Beatriz Block libertou-se do ébrio que tentava abraçá-la e afastou-se do balcão. Parou, sem dar por isso e sem qualquer intenção definida, junto de uma mesa onde se jogava póquer.
As paradas eram baixas e por isso, sobre a mesa, havia pouco dinheiro embora, à volta dela, houvesse muitos jogadores. Dos feitos nunca passavam de três a um mesmo jogo e nunca faziam «blufs».
Um dos jogadores — que perdia desde que Beatriz observava o jogo — quis fazê-la afastar-se usando maus modos, mas a rapariga continuou ali recalcitrantemente. Os ânimos sossegaram e tudo voltou à normalidade.
Afastou-se por fim aborrecida, por entre as cadeiras, olhando provocantemente para os clientes do Starling Night Club que, na realidade, não prestavam demasiada atenção à sua formosura. Agitou preguiçosamente o ar com o seu leque de plumas e voltou para junto do balcão, aproveitando o facto de o ébrio lá não estar.
— Uísque, Joe — pediu.
— Aborreces-te?
— Bah!
Joe serviu o uísque e olhou-a interrogativamente. Não tinha muito trabalho e podia conversar um pouco com a rapariga.
— Tens uma cara de tédio, pequena!
— Estou farta da Carolina e do Leste. Vou para o Oeste.
Joe soltou uma gargalhada que interrompeu bruscamente para apanhar um copo de sobre o balcão e o colocar no lava-louças. Depois voltou a olhá-la.
— Que vais fazer para lá?
— Pelo menos, há mais homens... e homens a sério, não como os que se veem por aqui.
— Não estou nesse grupo, eh?
— Sei lá! Vejo-te sempre escondido atrás desse balcão.
Joe mudou de assunto e voltou, uma vez que a conversa não lhe interessava, ao tema anterior.
— Que esperas encontrar?
— Já te disse: homens. Embora talvez tu não conheças essa palavra. Naturalmente nunca viste nenhum.
— O que ali encontrarás serão selvagens.
— Gosto dos homens selvagens — murmurou ela roucamente e cerrando os olhos. — Uma vez conheci um.
—Para que parte do Oeste vais? Tens preferência por alguma?
Ela escolheu os ombros graciosos e nus.
— Pela Califórnia, talvez. É onde há mais homens.
— E mais chineses. Calcula-se que há pelo menos cinquenta mil.
— Eu não quero chineses — respondeu ela enrugando o nariz.
Joe ofereceu-lhe um cigarro que ela levou aos lábios pintados e acendeu-o num fósforo que o empregado do bar acendeu.
— Há franceses, russos, espanhóis, portugueses... Creio que por ali não se perdeu um só inglês.
— E Sutter?
— Eu sei bem quem é Sutter! Não quererás insinuar que vais por causa dele?
— Não vou por nenhum homem em especial... Não compreendes que me aborreço aqui? Observa tu próprio o panorama: duzentos homens e cinco raparigas. Que acontece? O mesmo que se não houvesse ninguém. Rose aborrece-se naquele canto ouvindo tolices daquele velho que entrou porque perdeu a chave de casa e sua mulher foi levar umas flores não sei aonde. E Clio... Bem, Clio contenta-se com qualquer coisa.
Beatriz olhou-se no espelho para estudar a elegância do gesto com que tirava o cigarro dos lábios, lançou uma baforada de fumo que seguiu com o olhar até ela se dissipar na atmosfera, ou melhor, até ela se confundir com o fumo que enchia o salão, e prosseguiu:
— Repara nessa mesa onde jogam póquer. Que dinheiro há sobre ela? Cinquenta dólares? Bah!... No Oeste jogam-se maços de notas e bolsas de ouro que rebentam e espalham o seu conteúdo sobre a mesa, saltando sobre as mãos dos jogadores que o afastam com o baralho de cartas ou com as costas das próprias mãos. Aqui, se colocas sobre a mesa um par de pepitas esses tipos atiram as cadeiras ao chão para se apoderarem delas e fugirem.
— Parece-me que imaginas um Oeste muito diferente da realidade — respondeu Joe, que não fazia a menor ideia do que acontecia na outra parte dos Estados Unidos.
— Eu sei que é assim porque me disseram e o pressinto. Não negarás que é muito diferente desta Colúmbia pestilenta. Aqui, sais à rua e encontras-te em frente de um edifício pequeno, achatado que cheira mal. Lá, sais de qualquer sítio e encontras pela frente a pradaria eterna, perfumada, doce... Tenho de ir para o Oeste ou morrerei com o sangue envenenado.
Joe ia dizer-lhe que o tinha já envenenado, mas disse outra coisa muito diferente, outra coisa que lhe ocorreu num golpe de engenho:
— Tens a certeza de que ganharás muito mais dinheiro que aqui?
— Tenho.
— Aviso-te de que aquela gente não conhece lei nem lógica. Possivelmente recebem o que lhes dás e não te pagam.
— Tenho mãos, rapaz, e não só para acariciar; também sabem arranhar.
— Arranha-los e receberás o conteúdo do tambor de um revólver.
— Não... Não são assim. No Oeste os homens gozam de melhor fama no que se refere a cavalheirismo. Lá, a mulher é tão respeitada como um cavalo e o simples ladrão de cavalos é enforcado. A lei é a mesma para raptores de mulheres, ladrões de cavalos e assassinos. Uma mulher é ali feliz e sente-se muito mais forte.
