sexta-feira, 28 de outubro de 2022

BRV014.05 Duelo à moda do Oeste traz anjo da guarda ao cavaleiro de negro


Beatriz Block despertou quando o dia já ia alto. Não tinha relógio e, pela altura do sol, calculou que passava das dez da manhã.

Saltou da cama e vestiu um roupão de seda azul e aproximou-se da janela, afastou a cortina e deu uma olhadela à rua. Estava absolutamente solitária, como quando chegara.

Havia dormido mais de doze horas e por isso não se tinha informado sobre o quer que fosse que tornava tão solitária a famosa Main Street de Wichita. Agora o sol havia pousado sobre o tecto azul da cidade e envolvia-a no seu manto de fogo, obrigando as pessoas a refugiarem-se em casa esperando a noite, única altura em que, embora se respirasse um ar quente, pelo menos não se introduzia nos pulmões fogo puro.

Exatamente em frente do hotel havia um «saloon» que se chamava «Starlight», tal como o de Colúmbia, embora, naturalmente, parecesse muito mais pequeno e muito menos elegante. De qualquer maneira sentiu desejo de o visitar e recordar os seus tempos passados que, embora não estivessem muito longe, pois ainda não havia decorrido uma semana, os acontecimentos e a lentidão de comboio quase os haviam apagado da sua memória.

Junto do «saloon» havia um bordel, adivinhou-o pela cor das vidraças e pela sua entrada clássica. Aquela hora, parecia fechado e, portanto, solitário, esquecido, mas Beatriz suspeitou que de noite estaria muito concorrido.

Ao lado da casa pública ficavam alguns escritórios e talvez um armazém de uma casa funerária. Um grande anúncio -branco, ou quase branco, dizia em letras negras:

POMPAS FUNERÁRIAS WICHITA

Também estava solitária. Talvez no Oeste as pessoas não se servissem do dia nem para morrer. Mais ao longe, podia ver-se, da janela, a imensa pradaria atapetada de verde um pouco acinzentada umas vezes e outras azulada.

De espaço a espaço, que se podia contar por quilómetros, via-se uma casita pequena, um ponto apenas no horizonte. De longe em longe via-se também a silhueta de algum cavaleiro que desaparecia na imensidade da planície e na distância.

Voltou a olhar a rua assomando mais a cabeça. Aquele silêncio era estranho. Ao menos que se visse qualquer pessoa entrar no armazém para comprar qualquer coisa, pois embora a povoação dormisse de dia, os vaqueiros, fazendeiros e agricultores, necessitariam de trabalhar. Não se via nem sequer uma criança brincando nos passeios de madeira, nem um velho sentado em alguma cadeira, protegendo-se do sol na sombra dos alpendres. Nem uma mulher que tivesse necessidade de comprar qualquer coisa.

Nada.

Aquele silêncio começou a parecer-lhe letal. Como um presságio de morte ou tragédia. Nada a fazia suspeitar disso, mas não pôde deixar de pensar assim e o sentir no coração como qualquer outra manifestação da sua acentuada intuição feminina.

O sol arrancava cintilações de um bebedouro, certamente limpo e cheio durante a noite; calcinava o solo dando-lhe uma aparência desagradável, áspera. Pousava sobre os telhados vermelhos das casas pequenas construídas na sua maior parte de madeira, poucas de cimento e as restantes de adobe.

O escritório do xerife ficava muito longe do hotel, mas Beatriz julgou adivinhá-lo imediatamente ao lado de uma quadra onde também não havia ninguém. Estava fechada também a alfaiataria e o «GENERAL STORY».

Vazios estavam os bares e «saloons». As janelas estavam abertas, mas sem se ver ninguém.

A sensação de solidão que lhe surgia diante dos olhos da forasteira tornou-se angustiosa, incómoda. Os seus olhos procuraram afanosamente um sinal de vida sem o encontrarem, à exceção de um cão muito afastado que farejava num canto onde supôs que havia lixo. Mas a presença do cão aumentou a sensação de solidão.

Por fim, quando a sua respiração se tornava opressa, como se se asfixiasse, viu um ser humano. Viu-o surgir de uma estreita ruela que permitia, com certa dificuldade, a passagem a um homem. Era bastante alto, louro; estava despenteado e vestia uma camisa vermelha, descorada pelo sol e umas calças azuis, texanas, ajustadas às pernas, também descoradas e coçadas.

