domingo, 12 de setembro de 2021

BIS020.02 A última oportunidade

 2. A última oportunidade

Bernard só muito tarde conseguiu conciliar o sono. Aos repetidos acessos de cólera sucedeu um largo período de reflexões. Analisando a situação detidamente teve de reconhecer que se não usasse de cautela nada conseguiria. 

Pensou primeiro em regressar a San Diego, voltando as costas àquilo tudo, mas sentia-se incapaz de se fazer valer por si próprio e por outro lado arrepiava-se de ter que se apresentar aos seus amigos para pedir um emprego, como qualquer empregadito vulgar. Não, isso não! Antes a morte! 

Supunha-se, portanto, dar o braço a torcer, convencer o velho de que estava arrependido e esperar o momento propício para conseguir o dinheiro que precisava. Se não fosse Grunder! Só a ideia de ter que suportar o capataz deixava-lhe novamente os nervos descontrolados e sem norte. 

— Procurarei vencer, custe o que custar — disse para consigo, como quem tem de fazer o maior dos sacrifícios. 

Finalmente conseguiu adormecer. Na manhã seguinte, procurou o pai que se encontrava deitado. Este franziu o sobrolho. 

— O que queres? 

— Pedir-te perdão. 

A sua atitude era humilde e a sua voz parecia sincera. Alan olhou-o fixamente e ele acrescentou sem se desconsertar, de cabeça baixa: 

— Não podes imaginar quanto lamento a minha atitude. Foram os nervos, os malditos nervos... ouvi-te dizer já muitas vezes que quando eras novo também não conseguias dominar-te. Procurarei fazê-lo, de futuro. Quando fiquei só, à noite, pensei muito e compreendi que não devo ser assim impulsivo, quando no Mundo sou bom para ti. Mantenho o que disse acerca do bom futuro que me espera na cidade, mas... tu não queres acreditar-me. Tantas vezes fracassei!... Bem, não venho repetir o que já te disse, venho pôr-me às tuas ordens. Queres que fique aqui? Pois aqui ficarei. Desejas que trabalhe? Pois trabalharei! Isso não desonra ninguém. A única coisa que interessa é reconquistar o teu carinho. 

Terminado o discurso, rico em emoções, inclinou mais a cabeça. O rancheiro não se deixou enganar; mas... a esperança voltou a luzir de novo, embora sem força. Deixou passar uns instantes. 

— Pensaste bem no que acabas de me dizer? 

— Além de o ter pensado, sinto-o no coração, e isso é que importa. Não fazes ideia de como me doi que tu sofreste por minha culpa. Receei que não quisesses ver-me mais. Por isso ao saber que estavas disposto a atender-me, ainda mais fundo sinto os meus remorsos. 

— Não continues. São factos e não palavras o que eu necessito. Espera-me lá fora. Vou vestir-me, e, entretanto, vou pensar. 

O rapaz obedeceu. Alan saiu do leito. Notou ao vestir-se que as mãos lhe tremiam ligeiramente. O que acabava de ouvir parecia-lhe demasiado bonito para ser verdadeiro; mas... também... não queria fechar-lhe as portas a uma possível emenda. Amava o seu filho e se chegasse a vê-lo encarreirado no bom caminho considerava-se o homem mais feliz do mundo. Quando saiu, Bernard, que passeava lentamente pelo alpendre, olhou-o e parou: 

— Então? 

— Vou dar-te a última oportunidade. Trabalharás como vaqueiro às ordens de Kerry. 

— Às ordens de Jerry? 

—Pois quê? 

Mais humildemente, Bernard acrescentou: 

— Pai, isso é demasiado duro; não me castigues assim. No rancho «Branco» há outros trabalhos úteis que eu poderia realizar... 

— Não admito objeções. Serás um vaqueiro ou não ficarás mais a meu lado. Trata-se de te tirar esse maldito orgulho e de, como te disse ontem, aprenderes o que é preciso. Jerry ensinar-te-á aquilo que não souberes. É a minha última palavra. 

Bernard, engolindo a custo a saliva, replicou: 

— Está bem, aceito a tua vontade e... peço a Deus que me dê forças para suportar esse homem. 

