segunda-feira, 24 de setembro de 2018

CLF017.01 O encontro

Eddie Parker encarou a rapariga.
—Afinal, o que é que tencionas fazer? O deserto não é lugar para rapariguinhas como tu.
Ela nada dizia. Continuava, de pé, junto do seu cavalo morto. Não teria mais de dezanove anos e o seu, aspeto era completamente selvagem. O rosto, bronzeado pelo sol, era de feições belíssimas; o nariz fino e discreto, as faces pouco acentuadas, as sobrancelhas finas e arqueadas, os lábios frescos, atraentes e primorosamente traçados. Os cabelos ruivos, um tanto platinados, longos e penteados a cair sobre as costas e ombros; olhos grandes em forma de amêndoa e duma curiosa cor violeta, que olhavam duma maneira estranha, irada e hostil. O seu corpo jovem, de formas admiráveis, cobria-se com velhíssimas calças de dobra cinzenta, camisa demasiado usada dum azul descorado pelo tempo e jaqueta pequena completamente remendada. Trazia botas cheias de poeira e cobria-se com um chapéu cujas abas tinham já alguns buracos. Apesar de tudo a sua figura esbelta salientava-se perfeitamente.
—O teu cavalo morreu, não foi? — perguntou Eddie.
A rapariga dirigiu-lhe um olhar curioso.
—Você é cego?
Eddie desmontou e acercou-se do cavalo caído. Após observá-lo brevemente, voltou-se para a rapariga.
—Morreu estoirado — disse. —Deves tê-lo feito correr muito para que morresse com os pulmões rebentados.
A rapariga continuava mantendo o seu mutismo, obstinado, de cólera. Eddie apoiou todo o peso do seu corpo sobre, uma perna e observou-a detidamente. Ela também o parecia estar observando com atenção. O encontro tivera lugar em pleno deserto na região de Pecos, extremo sudoeste do Texas. À distância de uma milha, Eddie tinha já distinguido a sua figura sob o ardente sol. Só quando se aproximou mais, viu então que se tratava duma rapariga.
—Para onde vais tu? — perguntou, quebrando novamente o silêncio.
Ela não respondeu, limitando-se a voltar o olhar para o outro lado. Eddie encaminhou-se na direção do seu cavalo disposto a montar e partir, mas voltou-se ainda.
—Pelo aspeto pareces ter nascido por estes lados— disse. — De modo que deves saber o que acontece a todo aquele que fica só no deserto e sem cavalo.
A rapariga, de súbito, baixou a cabeça e sussurrou com uma entoação rouca:
— A morte.
Eddie, aproximou-se novamente.
— Escuta: tiveste muita sorte em eu ter dado contigo. Se deixas que eu me vá embora, não se te apresentará outra ocasião como esta. No deserto passam-se Semanas e meses sem se encontrar uma pessoa. E sem cavalo, não chegarás muito longe.
Ela olhou-o nos olhos.
— Que pretende de mim?
Eddie encolheu os ombros.
— Levar-te aonde me disseres; por isso perguntei para onde ias.
A rapariga franziu o sobrolho e entreabriu os lábios. Mas nada disse.
-- Advirto-te que me é indiferente tudo quanto está relacionado contigo. Se te apetece que os teus ossos apodreçam aqui, é contigo.
Deu meia volta com a intenção de se afastar novamente, quando a rapariga murmurou por entre dentes:
—Vou para Hondo.
Eddie estacou e assinalou com um gesto de cabeça o. seu próprio cavalo.
— Monta.
A rapariga acomodou-se à garupa, enquanto Eddie montava sobre a sela, na sua frente. E pouco depois estavam já longe do local do encontro.
Eddie Parker tinha vinte e sete anos, mas a expressão do rosto dava-lhe o aspeto de ter muito mais. Alto, de corpo atlético e musculoso, parecia um homem incrivelmente endurecido para a idade, um homem que tinha já passado por quantas experiências se chegam a conhecer ao longo duma vida. De semblante escorreito e curtido pelo sol e pelo vento, possuía feições enérgicas, parecendo traçadas a golpes de machado. Dava a sensação de ser, tanto no físico como no carácter, resistente como uma rocha. Os seus olhos cinzentos tudo olhavam com indiferença, como se nada fosse capaz de o emocionar. Era um olhar acerado. Os seus cabelos negros, muito compridos, quase cobriam por completo a nuca. Era um indivíduo de personalidade bem vincada, avassaladora. Vestia inteiramente de preto, com uma camisa de dupla fileira de botões de ambos os lados do peito; calças muito justas às pernas, logo desaparecendo no cano alto das botas de montar que quase atingiam os joelhos, e um chapéu de aba larga e copa plana. Em redor da cintura cingia-se uma cartucheira da qual pendiam dois revólveres, por meio de tiras de coiro.
A rapariga reparou que as culatras das armas tinham vários entalhes, mas não pôde distinguir o seu número.
— Como te chamas? — perguntou Eddie, subitamente, após terem cavalgado durante três horas em silêncio. A rapariga hesitou uns instantes; a sua resposta saiu breve:
—Joyce McCarey.
—O meu nome é Eddie Parker — informou ele.
Joyce não pôde evitar um gesto de alarme, quase impercetível.
—Eddie Parker?
