não é possível que continuemos a permitir isto. Não há muito tempo, esses malditos atreveram-se a raptar duas das nossas raparigas, que dias mais tarde foram encontradas praia, meio loucas.
—A tanto chegou a sua audácia? —perguntou o jovem inglês, verdadeiramente consternado.
— Já não põem freio algum aos seus desmandos como viu agora. Até na parte alta da cidade se atrevem a fazer das suas.
—Disseram que o senhor queria acabar com eles
—Foi para falar acerca disso que lhes pedi que nos acompanhassem. Mas sigamos. Não é aqui o lugar mais apropriado para tratar desse assunto.
Voltou a subir agilmente para a carruagem, e de novo se puseram em movimento.
— Oh! Que susto apanhei! — murmurou Virgínia quando Dan voltou a cavalgar junto dela.
—Na verdade pouco faltou para que aquele homem disparasse contra o seu pai.
—O senhor salvou-o.
—Felizmente consegui antecipar-me.
—Mas tudo aconteceu com demasiada rapidez e mal tive tempo de dar conta do que se passava. Foi depois quando tive verdadeiramente medo.
A simples confissão da pequena alterou o pulso do rapaz.
—Você... Receou por mim!
—Sim.
Dan lançou um rápido olhar ao velho Galvez, mas este discutia acaloradamente com Andrés e não prestava a menor atenção, ao que se passava à sua volta.
— Posso tratá-la por Virgínia?—perguntou olhando intensamente para a rapariga, —Já demasiadas coisas aconteceram entre nós para que não haja necessidade de mantermos tanta cerimónia.
— Sim... Sim, Dan.
—E... Permitir-me-á que a visite de vez em quando?
—Estarei sempre em casa... para ti.
Tinham chegado ao bairro elegante da cidade, e o carro deteve-se perante uma formosa casa de estilo gótico americano, com enormes varandas e minaretes, estranhamente dispostos, que saiam do telhado.
Verificando que já tinham chegado, Winter desmontou rapidamente acudindo para oferecer a sua mão a Virgínia e ajudá-la a descer da carruagem. O olhar da rapariga premiou generosamente a diligência de Dan.
— Entrem, senhores — disse Matias Galvez atravessando a galeria enquanto se abria a porta e os criados tomavam conta dos cavalos.
— Olá, Matias. Vens bem acompanhado — cumprimentou-os um homem enorme, de duzentas libras peso e mais de seis pés de altura que veio recebê-los no vestíbulo.
A sua voz estava proporcionada com aquela extraordinária corpulência, pois tinha uma certa ressonância e um tom abrupto e profundo.
— Virgínia, cada dia que passa, estás mais encantadora.
—Muito obrigado, senhor Robert — sorriu a jovem gentilmente.
— Olha, Virgínia, será melhor procurares Sophy. Nós temos de conversar — disse o pai.
— Está lá em cima — indicou o dono da casa.
— Já conheces Andrés, não é verdade? — continuou Matias Galvez.
— Sim.
—Pois agora quero apresentar-te Dan Winter. Meu jovem amigo, este senhor poderá ajudá-lo muito quando tratar de legalizar as suas terras. É Joseph Robe funcionário do governo.
— Muito prazer em conhecê-lo, senhor — disse Dan apertando a manápula que o outro lhe estendia.
—Já tinha ouvido falar de si. Dizem que conseguiu trazer uma grande manada do Vale Imperial.
— Mil e quinhentas cabeças —assentiu o jovem.
—Temos de falar disso, Sr. Winter. O meu Governo necessita precisamente de grandes quantidades de gado para comprar territórios aos índios, e...
O velho fazendeiro fez um gesto de impaciência.
— O que mais precisa o Governo de momento é deitar a mão a essa chusma de «Barbary Coast». Sabes que ao dirigir-me para aqui tentaram matar-me?
— Não é possível! — exclamou o homenzarrão com evidente sobressalto.
—Mas é. Foi só graças à oportuna intervenção do senhor Winter, que aqui estou a contar-to.
—É incrível!
— A ousadia desses indivíduos, não tem limites. Assim é na verdade. Chamei-te precisamente para tratarmos disso. Mas passemos à sala. É asneira estarmos aqui a conversar de pé. Os três passaram para uma dependência clara e alegre, onde se sentaram a um gesto do dono da casa.
— Que tomamos, senhores?
— Conhaque.
— O senhor também, Winter?
— Sim, obrigado.
— Pois bem, Matias, chamei-te para te pedir ajuda.
Enquanto absorvia a sua bebida, Galvez olhou-o por baixo das suas hirsutas sobrancelhas.
— Tu dirás como devo fazê-lo.
—É preciso impor a lei, mas no momento, e só Deus sabe por quanto tempo, o Governo não tem força suficiente, lixem conta com meios para o fazer.
— Adiante.
—É necessário formar uma legião de vigilância. Só assim será possível limpar este ninho de víboras que é «Barbary Coast».
—É assim mesmo — concordou com calor Matias Galvez, dando um murro sobre a mesa — . Legião de Vigilância pode ser a solução.
— Mas necessitamos de contar com pessoas de prestígio e de poder. Já avisámos o coronel Fremont e, estou certo de que se unirá a nós; mas para os californianos e para os hispano-californianos, tu és a primeira figura.
—Ora! E queres que eu colabore com esse Judas Robert —sorriu ligeiramente.
—Se quiseres, não precisas de ter quaisquer relações com ele.
—E para que diabo nos faz falta?
— Pela mesma razão do que tu, Matias. Entre nós os anglo-saxões, é o homem de mais prestígio que possuímos.
—Porque atraiçoou ele a sua fé e a sua palavra
— Porque conquistou um rico território para Estados Unidos da América do Norte.
— Enganando assim os que eram demasiadamente nobres para suspeitar da sua torpeza.
— Não sejas cabeçudo, homem. Tudo quanto fez foi pela sua pátria, e esse ideal justifica qualquer meio (1)
— Um verdugo pode ser tão bom funcionário do Estado como tu, mas não creio que fosses capaz de o sentares à tua mesa.
—Sempre fazes umas comparações!...
—Está bem, não discutamos. Colaborará na limpeza da cidade, mas não quero ter quaisquer relações com esse homem.
— No entanto, será necessário reunirmo-nos para nos pormos de acordo, e...
— Não assistirei a nenhuma!
— Então?
— Deve estar tudo arranjado no momento oportuno. Bastará depois que me mandes a relação pormenorizada do sector que me corresponde limpar, e ainda o dia e a hora em que deverá fazer-se.
— Como quiseres — assentiu Robert, encolhendo os ombros.
— Posso contar consigo, Winter? — perguntou o velho fidalgo voltando-se para o rapaz.
— Sem dúvida!
— Pois nesse caso espero por si amanhã na minha fazenda. Talvez demore um pouco, pois terei umas coisas a tratar primeiro, mas estou certo de que a minha filha saberá entretê-lo.
«Se sabe!», —disse Dan de si para consigo, sentindo ao mesmo tempo que o sangue lhe subia à cabeça.
— E tu, Andrés? — perguntou o velho fazendo de conta que não tinha percebido a perturbação do inglês.
— Conte comigo também — disse o jovem californiano sorrindo alegremente —. Mas eu, além disso, acompanhá-lo-ei nos outros trabalhos. Não quero afogar-me entre suspiros.

(1) John Charles Fremont, seguiu um procedimento similar de Houston no Texas, levando os californianos à luta pela independência, para depois os atraiçoar entregando o território Estados Unidos. (N. do E.).

Sem comentários:

Enviar um comentário