segunda-feira, 13 de setembro de 2021

BIS020.03 Um amigo pouco amável

 3. Um amigo pouco amável


Bernard estava cada vez pior. Duas coisas fundamentais davam lugar ao seu mau comportamento. Uma, ter notado que subira em consideração e estima por parte do pai; outra, verificar que Grunder tudo suportava sem contar ao pai. Longe de se mostrar grato e humilde, cada vez se orgulhava mais de humilhar o «intruso». 

Até que um dia o inevitável encontro teve lugar. A paciência dos homens tem limites. E então quando essa paciência ultrapassa o normal dos homens, o mais pequeno facto pode dar ocasião a que ela se esgote. 

Foi uma manhã de domingo. Os vaqueiros dispunham-se a passar o dia numa povoação relativamente próxima do rancho «Branco». Iam alegres, folgazões, falando dos amores que um ou outro tinha e apostando sobre quem mais resistia a beber «Whisky» sem se embriagar. 

Marcus também ia no meio deles, dizendo graças e indo contente. Tinha conseguido a estima dos seus companheiros, que o tratavam bem e já sem mofas nem gargalhadas de troça. Para ele, tudo aquilo parecia totalmente novo e até certo ponto inexplicável. Pela primeira vez, via-se considerado como um homem normal, um homem que ganha o seu pão trabalhando e que merecia a consideração de uns e outros. Ao portão encontraram Grunder, e Marcus, alegre, dirigiu-se-lhe nestes termos: 

— Acompanhe-nos, capataz; sinta-se rapaz humilde. 

— Em muitas coisas poderão ganhar-me; nessa é que não. Vou com vocês. 

Não era frequente que Jerry se divertisse, mas fazia-o de quando em quando e naquela manhã dispôs-se a ir com eles. Talvez curiosidade em observar a psicologia do vaqueiro amigo de Bernard... 

— A caminho! — exclamou Mike, o lutador adversário de Joe no encontro que tão más consequências podia ter tido. 

Retomaram a marcha. 

— A caminho! — responderam todos. 

Próximo dum riacho que circulava o rancho «Branco», encontrava-se Bernard, a fumar. Joe, generoso, incapaz de rancores, saudou-o otimista: 

— Junte-se à malta, sr. Batterby! Vamos ver as moças à povoação. Far-lhe-á bem! 

Antipático e olhando, altivamente o vaqueiro. 

— Como te atreves a falar-me assim? Não vês a distância que nos separa um do outro? 

— Perdão, eu... 

— Tu és um... elemento dessa malta, como lhe chamaste, e eu sou Bernard Batterby. 

Grunder que tinha parado o cavalo à retaguarda do grupo, fê-lo andar para a frente até se colocar diante de todos, desmontou e disse calmamente, enquanto as suas pupilas escuras atravessavam as de Bernard: 

— Não estou disposto a permitir que, na minha presença, se ofenda seja quem for. Esta malta, como Joe a denominou em tom zombeteiro, é um grupo de verdadeiros homens ao qual pertenço. Todos e cada um de nós valemos mais do que tu. Convidaram-te concedendo-te uma honra que não mereces. Toma nota disso, assim como de que não nos fazes falta. 

Todos ficaram estupefactos. O próprio Bernard pensou não ter ouvido bem. O «intruso» atrevera-se a falar-lhe naqueles termos, em presença dos «cow-boys»? Mastigando as palavras, rugiu: 

—És um indivíduo atrevido e indesejável! Não terás mais vontade de te dirigires a mim nesses termos: E com rapidez de mestre levou a mão ao revólver, chegando a empunhá-lo. 

Jerry deitou-se-lhe em cima e agarrou-lhe o braço direito. 

—Larga a arma! 

— Não! Maldito sejas! 

Mas a força do capataz era muito superior ao que havia suposto o filho Batterby. Julgou que os ossos se lhe partiam todos. Gritou, sentindo uma dor espantosa. Abriu os dedos e o revólver caiu na erva. As caras dos «cow-boys» mostraram enorme satisfação. Marcus nem se pôde conter e exclamou: 

—É um homem admirável! 

Batterby deitou-lhe um olhar carregado de ódio, mas o vaqueiro nem deu por isso. 

— Já vês — disse Grunder — é certo que estão proibidas as lutas entre o pessoal do rancho «Branco». Devia desfazer-te e conformei-me em impedir que mostrasses as tuas habilidades de pistoleiro. 

— Encobres o medo com essa máscara de paz —sibilou Bernard — Atemoriza-te a ideia de me enfrentar com o revólver na mão e por isso recorreste à força bruta. 