O semblante do ancião animou-se. Estava quase seguro de que o filho se revelaria ao ouvi-lo e afinal a sua decisão enchia-o duma alegria inefável. 

— Bem, rapaz, bem… — disse, pondo-lhe um braço sobre os ombros —. Acabas de tomar uma atitude nobre. Falarei com Jerry. Ele é bom, embora tu não queiras crer, e poderão chegar a ser bons companheiros. 

Bernard não respondeu. 

— Vamos tomar o pequeno-almoço — acrescentou o rancheiro —. Tenho bastante apetite. Parece que isto foi um remédio que produziu efeitos rápidos e milagrosos. 

Sentaram-se à mesa e mal tinham começado a comer, apareceu Whitted que, agradavelmente surpreendido, exclamou: 

— Bons dias, senhores! Que lindo e emocionante quadro! Pai e filho na intimidade e diante duns apetitosos e ricos pratos, cujo cheiro até alimenta! 

—Pode sentar-se, se lhe agrada — ofereceu o rancheiro. 

— Claro que me agrada! Muito agradecido. 

Sentou-se, pressuroso, e dirigiu os seus olhares perscrutadores aos dois Batterly. Ganis veio logo servir-lhe uma abundante refeição.

— Isto sim, isto é que é vida! —exclamou Marcus—. Alimentos bons, ares puros e trabalho honrado!... Já esta manhã dei um passeio pelos arredores. Que maravilha de paisagens!... 

Ligeiramente irónico, o velho rancheiro comentou: 

— Satisfaz-me que você compartilhe do entusiasmo do meu filho. 

As pestanas de Marcus moveram-se muitas vezes com rapidez. Teve a sensação de que o rancheiro estava a troçar. Exclamou, fingindo bem: 

— Não me surpreende. Bernard tem uma sensibilidade estranha e deve emocionar-se com as belezas naturais do campo. Ah! Que pena nós termos de respirar os ares nocivos da cidade! Mas... que havemos de fazer? Na vida tem que haver de tudo. As circunstâncias mandam e cada qual tem o seu destino marcado. 

Alan gostou do rumo que tomava a conversa e acrescentou: 

— Mas há exceções. Meu filho, por exemplo, vai fugir a esse destino e ficar aqui definitivamente. 

Marcus não pôde dissimular a sua estranheza. 

— Que me diz? É possível, Bernard, ou teu pai está a brincar? 

O interrogado respondeu: 

— Completamente certo. As minhas andanças para San Diego concluíram... por agora. 

— Faço ideia do desgosto que isto vai significar para você. Separar-se dum bom amigo é sempre desagradável — continuou Alan. 

Marcus ficou desiludido. Separar-se? Não, não; de modo nenhum; aqueles ovos fritos com toucinho mereciam todas as honras; o rico café que já fumegava nas chávenas era impossível deixá-lo. Em San Diego esperavam-no as troças de muitos; as migalhas dos festins. Faltando o jovem Batterby, a situação era mais negra, pois todos os outros pouco tinham de seu. Era preferível cem vezes suportar o campo com todas as suas desvantagens e monotonia a ter que voltar à cidade. 

Tais ideias desfilaram pelo seu espírito com a velocidade duma centelha. Fez um gesto compungido. 

— Verdadeiramente, senhor Batterby, deixou-me suspenso. Alegro-me por seu filho, mas para mim isso significa uma grande dor. Tanto assim é que... me demorarei tanto quanto me permitam as minhas obrigações. 

Bernard dispôs-se a falar, mas o pai atalhou dizendo: 

—Compreendo... compreendo! Mas... tudo tem a sua solução... 

— Sério? 

— Claro que sim! Vocês sempre levaram o mesmo género de vida e acho lógico que continuem assim. Pela minha parte não vejo inconveniente. 

— É uma simpatia, sr. Batterby! 

— Bernard, a partir de amanhã, será mais um vaqueiro do rancho «Branco». Se você quiser, e embora o pessoal esteja completo, fará também parte do rancho. Terá comida e trinta dólares por mês, soldo que irá aumentando à medida que você mereça. 

A cara de Whitted era um poema. Alan não pôde evitar soltar uma gargalhada. 