Era bastante jovem. Não procurou o abrigo que lhe ofereciam os alpendres, mas colocou-se no meio da rua onde parou e ficou imóvel. Da sua cintura pendia um largo cinturão-cartucheira e no coldre, ao lado direito, repousava um pesado «Colt» que, pelo tamanho, Beatriz calculou ser de calibre que: renta e cinco.

A mão do jovem apoiava-se sobre a coronha de ferro. Havia parado relativamente perto dela e pôde ver-lhe o rosto. Era bastante atraente, mas excessivamente Jovem pois não devia ter mais de vinte e dois anos. Havia um quê de medo e angústia no seu rosto vermelho d sol. Um quê de medo e angústia na mão que se apoiava na coronha e nos dedos que a apertavam.

Outro homem saiu da ruela, mas este foi abrigar-se no alpendre mais próximo. Vestia como um vaqueiro, mas suas roupas estavam muito sujas de lama, como se tivesse caído num charco; o sol havia secado a água, mas a terra continuava como cosida ou bordada na roupa. Também apoiava a mão direita sobre a coronha do revólver com que estava armado. Mais que apoiar-se, o que ele fazia era agarrar a coronha do «Colt» pois tinha-o um pouco tirado permitindo que se visse completamente o tambor e parte do cano.

Parou na mesma direção que o jovem e esperou olhando furtivamente para todos os lados. Por um momento os seus olhos ficaram fixos, cravados na distância, como se tivessem visto alguma coisa, mas depois continuaram a sua observação.

Beatriz começou a suspeitar que aquele silêncio e, aquela solidão se deviam ao drama que havia pressagiado. Não sabia o que aquilo significava nem o que podia acontecer, mas pressentiu que a morte estava muito próxima. Ouviu a janela pertencente ao quarto contíguo que se abria e uma voz de homem que gritava como se temesse que o ouvissem:

—Fecha a janela, Rosie.

—E Archibald Carr —respondeu a voz de uma mulher.

— Já sabíamos. Porque te admiras? — inquiriu o homem num tom desagradável.

— Eu, no fundo, não acreditava que fosse capaz de se enfrentar cara a cara com outro homem.

— Fecha a janela e senta-te; não aconteça que te firam.

— Já apareceu outro. São três! Bem dizia eu...

— Disse-te que fechasses a janela e te sentasses!

A janela gemeu ao fechar-se e o seu ruído coincidiu com o protesto um pouco desagradável da mulher que, indubitavelmente, sentia uma curiosidade mórbida por aquilo que pudesse suceder na rua.

Havia surgido outro homem que foi instalar-se no outro passeio. Desta maneira o homem da camisa vermelha tinha um companheiro de cada lado, dispostos a «sacar» logo que fosse necessário. Então começaram a andar atrasando-se um pouco os que iam pelos passeios.

Avançavam muito lentamente. Beatriz viu-os passar sob a sua janela e sentiu desejos de lhes dizer qualquer coisa, mas o quê? Se não sabia nem sequer o que pretendiam...

Sem dúvida tratava-se de um daqueles duelos da rua que tão famoso haviam tornado o Oeste. Uma modalidade de duelo que diferia muito dos que se praticavam no Leste.

Na terra de Beatriz exibiam-se o sangue-frio e a têmpera dos nervos de um homem quando enfrentava um inimigo. Beatriz havia visto um duelo e, precisamente, havia fraquejado um homem. Começara a tremer quando a pistola do adversário apontou para ele friamente e então ajoelhou-se no chão e começou a chorar. A arma seguiu o seu corpo, implacavelmente, e disparou pelo que o homem acabou por cair ensanguentado.

Os duelos no Oeste eram diferentes. Ali exibia-se, além da têmpera do indivíduo, a sua habilidade no manejo da arma e, naturalmente, tal como nos outros duelos, a pontaria. Apenas no Oeste não se permitia apontar, não porque fosse proibido, mas simplesmente porque afinar a pontaria era perder um tempo precioso que o inimigo aproveitava para disparar sem necessidade de levantar a mão e estender o braço.

Havia várias modalidades de duelos, mas as que eram mais frequentes eram a dos pistoleiros que se enfrentam com as armas nos coldres dispostos a adiantar-se ao inimigo e os que.se procuram pelas ruas com as armas prontas a disparar, até que se encontram; neste tipo de duelo era, inclusivamente, permitido disparar pelas costas.

Beatriz esperou ver aparecer mais três homens na outra extremidade da rua, mas já começava a ver as costas dos primeiros sem que os outros tivessem aparecido.

