sexta-feira, 2 de novembro de 2018

BIS164.09 As histórias de dois candidatos ao tesouro

No pensamento dos dois jovens corriam os mesmos pensamentos. Os seus lábios, porém, continuavam cerrados, refratários a qualquer expansão, como se um temor oculto os selasse.
O solo, formado de placas soltas de xistos, brilhantes e escorregadios, obrigava os cavalos a retardar o passo. Continuaram a descer a montanha abrupta e inclinada. O caminho era sinuoso e desabrigado, com profundas ravinas abertas aos lados. Um vento frio e cortante açoitava-lhes os rostos.
Só quando chegaram ao leito largo e arenoso de um ribeiro perderam a sua rigidez de estátuas. Dali em diante o caminho até Bay Sping era tão plano como a palma da mão.
Foi Cole quem começou a falar. Tirou a sua bolsa do tabaco e começou a enrolar um cigarro, calmamente, conduzindo o cavalo com os joelhos, à maneira dos índios. Disse com aparente volubilidade:
— Tenho a impressão de que os nossos passos se cruzarão mais de uma vez.
Brian Boyds pensava da mesma maneira. Por várias razões. Olhou fixamente para o sardento.
— Na realidade deseja comprar o rancho a Granwely? — perguntou com suavidade.
Derry tirou o cigarro da boca e olhou para o céu. Indicou uma estrela que seguia outra brincalhona.
— Acha que a alcançará, Brian? — disse com um sorriso enigmático.
A primeira estrela desapareceu subitamente entre algumas nuvens altas e esbranquiçadas. A outra que a seguia não tardou a imitá-la. Compreendeu o que o louro sardento lhe queria dizer e sorriu.
— Bem — disse —, eu creio que devemos ser sinceros um para o outro. Pressinto que o nosso móbil é o mesmo.
— Também penso assim — respondeu Derry com simplicidade. — Quando ouvi o seu nome no «saloon» compreendi a causa da sua presença em Bay Sping. Porque você é irmão de Fred Boyds.
— Sou, com efeito. Conheceu meu irmão?
— Não.
Seguiu-se um curto silêncio carregado de interrogações. Brian Boyds ficou tão surpreendido que parou o cavalo, admirado. Derry olhou-o sorridente e disse:
— Tudo é surpreendente, estranho, em nós. E reincidente, também. Chegámos ao mesmo tempo e com as mesmas intenções a Bay Sping. Tomámos partido por Paul Keener guiados por idêntico impulso. E as nossas pistolas saltam dos coldres com a mesma rapidez e eficácia.
— Se não conheceu meu irmão não compreendo como me relacionou com ele — interrompeu Boyds, impaciente.
— Bem, vou explicar-lhe. Estou de acordo consigo no pormenor de não termos reservas um para o outro. Se a união faz a força parece-me mais conveniente que nos unamos em vez de nos enfrentarmos. Você não me interessa como inimigo nem eu a si. Destruir-nos-íamos mutuamente. E para inimigo já temos um, tão astuto como expedito. E quando lhe disse que o meu revólver é tão rápido como o seu não disse nenhuma fanfarronada. Estou disposto a demonstrá-lo. Atire uma moeda ao ar e poderá verificar, apesar da obscuridade que nos rodeia.
— Não é necessário, acredito-o. E acreditava-o, na realidade. O aprumo com que falava, a segurança que demonstrava em si próprio aquele homem fê-lo compreender que não estava na presença de um charlatão de feira nem de um papagaio.
— Isso de comprar o rancho a Granwley é um isco, não é verdade? — perguntou de improviso.
— Tanto como o seu de ter perdido a medalha no regato — respondeu o sardento ironicamente.
Olharam-se frente a frente, sorridentes. Uma corrente oculta de simpatia envolveu-os. Ao longe, na planície imensa, ouviu-se o ganido de um coiote. Derry desfez o silêncio momentâneo que os envolvera:
— Boyds, conheceu Eddie Weiber?
— Pessoalmente, não. Fred falava nele na sua carta.
Inesperadamente Derry deteve o seu cavalo e ficou a olhar de forma perscrutadora  para Boyds. Este nem pestanejou perante o olhar inquiridor do amigo.
— Eu devia ter suspeitado de que havia outra carta — murmurou o sardento quase sem mover os lábios. — Os dois tomaram as mesmas precauções para o caso de lhes acontecer alguma coisa. Foram espertos, há que reconhecer.
Deitou fora a ponta do cigarro e voltou a olhar para. Boyds com repentina gravidade:
— Eddie Weiber era meu cunhado — articulou sobriamente. — Era casado com a minha irmã mais velha, Helena. Mandou a carta para ela. Compreende agora tudo, não é verdade ?
Sim, começava a compreender. Mas não tudo. Existia uma lacuna em tudo aquilo, qualquer coisa que não se ajustava perfeitamente naquele problema. Cole Derry devia ter-lhe lido no pensamento. Um sorriso amargo distendeu-lhe os lábios:
— Também eu lhe podia fazer a pergunta que lhe queima os lábios, Boyds — sussurrou.
— Se a fizer respondo-lhe claramente — respondeu Brian. —Prometemos ser francos, fazer jogo limpo.
—De acordo, Boyds. Você estava a pensar porque deixei decorrer tanto tempo para me convencer de que aquilo que meu cunhado dizia era verdadeiro ou não. Sim, era naquilo que pensava.