— Não faça caso, senhor Whitted; bem sei que estas coisas não são para homens da cidade como você. Foi brincadeira. A separação terá que dar-se muito em breve. Meu filho — e isto não é brincadeira — começará dentro dalgumas horas a ganhar o seu pão e, naturalmente, não poderá dedicar-lhe tempo algum. Por outro lado, não está certo que eu o obrigue a trabalhar e mantenha a meu cargo as despesas dum amigo seu. O rancho «Branco» tem um velho lema. Quem não trabalha, não come. 

— Senhor Batterby! 

— Desculpe a minha rudeza. Nós, os do campo, somos assim. Dizemos as coisas tal como as pensamos. 

Naquela manhã, o velho teve segunda surpresa. Pouco antes receara que Bernard recusasse a proposta que lhe fizera; agora, julgando que Marcus era outro valdevinos que só lhe interessava a paródia, troçou dele, dizendo-lhe aquilo e afinal viu-se desarmado com a mais inesperada, das respostas: 

— Senhor Batterby: o carinho que sinta pelo meu camarada de trabalho e — para que negá-lo? — de diversões, é tão grande que quero seguir a sua sorte. Se você mantém a sua oferta e se me desculpam as faltas em que possa incorrer até conhecer o ofício, aceito com satisfação o lugar de vaqueiro. 

— Caramba! 

— Posso aspirar a essa honra? 

A Bernard agradou a reação de Whitted. Por isso a festejou: 

— Pegou-te na palavra, pai. Embora tenhas dito que falavas a brincar deste a sensação de estares a falar a sério. Não pode voltar atrás. 

Decidiu então Alan: 

— Perfeitamente, rapaz. Desde hoje passa você a pertencer aa rancho «Branco». 

Naquela mesma tarde, mal Jerry regressara do trabalho, o ancião abordou-o, expondo-lhe o assunto. O gesto do capataz resultou bastante expressivo... 

— Compreendo que não te agrade muito a coisa, o último recurso que me resta. Se conseguirmos que o rapaz se endireite poderemos dá-lo por bem empregado. Não achas? 

— Sim, mas... não poderia arranjar-lhe coisa mais concordância com os seus dotes... e menos próximo mim? 

—Coisa parecida me disse ele e a minha resposta foi negativa. 

—Não seja teimoso, padrinho. A melhor maneira de atrair uma ovelha desgarrada é fazer-lhe a vida agradável. Ponha-o junto de Stanley Kaslert. 

— De modo nenhum. Stanley é o administrador ideal. Inspira-me confiança absoluta como pessoa inteligente, mas falta-lhe energia. Bernard não tardaria a manejá-lo a seu capricho. Quero que o meu projeto se realize tal como o tracei. 

O desejo de Grunder foi negar-se àquele plano de Alan, mas a muita afeição que tinha por este, levou-o a murmurar apenas: 

— O padrinho manda. Benvindo seja o seu filho e bem-vindo seja o pobre diabo que o segue. Oxalá não tenhamos que lamentá-lo nunca! 


*


Decorreram vários dias, sem que nada de importância alterasse a vida pacífica do rancho. 

Grunder, paciente em extremo, suportava todos os maus modos e gestos com que Bernard acolhia os seus ensinamentos. Picado no seu amor-próprio, o jovem Batterby empregava-se a fundo para conseguir desempenhar-se bem de tudo o que lhe confiavam para mostrar que tinha valor e se nada fizera até então não ira porque fosse estúpido, mas sim porque não quisera. 

O próprio Jerry comentava o facto com Alan, satisfazendo-se intimamente os dois com tais progressos. 

Bernard alardeava os seus dotes, principalmente no manejo do revólver. «Exercitei-me muito no tiro ao alvo — costumava ele repetir —, e poucas pessoas haverá que me levem vantagem». 

Quase sempre que dizia isto, procurava que Grunder o ouvisse. 

Quanto a Marcus... Parecia um espantalho dentro do seu trajo de «cow-boy». Cometia faltas a granel, fatigava-se muito, ficava sempre atrás, o cavalo atirava-o muitas vezes ao chão... Os vaqueiros do «Branco» riam a bom rir. 

Em contrapartida, Grunder observava-o detidamente e proibiu as troças e os risos dos outros «cow-boys». 