Voltou a cabeça para olhar o lugar onde os primeiros haviam surgido e julgou distinguir ao longe, ainda na pradaria, um ponto fácil de confundir com um cavaleiro. Deixou de o olhar, mas quando voltou os olhos para lá novamente verificou que a sua suposição era exata. Os três homens armados já haviam desaparecido deixando a rua solitária e, atrás de si, haviam deixado um rasto de inquietação, de tragédia, de morte.

Beatriz teria gostado de perguntar por que lutavam, que havia acontecido, mas, naturalmente, a não ser que fosse incomodar os seus vizinhos, que talvez fossem os donos do hotel, não o podia perguntar a mais ninguém.

O cão solitário já estava mais perto; agora farejava junto da porta do talho, aproximando-se pouco a pouco da entrada. Do interior surgiu um objeto que lhe bateu em cheio no focinho é o animal afastou-se correndo e ganindo para ir parar noutro canto e recomeçar a farejar.

Na rua, havia novamente uma solidão absoluta e um silêncio total. As sombras haviam mudado de lugar conforme o sol ia mudando de altura.

O cavaleiro já era visível. Quando Beatriz se voltou novamente para ele viu que tinha roupas negras, que o cavalo era negro e que os seus revólveres, as fivelas dos seus três cinturões e as esporas de prata refletiam o sol àquela distância.

Brilhava também a elegante sela de montar adornada de numerosas moedas de ouro e prata; o freio e as estrelas de aço ou prata da cilha despediam Igualmente luz. Olhou-a subjugada, como se presenciasse o movimento de uma serpente que repentinamente se tivesse erguido diante dela.

Aquele homem enchia-se de estranheza, de incógnitas, de inquietação e de sonhos.

A sua personalidade, a julgar apenas pelo seu rosto maduro, bronzeado e muito viril, era vincadíssima, mas era completada pelo negrume do seu fato, pelo esmero que punha na sua pessoa e no seu cavalo que, indubitavelmente estimava, segundo o carácter dos homens do Oeste, tanto como a sua própria pessoa.

Até aos seus ouvidos chegou o silvo de uma desagradável melodia que ela tinha ouvido cantar em certa ocasião na Virgínia. Recordava uma quadra da letra que dizia:

Se, por minha morte

 chorasses por mim,

bendiria a sorte

 de morrer por ti.

 

Aqueles lábios sabiam dar-lhe a entoação exata; a música capaz de fazer sentir o amor, o desejo fervente de amar. Teriam atuado de igual modo num coração feminino mesmo carecendo de letra.

Viu-o passar sob a sua janela e parar o cavalo junto da agência funerária. Desmontou agilmente, passando a perna sobre o pescoço do animal deixando-se cair no chão sem levantar um só grão de pó. Depois pegou nas rédeas e obrigou o cavalo a entrar numa estreita ruela. Logo voltou a aparecer.

Beatriz compreendeu então tudo. Compreendeu vendo-o ocultar o cavalo e depois porque o viu «sacar» os revólveres lentamente e voltar a colocá-los nos coldres. E aquela melodia que se havia extinguido nos seus lábios que estavam agora apertados um contra o outro, vinha corroborar as suas suspeitas e a este indício outros se juntaram.

«Onde há uma mulher, aí estou eu... e onde eu estou, está o amor e a morte.»

Aquelas tinham sido as palavras que Novack havia pronunciado e a tinham enchido de perplexidade. Era um dos indícios de que Roger Novack era o adversário daqueles três homens. Parecia que havia escondido o seu cavalo para que não fosse ferido por alguma bala perdida e o facto de ter ajeitado os revólveres era sumamente significativo assim como o facto de estar parado, imóvel, no meio da rua, com as mãos enluvadas caídas tocando os coldres.

Decorreram alguns minutos durante os quais o homem continuou imóvel, aguentando estoicamente o banho de fogo; era semelhante a uma estátua de mármore negro. Depois deu meia-volta e, muito lentamente, andando nas pontas dos pés, retrocedeu alguns passos. Ia ereto e tranquilo.

Beatriz não pôde ver-lhe o rosto porque as abas do chapéu negro a impediam, mas adivinhou-o sereno. Apenas os seus olhos negros, como tudo o que lhe pertencia, brilhariam de maneira inquieta, ameaçadora. Parecia tranquilo, possuidor de uns nervos de aço ou então carecia de nervos.