Jerry sorriu significativamente. De súbito, arrojou ao ar três moedas de prata e fez outros tantos tiros. As moedas furadas pelo chumbo, voltaram a subir quando já vinham a descer.  

— Já vês, insigne homem de armas, que não tenho nada de manso. Suponho que depois desta exibição não continuarás a pensar que eu tive medo de ti. 

Batterby, de olhos esbugalhados, ficara assombrado. 

Os vaqueiros romperam em gritos entusiásticos. Whitted exclamou, trémulo: 

— Maravilhoso! Simplesmente maravilhoso! Você é...

Foi interrompido por um soco de Bernard em plena boca, que o derrubou pesadamente. 

— Cobarde! — gritou Jerry. 

O agressor, despeitado, fingiu não ter ouvido o insulto e afastou-se a passo largo. Os vaqueiros bem tinham desejos de dar cabo dele..., mas Jerry não lhes dera ocasião para tal. Acudiram em auxílio de Marcus, que se esforçava por recobrar ânimo. 

— Vamos amigo! Tem que ser forte! 

Grunder com o seu próprio lenço, limpou o sangue, dos lábios que sangravam e ofereceu «Whisky»: 

— Beba um pouco, dá-lhe forças e desinfetará estas feridas. 

Marcus agradeceu e olhando em volta disse: 

— Obrigado a todos. São muito amáveis em se ocuparem de mim. 

— Isso já passou! — disse Mike, procurando tirar importância ao incidente. — Estas coisas estão na ordem do dia. 

— A verdade é que você tem um amigo pouco amável — disse Joe brincando. 

E Jerry assegurou: 

— Lamento ter sido eu o culpado disto. E você, conhecendo bem o Bernard, não devia tê-lo irritado com o que disse a meu favor. 

Com uma energia que impressionou favoravelmente todos quantos o ouviram, Marcus respondeu: 

— Voltaria a fazê-lo, sem hesitar! Fá-lo-ei sempre que surja ocasião! Tenho dito tão poucas vezes a verdade que... acho merecer a pena receber um soco a troco da satisfação que me enche sendo leal em certas ocasiões. 

Whitted continuou: 

— Desculpem-me. Fugiu-me a vontade que tinha de me divertir. Vão-se embora sem mim. 

— E sem mim também — disse Jerry. 

Enrugaram-se as caras. 

— Não está certo que nos deixem. Venham connosco. Ficaremos se vocês não vêm. 

—Nada disso, rapazes. É lógico que Marcus não sinta desejos de continuar. Feriram-lhe a boca e... creio que também o espírito. Quanto a mim, já compreenderam que tenho pressa em deixar as coisas assentes. Vão e procurem gozar o melhor possível. Ainda quiseram opor resistência, mas Jerry obrigou-os a seguir. Afastaram-se já sem aquela alegria que lhes invadia alma pouco antes. 

Quando ficaram sós, Marcus disse a Grunder: 

— Tenha cautela com Bernard. Você não sabe até que extremo ele o odeia. 

— Imagino. 

—É pior do que você calcula. Pensará você que falo agora assim pelo que me sucedeu há pouco. E de facto se não fosse esta agressão eu continuaria o mesmo caminho que me estava já traçado. Agora a coisa mudou. Já vê que sou sincero. Mas com a mesma sinceridade acrescento que você me parece um homem excecional e que merece todo o bem que existe no mundo. Obrigado. 

— Que pensa fazer agora? 

— Não sei. Uma pessoa digna afastar-se-ia imediatamente de Bernard e de tudo o que o rodeia; mas eu não sou uma pessoa digna. 

Jerry alegrou-se por ver que ia satisfazer a curiosidade que Whitted lhe inspirava. 

— Porque diz isso? 

— Faço justiça a mim próprio. Não sou amigo de Batterby, mas apenas criado, lacaio dele e de todos os que formam o seu grupo. 

O pobre vaqueiro continuou a confessar as sua, amarguras, mostrando como aprendera a ser cínico. Falou, falou até sentir a alma aliviada e nem sequer a dor que sentia nos lábios feridos o impediu de falar. Depois, acrescentou: 

— Seres como eu não têm direito, de existir; a morte deveria ser piedosa e levar-nos logo à nascença. Sou horrível por dentro e por fora, mas da minha fealdade de espírito têm mais culpa os meus semelhantes do que eu. Nunca me trataram com carinho. Sempre viram em mim um cão feio e esfomeado a quem todos acolhem com pedradas. 

— Gostaria de se emendar? 

— Acho impossível. 