— Obrigado, capataz — disse o rapaz, ao ouvi-lo admoestar os companheiros —. Deixe-os rir à vontade. Estou tão acostumado a que se riam de mim... além disso eles têm razão. Não dou nada. Mas empregarei a fundo a minha força de vontade para suprir a falta de faculdades. Gosto desta vida, creia, e queria-me habituar a ela. 

— Consegui-lo-á se a isso se dedicar — respondeu Jerry afastando-se. Interessava-lhe aquele homem e gostaria de saber o que pensava ele no fundo da sua consciência. 

Certa tarde, Bernard fracassou ao tentar agarrar um bezerro e foi derrubado por este, tendo ficado com a roupa em mísero estado. Soaram gargalhadas impossíveis de conter. O bruto do Joe foi quem mais deu nas vistas a rir como um perdido. Frenético, Batterby empunhou o revólver, matou o bezerro e atravessou com outra bala o chapéu do «cow-boy». Houve um silêncio enorme. Jerry tinha presenciado a cena de longe e acorreu ligeiro: 

— Que fizeste? 

— O que me apeteceu! De mim não se ri ninguém. 

—Não se riram de ti, mas sim do incidente. E aliás não está bem que pegues em armas quando ninguém aqui pensou sequer tocar-lhes. Guarda o revólver. 

Batterby obedeceu. 

—Nem eu necessito disto para me enfrentar com quem quer que seja! — Voltou-se para Joe —: Sou rapaz de desfazer-te com os punhos! 

O vaqueiro dirigiu ao capataz um olhar suplicante e este sem perder a calma, avisou: 

— Nesta fazenda não são permitidas lutas. 

— Quem as proibiu? 

— Eu. 

— És então um rapaz muito sossegado... 

— Sou um homem que quer a paz entre as pessoas a quem estima. Joe não aceitará o teu repto... e não por lhe faltar valor nem coragem! 

— Isso veremos! 

— Isso está visto já! 

Colocou-se entre os «cow-boys» e Batterby, olhando este com tal ameaça nos olhos que lhe faltou ânimo, para conservar a atitude que tomara. 

— Continuem o trabalho — disse ao fim dum curto silêncio — Não me obrigues a queixar-me a teu pai. Já vês que, para lhe evitar desgostos, tenho vindo a suportar-te dia após dia; mas se abusas dir-lhe-ei tudo. 

O aviso surtiu o efeito desejado. Batterby deu meia-volta e afastou-se refilando. 

— Obrigado, rapaz — disse Grunder a Joe, dando-lhe uma palmada no ombro. 

O «cow-boy» agradeceu a demonstração amigável com um sorriso. 

— Você merece tudo. 

Marcus, testemunha muda do acontecimento, contemplava com espanto crescente o capataz. Não havia dúvida: aquele homem irradiava qualquer coisa de incrível que lhe impunha admiração e respeito. 

Grunder foi o último a regressar, logo que acabou o trabalho. Gostava de passear um bocado antes de jantar. Alan saiu-lhe ao encontro: 

— Que sucedeu hoje? 

— Nada. 

— Não andes a iludir-me. Sei a boa intenção que te guia, mas desejo saber a verdade. Ouvi dizer aos rapazes que meu filho tinha atirado e quero conhecer tudo em pormenor. 

— Bem, visto que de nada serve calar-me... 

Explicou-lhe tudo e terminou dizendo: 

— Receio, padrinho, que eu não consiga vencer neste nosso plano. 

O ancião interrompeu-o. 

— Não me digas isso. Tens que continuar a tua obra. Peço-te, Jerry. Vou alimentando ilusões. Tu mesmo asseguraste que Bernard está a progredir, que se interessa por tudo. Se queres, castiga-o pelo que fez hoje... 

—É preferível que o padrinho faça de conta que não sabe de nada. 

— Alegra-me que me digas isso. É também a minha opinião. Mas tu, Jerry, não o deixes. Ajuda-me a salvá-lo. Se se voltar contra ti, não te fiques; autorizo-te a que o esbofeteies. Impõe-lhe a disciplina ainda que a golpes de força, mas não o deixes encomendado a este velho fraco e doente. 

Havia tanta emoção na voz de Alan, que Jerry renunciou à ideia de se demitir do cargo. 

— Aguentarei enquanto possa, padrinho. 

— Assim se fala! 


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