Voltou a olhar-se no espelho através das numerosas garrafas que havia nas estantes. Viu uma mulher que rondava os trinta anos — na verdade apenas tinha vinte e cinco e aparentava trinta e dois —. Olhos grandes, cercados de olheiras profundas que ela acentuava com lápis azul; pestanas longas, pintadas de negro e arqueadas de modo que quase chegavam às sobrancelhas depiladas e pintadas também. O nariz pequeno, arrebitado, muito empoado e com numerosas rugas que lhe davam graça e simpatia. Tinha uma boca pequena, de lábios carnudos, vermelhos e pintados com muita arte. Pintura na fronte, nas faces e no queixo. Pintura ou pé no pescoço, nas unhas das mãos, cuidadas com esmero. Levou novamente o cigarro aos lábios, chupou-o e tirou-o da boca com grande cuidado para não estragar a pintura dos lábios. Sorriu.
— Talvez eu arranje um noivo.
— Noivo? Para quê?
— Para me casar.
— Mas, tu queres casar?
— Porque não, se de for rico?
— Hum.
— Que quer dizer esse hum?
— Que a garganta me pica.
— Que queres dizer?
— Duvido, simplesmente duvido... embora possivelmente só te aparecesse o chefe de uma tribo índia. O chefe dos «Cabeças Chatas»; dizem que tem um tesouro fabuloso. Naturalmente...
— Não te podias lembrar de outro nome? Nem ao menos os «sioux»? Desde quando, para se ir para a Califórnia é preciso passar por Idaho? Se tivesses falado nos «creeks», nos «semínolas», nos «osages», nos «apaches», nos «moquis», nos «chemegwavas», nos... Que sei eu?
— Pelo que vejo conheces muito o território.
— Estudei-o de ponta a ponta.
—De modo que casarás com um «osage»?
— Vai para o diabo! Mas falo seriamente. Na próxima semana já não me verás aqui.
— Para a próxima semana faltam dois dias apenas.
— Isso mesmo. Depois de amanhã... — agitou os braços no ar como se voasse, exibindo umas axilas acabadas de rapar e acrescentou: — Já não estarei aqui. Já não suporto mais este cheiro.
— Pois os de lá cheiram pior.
— Pelo menos cheiram a homens.
Beatriz afastou-se do balcão e, abanando-se com o leque de plumas, aproximou-se de um sujeito que tinha os dedos polegares metidos nos bolsos do seu colete novo, branco, adornado com três cadeias de prata, duas delas, naturalmente, desnecessárias. Exibia um grosso bigode de pontas tesas voltadas para cima como as hastes de um touro. O fato ficava-lhe um pouco justo, mas estava, sem dúvida, a seu gosto pois era então moda; estava vestido de castanho com riscos que formavam grandes quadrados. Usava umas polainas pretas e sapatos de verniz.
— Olá — disse Beatriz, passando-lhe o leque pelo rosto.
O janota tirou uma das mãos do colete receando que a carícia das plumas tivesse estragado a respeitável aparência do seu bigode e retorceu-o com sumo cuidado.
— Olá.
— Tenho sede.
— Bebe.
— Convidas-me?
— Não.
— Ena!
Voltou a vaguear pelo estabelecimento. Clio parecia estar livre e tinha cara de aborrecida. Encontraram-se as duas. Uma bocejando, a outra com vontade de bocejar e acabando por imitar a primeira, contagiada.
— Aborreço-me.
— Cala-te, pequena. Estou farta!
— E é sábado...
— Na Oeste, os sábados são os dias em que há mais animação. Por vezes é até preferível não sair de casa.
— Continuas a pensar em ir para o Oeste?
— Essa ideia é uma obsessão para mim.
— Ë muito longe.
— São os mesmos de sempre. Por um uísque que pagam julgam-se com direito a tudo.
Clio foi-se embora e Beatriz ficou sozinha. Percorreu toda a sala com o olhar para se certificar de que era melhor ir-se embora.
— O Leste é uma...
Atirou o leque ao chão raivosamente e dirigiu-se para a parta da saída.
— Já te vais? — perguntou Joe do balcão.
— Que queres que faça?
— A diversão começará daqui a pouco.
— Sim, como nos outros sábados... em que não ganho nem para cigarros.
Decididamente, sem se despedir, saiu para a rua. Uma rua estreita. Em frente do estabelecimento havia quadra malcheirosa; junto da quadra um banco e junto do banco uma leitaria. No outro lado havia uma escola silenciosa e escura, triste. Um candeeiro de petróleo de vinte e cinco em vinte e cinco metros iluminava um pedaço de parede, aquele onde estava pendurado, deixando o resto da rua, quer dizer, a rua inteira, na obscuridade.
Caminhou até ao hotel, levantando a saia vaporosa e comprida para a não sujar com o pé e os excrementos que, apesar da «boa» vontade dos empregados da câmara de Colúmbia, atapetavam a rua.
Dois ébrios disseram-lhe coisas incoerentes a que ela respondeu da maneira mais soez que lhe ocorreu. Perto dela passou um carro ocupado por uma mulher e um homem aos quais não conseguiu ver os rostos, mas ouvir a conversa.
— A ópera já começou! — dizia ela.
—E que tem isso, mulher?
— Não gosto de chegar atrasada!
— Mas se não a compreendes...
— Ninguém a compreende e todos vão.
O cocheiro fustigava com a mão esquerda o animal que puxava o carro e pretendia ao mesmo tempo acender a luz com a mão direita.
De um bar afastado chegava até ela o canto de dois mexicanos que possuíam uma voz semelhante às dos grilos e como acompanhamento, em vez de violas, usavam copos e garrafas fazendo um barulho que afogava a melodia desgarrada que saia com dificuldade das suas gargantas roucas pelo álcool.
Subiu os degraus que davam acesso ao alpendre do hotel e voltou as costas à rua com um gesto brusco. Um gesto que levava consigo todo o aborrecimento e toda a antipatia que o Leste lhe produzia.
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