— Mas... gostava? 

— Claro que sim! 

— Então, tente fazê-lo. Querer é poder. Esforce-se com a minha ajuda. 

— Com a sua ajuda?! 

— Desagrada-lhe? 

— Enche-me de orgulho, mas... 

— Não há objeções. Continuará no rancho «Branco»... a não ser que eu deixe de lhe pertencer. Mesmo neste caso, como não me faltará lugar onde me possa colocar, levá-lo-ei comigo. 

— Grunder!... É possível que depois de lhe ter dito como sou, depois de lhe ter confessado o meu cinismo e maldade, você... 

— Precisamente por isso... 

— Se eu fosse capaz de me emocionar, ficaria agora comovido como nunca..., mas creio que não sou. Nunca me sucedeu tal coisa. E..., apesar de tudo.., bom, deve ser terra que me caiu em cima, mas... os olhos escurecem e não consigo ver... 

Havia, com efeito, lágrimas naqueles olhos sem cor. Jerry não gostava de ver um homem assim emocionado e fazendo-se desentendido, mudou de tom ao dizer: 

— Logo falaremos mais neste assunto, tenho pressa. Até logo. 

Montou a cavalo e afastou-se. 

Bernard foi logo contar a seu pai o que havia sucedido, mas do modo que mais lhe convinha: referiu-se às troças de Joe, às faltas de respeito por parte dos vaqueiros e ao facto de Grunder os ter apoiado, ofendendo-o e obrigando-o a defender-se porque ele empunhara um revólver. 

Alan escutava-o sem dizer nada. E o hipócrita terminou a série de mentiras, exclamando algo trágico: 

— Já vês, pai, que eu tenho vindo a submeter-me à tua vontade, tenho feito por te agradar e farei tudo quanto quiseres para que possa ser um digno sucessor dos Batterby. Apenas te peço uma coisa: não quero ficar mais às ordens desse homem. Não posso suportá-lo. Sei que mé queres muito e precisamente por isso não hesito em te apresentar este dilema: Jerry ou eu! 

Imediatamente o rancheiro respondeu: 

— Jerry! 

— Pai! 

— Em primeiro lugar, não admito imposições; em segundo tenho motivos para saber quem és tu e quem á ele. 

A porta abriu-se naquele momento e Grunder apareceu no umbral: 

— Obrigado, padrinho. A verdade é que tenho pena de não corresponder a essa bondade sua dando-lhe uma má notícia que considero inevitável: o «cow-boy» Batterby deixou de fazer parte do pessoal do rancho. 

Voltaram-se os dois homens para ele. A expressão de Bernard era eloquente de ira e revolta. 

— Tenho sido condescendente em todos os aspetos, mas não o sou num caso destes. Ele sabe, porque eu lho disse, que estão proibidas as lutas e desordens entre os trabalhadores da fazenda. Pois apesar disso, atacou, à traição, o vaqueiro Marcus Whitted e provocou todos os outros. Como se fosse pouco, revoltou-se contra mim e desafiou-me ao revólver. Está despedido. Se você me autoriza, o despedido sou eu. ***

Bernard, frenético, crispou os punhos: 

— Mas... tu atreves-te? 

Alan interpôs-se, exclamando surdamente: 

— Estás despedido, Bernard. As ordens do capataz do rancho «Branco» cumprem-se sem demora: Considera-te despedido! 

Grunder retificou: 

— Claro que isto não é motivo para que, se o padrinho quiser, ele não possa arranjar outro lugar. Ainda há pouco tempo lhe sugeri isso mesmo. A minha atitude limita-se a não o querer sob o meu mando. 

Fez uma breve saudação a Alan e saiu. Bernard viu nisto uma boa ocasião para se livrar dos trabalhos pesados que o repugnavam e logo mudou de tom ao falar com tristeza na voz: 

— Vês, pai: até Jerry te indica o que tens a fazer comigo. Está satisfeito o teu desejo de me veres trabalhar como qualquer vaqueiro. Eu, obediente, fiz o impossível para te agradar. À exceção desta falta, da qual estou já arrependido, sempre me portei bem. Não me afastes do teu lado... a não ser que o queiras fazer para sempre. Quero ser útil, mas noutro lugar, onde não seja obrigado a empregar a força. 

Continuou a falar meigamente ao coração do velho rancheiro, esforçando-se por o emocionar e acabou por o convencer: 

— Embora não mereças, quero ver até que ponto tu és capaz de ser alguém. Serás o ajudante de Stanley Kasbert, mas garanto-te que se desta vez não cumprires tudo se acabará entre nós. 


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