Continuou no meio da rua, outra vez imóvel embora de vez em quando rodasse a cabeça para se certificar de que os seus inimigos não vinham pelo lado contrário. Caminhou novamente alguns passos e parou em frente da agência funerária, como se ela constituísse uma alegoria.

Por fim apareceu Archibald Carr. Vinha só, caminhando muito lentamente como se os pés lhe pesassem, arrastando a terra e deixando atrás de si uma espessa nuvem de pó. Caminhava com a mão na coronha do seu revólver que, certamente, não utilizava por estar a uma distância excessiva.

Roger não moveu nem um músculo do corpo; deixou tranquilamente que o seu inimigo se aproximasse apesar de levar a coronha do revólver já na mão. Archibald parou a uns escassos quinze metros dele e ficou parado no meio do pó que se enovelou em torno do seu corpo como as chamas de uma fogueira.

— Pensava que não respondesses ao desafio. Roger Novack — disse subitamente.

— Quis poupar trabalho ao coveiro; por isso te esperei aqui — respondeu Roger com uma voz que pareceu sua, mas demonstrava a coragem do seu dono.

Beatriz procurou com o olhar os companheiros de Archibald. Por um momento pensou que o tinham deixado só, mas depois compreendeu que pretendiam preparar uma armadilha ao homem vestido de negro.

Roger estava muito perto dela. Podia avisá-lo com um grito, dizer-lhe que havia mais dois homens dispostos a matá-lo. Mas não o fez, continuou silenciosa, apoiada no peitoril da janela, testemunha muda de um acontecimento que a atraia de uma forma mórbida, mas que, ao mesmo tempo, a aterrorizava.

Decorreram ainda alguns segundos durante os quais os dois homens se estudaram olhando-se fixamente sem pestanejarem apesar de o calor lhes secar os olhos. Pestanejar, podia significar a morte.

O silêncio havia-se tornado mais intenso. E os companheiros de Archibald não apareciam. De súbito, o rapaz da camisa vermelho moveu-se. Fê-lo para tirar a coronha do revólver e levantar o cano para apontar contra o seu inimigo.

Roger não se moveu ou pelo menos foi essa a impressão que Beatriz teve. Mas, nas suas duas mãos enluvadas, haviam aparecido dois revólveres brancos que imediatamente cuspiram fogo. Foram relâmpagos cor de laranja-pálido, debilitados pelo brilho deslumbrante do sol.

Beatriz foi incapaz de ver o que sucedeu depois, apesar de permanecer com os olhos muito abertos.

Roger voltou-se como se alguém o tivesse empurrado e os seus revólveres voltaram a entrar em ação. Archibald caiu de bruços sobre o pó soltando o revólver e retorcendo-se até ficar imóvel, já morto. A sua queda seguiu-se a de outro homem, um dos que o tinham acompanhado e se havia colocado atrás de Roger, meio oculto numa esquina.

Apareceu com os braços abertos, deixando cair o pesado «Colt» que empunhava; deu vários passos antes de cair sobre o passeio onde feriu violentamente a fronte ficando imóvel depois, de cara para cima. A este seguiu-se o terceiro.

Apareceu entre alguns fardos de feno que estavam à porta de um armazém e entre os quais havia permanecido escondido. Na fronte tinha um pequeno orifício negro onde começava a aparecer uma espessa gota de sangue. Também abriu os braços antes de cair de costas.

Roger Novack guardou as armas com pasmosa tranquilidade, olhou para os seus três inimigos mortos, soltou um silvo agudo e, segundos depois, montava a cavalo afastando-se.

De súbito deteve o cavalo, fê-lo retroceder e parou sob a janela da mulher que ainda não ousava acreditar no que os seus olhos viam. Não havia visto os companheiros de Archibald quando se ocultavam e, portanto, julgaria que Roger muito menos os teria visto; contudo, não só os havia visto, mas também se expusera tranquilamente a que o matassem pelas costas, antecipando-se depois à ação deles quando decidiram actuar.

Novack despojou-se do seu chapéu negro e levantou a cabeça para olhar a mulher. Saudou-a galantemente com um sorriso nos lábios e disse:

— Obrigado.

Beatriz pensou que troçava dela. Mas o seu espante pôde mais e perguntou:

— Como soube que eu estava aqui?

— Vi-a.

— COMO?

— Não só a vi, mas ouvi-a quando me avisou que ia disparar contra mim pelas costas...

— Mas eu...

Ele voltou a inclinar a cabeça, pôs o chapéu e afastou-se.

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