sexta-feira, 3 de outubro de 2014

PAS380. Uma longa declaração ao pôr do Sol

A jovem e o rapaz sentaram-se num rochedo e ficaram silenciosos a contemplar a paisagem árida e solitária que, ao tingir-se com os tons violáceos do pôr-do-sol, adquiria matizes estranhos e fascinantes. Nenhum dos dois parecia decidir-se a falar. Estavam ambos embrenhados em profundos pensamentos.
Foi Devis a primeira a romper o silêncio para dizer:
— Quando isto tudo acabar... se acabar bem... depois voltarás para o teu lugar no rancho e... sem lar e carinhos paternais que te atraíam...
Ele não a deixou terminar:
— Sentirias que eu não voltasse aqui?
— Claro que sim. Vivemos solitárias, sem amigos... conhecemo-nos desde pequenos e brincámos juntos. Foste extraordinário para connosco e sentimo-nos muito gratas. Por que não havíamos de sentir a tua falta?
— Eu também sentiria muito a falta de ti — disse ele — e não seria fácil esquecer-te. Mas por que não haveria de voltar?
— Não sei... as tuas raízes aqui secaram.
— Não poderão nascer outras novas?
-- Onde e como? O deserto não é propício para…
— E apesar disso, costumam nascer nele flores, embora exóticas e escassas.
— Não te entendo... julgo que aqui...
— Sim, Devis. Se me deixares falar, quero dizer-te urna coisa que gostaria te interessasse.
— Espero que seja assim. Tu és um rapaz que nunca disse asneiras. Cresceste sério e grave, sucedeu-te o mesmo que a mim; a aridez da paisagem não nos permitiu muitas alegrias e, desde meninos, fomos um pouco velhos, porque a nossa infância pouco teve de agradável.
— Assim foi, com efeito e, talvez tenha sido um bem para os dois, porque nos fez conhecer a vida, antes do tempo e nos endureceu para o bom e para o mau.
— Bom, mas isso... suponho nada ter com o que me ias dizer a respeito da tua possível visita a estes lugares.
— Tem e tu vais compreender porquê.
«Queria dizer-te, que tu fazes parte das escassas recordações agradáveis que daqui levo, pois foste uma das poucas amizades de infância que tive. Os teus pais eram os nossos vizinhos mais próximos e isso permitiu-nos um maior contacto e um melhor modo de nos compreender, dentro do pouco que nos poderíamos compreender, tão novos éramos.
«Tínhamos os mesmos gostos, vontades idênticas gostávamos de dar de comer aos passarinhos, sem destruir os seus ninhos como as outras crianças e até uma vez chorámos ao descobrir um coelho com uma pata destroçada por uma armadilha e curámo-lo com carinho, conseguindo que se restabelecesse.
«Isto são coisas que jamais se esquecem. Depois, tive que começar a trabalhar com o meu pai pelos povoados, estando bastante tempo afastado e isto diminuiu um pouco o nosso contacto. Mais tarde tive que mudar de vida, entrei para o rancho e como este fica a algumas milhas daqui, separou-nos ainda mais.
«Daí, a evolução lógica dos dois. Eu deixei de ser uma criança e tornei-me um homem e tu transformaste-te não sei como, pois da última vez que te vi para agora, há um abismo. Tudo isto operou pelo menos a mim, uma revolução íntima, agora que estabelecemos contacto de novo, embora numas tristes condições. Tu, por teres ficado órfã, sem mais ajuda que a da tua mãe e eu, por tudo quanto me sucedeu, embora corno homem, tenha mais facilidades do que tu em decidir o meu futuro.
«Tudo isto vem para justificar o que te vou dizer. Til vais pensar e se te interessar, respondes-me.
«As recordações de infância, o afeto juvenil, tornou-se de repente em algo mais forte, talvez porque também acompanhasse a evolução dos nossos corpos, o mais próprio da nossa idade.