—Sim. Acaso sabes alguma coisa a meu respeito?
O rosto da rapariga tornou-se ainda mais duro.
— Pouca coisa. Só que o senhor é um «pistoleiro».
Os lábios dele entreabriram-se num sorriso.
— Sim, sou um «pistoleiro».
Não voltaram a falar até que ao cair da noite, acamparam ao abrigo duns penedos que os protegiam do vento do deserto. Eddie acendeu uma fogueira com cactos secos e raízes, preparou uns pedaços de toucinho passando-os pelo fogo e fez café. Uma vez terminado o jantar o jovem arranjou um cigarro. Enquanto fumava, manteve os olhos fixos nas chamas. Depois, olhou para Joyce.
— Queres dormir?
Ela fez um gesto de indiferença.
—Não estou cansada.
Eddie deixou escapar uma baforada de fumo.
—Deves ter muita pressa em chegar a Hondo, de contrário não terias rebentado com o cavalo.
— Isso é assunto que só a mim interessa — respondeu asperamente.
Eddie deixou escapar uma baforada de fumo.
— Com certeza. Mas se eu fosse teu pai não te deixaria andar sozinha por estes sítios.
Como se fosse picada por uma agulha, a rapariga ergueu-se bruscamente e olhou o rapaz como se quisesse fulminá-lo; o rosto estava desfigurado,
— Que sabe o senhor sobre meu pai? — perguntou com voz penetrante. —Diga, que sabe dele?
Eddie olhava-a sem demonstrar qualquer emoção, embora com estranheza.
— Que sei sobre o teu pai? Nada. Que poderia saber se nem sequer o conheço?
Joyce permaneceu uns instantes imóvel. Depois, voltou a sentar-se e ficou quieta embora a respiração estivesse alterada. Eddie atirou para o fogo a ponta do cigarro.
—Mas, que diabo se passa? — perguntou.
Sem o fitar, a rapariga teve um gesto de desdém.
—O senhor não tem o direito de averiguar os meus assuntos. Acaso já lhe perguntei quantos homens matou até hoje?
Eddie fez o chapéu descair sobre a nuca.
—Não, não me perguntaste; mas não ficaria aborrecido se o fizesses. E, se tanto te interessa saber, digo-te que foram dez.
Joyce fitou-o com uma sombra de horror nas pupilas. Fincou os dentes, e por momentos pareceu que o ia insultar. Mas limitou-se á dizer com profundo desprezo:
—Suponho que isso representa para si motivo de orgulho.
Eddie pôs-se de pé, dominando a rapariga com a sua alta estatura.
—Estás enganada. Nem me orgulho, nem me envergonho. Trata-se simplesmente de um acontecimento no decorrer da minha vida, até hoje.
—Um acontecimento, pelo qual o senhor merecia ser enforcado -- respondeu ela com ódio.
O jovem evitou um bocejo.
— É possível que tenhas razão. Mas não esqueças de que em todos estes assuntos existem sempre vários' pontos de vista. Tu tens o teu e eu tenho o meu.
Fez uma pausa, para depois acrescentar:
— Em todo o caso, o mais importante nestas circunstâncias é apontar a estupidez da tua conduta. Uma rapariga que se interna sozinha no deserto, tem que forçosamente estar louca ou ser inconsciente. Não te ocorreu pensar nos perigos que irias encontrar?
Joyce manteve o olhar dele.
—Acaso o senhor é um deles?
Eddie sorriu, mas o seu sorriso era duro.
— Talvez.
Buscou as mantas e deu uma delas à rapariga.
—E agora vamos dormir. Não se viaja bem quando se está cansado.
Joyce envolveu-se na sua manta e deitou-se no solo. Uns metros adiante, do outro lado da fogueira, Eddie fez o mesmo. A rapariga permaneceu longo tempo sem conseguir dormir. Eram em excesso as coisas que lhe tinham acontecido para que pudesse conciliar o sono facilmente. Além disso, estava ali aquele indivíduo que tinha a dado morte a dez homens. A sua mão; pequena e forte, buscou sob a jaqueta até se enlear na culatra do revólver que tinha preso ao cinto. Estava certa de que Eddie desconhecia que estava armada. Estava resolvida a defender-se e a disparar se necessário fosse. Despertou, muito depois do amanhecer. Com os olhos ainda mal abertos viu que Eddie estava já a pé e preparava a primeira refeição na fogueira que
estava a arder novamente. Ao ver que ela se levantava, o rapaz disse:
—Se tens assim tanta pressa em chegar, será melhor que te despaches. A dormir, não se chega a nenhum lado.
Comeram rapidamente e começaram a viagem. Quando, horas mais tarde, o Sol subiu o horizonte, Eddie comentou:
—Vamos ter outro dia de calor.
Ao ver que a rapariga não dizia palavra, riu com certa aspereza.
—Sempre pensei que fosse uma pessoa de poucas palavras, mas tu consegues bater-me.
—Nunca gostei de falar por falar. E eu nada tenho para contar ao senhor.
O resto da viagem decorreu de forma idêntica: falando unicamente o indispensável e, de vez em quando, umas frases com certa dose de acidez. A meio da manhã do sétimo dia divisaram um punhado de casas de madeira e armazéns numa depressão de terreno batida pelo sol implacavelmente.
—Hondo à vista —disse Eddie.
E notou que nas suas costas o corpo de Joyce se tornava tenso como o aço.

Sem comentários:

Enviar um comentário