«Talvez não tivesse reparado nisso tão cedo se não surgisse esse canalha do capataz. Senti como que uma punhalada quando manifestaste o temor que ele te produzia e quando me deu a entender as pretensões, nada sérias, que tinha quanto a ti. Quando compreendi que o odiavas, que ninguém ocupava um lugar lio teu peito e sabia seres urna mulher ideal para um homem como eu, acalentei esse carinho que se revelara de repente em mim e decidi fazer-to saber na ocasião mais propícia para isso.
«Tu estás na idade de encontrar um homem que te queira como mereces e necessitas, porque esta vida que levas é indigna de ti e eu posso ser esse homem, se sentes por mim o mesmo que eu sinto por ti.
«Se acreditas que a amizade de ontem se pode converter no amor de hoje e de amanhã, quando isso se resolver, derrubamos essa cabana miserável onde vivem, construo outra mais bonita, mais ampla e mais alegre e casamo-nos. Ganho um ordenado modesto, mas bastante para os três, com o pouco que a horta nos ajude e o que caçarmos com as armadilhas e alguns animais domésticos que compraremos. Eu virei passar contigo os sábados e os domingos e seremos felizes. Talvez um dia possa deixar o rancho e ficar aqui para alargar os nossos domínios, semear um bom pedaço de terra e nunca mais te deixar. A cidade e as diversões dos meus companheiros não me atraem, mas sim a paz, o sossego e um amor sereno que me compense da minha infância miserável e me faça feliz. E agora já sabes os meus sentimentos e desejos. Não te forço, não quero que aceites por gratidão, porque o amor deve ser superior a isso tudo. Aceites-me ou não, terás sempre em mim o defensor de que necessitas, porque o mereces e no dia em que Stan deixe de constituir uma ameaça para ti, és livre para escolher o homem que te faça feliz, como mereces.
Devis não o tinha interrompido um só momento, com a cabeça inclinada sobre o peito, sem separar a mão da de Sterling, que a tinha agarrado enquanto falava e escutava-o como se estivesse ausente daquele lugar e o que o jovem dizia com tanta paixão, não fosse com ela.
Sterling emudeceu e procurou os olhos da rapariga, mas esta continuava imóvel.
O rapaz obrigou-a a levantar a cabeça e, agarrando-a pelo queixo. Foi então que descobriu que os bonitos olhos da rapariga estavam marejados de lágrimas ardentes, que queimavam a sua pele morena.
Estremecendo, perguntou:
— Que te aconteceu, Devis? Por que choras?
Eia murmurou, com a voz estrangulada:
— Choro de felicidade, Sterling, porque julguei que nunca ouviria nada como o que acabas de me dizer. Sempre me julguei condenada a viver aqui como uma fera perdida, sem que ninguém reparasse em mim, nem me dissesse coisas lindas, que tão fundo chegassem ao meu coração e muito menos ditas por um homem como tu, a quem eu sempre quis duma maneira estranha e a quem sempre recordava, não sei se por pressentimento, se por nunca se afastar da minha imaginação.
«E agora ao ouvir dizer-te essas coisas, senti algo que não posso explicar e o meu coração parecia estalar. Por isso brotaram lágrimas dos meus olhos, porque a não desabafar assim, creio que teria morrido de felicidade.
«Ofereces-me um amor que não julgo merecer e eu aceito-o e juro-te que saberei corresponder e que jamais te arrependerás de me teres escolhido para esposa. Aceito o que me propões, não por gratidão, mas por algo mais poderoso e para onde quer que vás, ter-me-ás ao teu lado. Nada mais quero que um pedaço de pão, paz e carinho; tu ofereces-me isso e eu quero corresponder... Posso dizer-te mais?
Ele, cheio de alegria, atraiu-a para si e agarrando na sua cabeça, beijou-a suavemente. Naquele momento a mãe de Devis assomava à porta da cabana e ao surpreender a cena, com um doce sorriso, voltou para o interior, para não perturbar a ternura daquele momento.
(Coleção Kansas, nº16)

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