Cole Derry parecia-lhe cada vez mais um tipo surpreendente. Até sabia ler no seu pensamento. Notou que o rosto do seu companheiro se sombreava subitamente e que o queixo lhe havia começado a tremer. De súbito começou a falar com um acento rouco, rápido:
— A minha demora em verificar o que o meu cunhado dizia na sua carta tem uma justificação: sai da prisão há duas semanas. Prenderam-me por matar o homem que abusou de minha irmã mais nova que vive com Helena. Fui condenado a cinco anos mas só cumpri dois. Perdoaram-me os outros três pela minha boa conduta. Quando regressei, minha irmã deu-me a ler a carta do pobre Eddie. Recebeu-a meses antes de terminar a guerra.
Fez uma pausa. Tinha a cabeça inclinada para o peito e o olhar cravado com extraordinária obstinação no solo. Levantou-a subitamente e continuou agora com a voz mais firme:
— Eu saí da prisão tendo por única fortuna a roupa que vestia. Ao ler a carta pensei que não devia desaproveitar a ocasião e vim para cá. Minha irmã comprou-me este cavalo e deu-me as poucas economias que tinha. Despedi-me dela, da minha mulher e da minha pequenita Joan e pus-me a caminho de Bay Sping. A minha família está a passar dificuldades. Se é verdade que existe essa fortuna deixarão de sofrer privações de uma vez para sempre. Merecem-no bem.
Calou-se, como que dando a entender que nada mais tinha a acrescentar. Em seguida tirou a sua bolsa de tabaco e começou a enrolar outro cigarro. Boyds colocou a mão sobre o seu ombro. Havia-o impressionado a tragédia daquele homem.
— O meu caso tem uma certa semelhança com o seu — começou num tom pausado. — Há três semanas que regressei a Dakota do Sul de onde havia saído há uns três anos. Eu resido em Idaho. Encontrei-me com um fulano da minha terra que me contou que minha mãe havia morrido há cerca de um mês. Pedi licença ao meu patrão, abandonei o rancho onde trabalhava e dirigi-me à minha terra.
A medida que falava o rosto sombreava-se-lhe e um ricto de amargura curvou-lhe os lábios.
— A minha família possui uma pequena granja —continuou no mesmo tom de voz. — Um ano antes de a guerra começar minha mãe voltou a casar. Aquilo não me agradou a mim nem a meu irmão Fred. A partir de então a vida para nós foi um inferno. Nunca nos entendemos bem com o nosso padrasto. Minha mãe, pelo contrário, só via pelos seus olhos. Para evitar males maiores, Fred e eu resolvemos sair de casa. Assim acabámos por fazer um dia. Dirigimo-nos para o oeste de Idaho e empregámo-nos como vaqueiros.
Voltou a calar-se devido ao nó que se lhe formara na garganta. Passados alguns segundos, prosseguiu:
— Ao estalar a guerra meu irmão foi chamado às fileiras. Eu incorporei-me no exército um ano depois. Fui destinado a outra unidade. Um dia informei-me de que meu irmão havia morrido numa emboscada dos confederados. Quando me desmobilizaram voltei a Idaho, ao rancho onde trabalhara anteriormente. Estava contente ali e todos me estimavam bastante.
Uma terceira pausa. Desta vez para enrolar um cigarro. E também para pôr em ordem os seus pensamentos.
-- Um dia fui à povoação com vários companheiros e foi ali que encontrei o conhecido que me informou da morte de minha mãe. Nem ela nem meu padrasto sabiam onde eu trabalhava. Nem sequer nos escrevíamos. Selei o meu cavalo e voltei a casa. Meu padrasto entregou-me tudo o que pertencera a minha mãe. Num baú encontrei a carta que meu irmão me dirigira através de minha mãe. Não estava aberta. Ignoro por que motivo minha mãe ocultou aquela carta a seu marido. Abandonei a granja naquele mesmo dia e vim para cá. Se é certo o que Fred diz na carta, deixarei finalmente de tratar de gado.
— Espero que ninguém tenha descoberto o nosso tesouro — murmurou o sardento, rindo. Depois estendeu-lhe a mão e acrescentou: — Sócios, Boyds?
— Sócios, Derry — respondeu o jovem apertando-lha entusiasticamente. —E essa coisa de nos continuarmos a tratar por você...
— Continuaremos a fazê-lo diante de estranhos para despistar — disse Derry. — E agora devíamos pensar num plano para descobrir quem ordenou o meu sequestro. Tenho a convicção de que alguém de Bay Sping. E a primeira vez que lhes vejo as caras.
Percorreu com o olhar o grupo silencioso que o rodeava ~
— Algum de vocês conhece ou viu alguma vez estes dois indivíduos? — perguntou num tom seco.
Todos negaram com a cabeça. Loveland então dirigiu--se ao seu ajudante:
— Toma conta dos cadáveres. Mete-os na esquadra porque não os podemos enterrar senão amanhã.
Fez um gesto aos assistentes para que se dispersassem. Ao ficar só com Boyds e Derry olhou-os analiticamente ao mesmo tempo que esfregava o pescoço.
— Palpita-me que estes dois indivíduos não são alheios aos roubos de gado que estamos a sofrer na região —interrompeu-se repentinamente como que assaltado por uma ideia e voltou-se para Boyds. — Descreva-me o tipo que fugiu da cabana.
Ao ouvir a descrição do terceiro bandido meneou a cabeça.
— Não há dúvida de que é Burton Frost. Nunca poderia imaginar que estivesse ligado aos ladrões de gado, mas o que não compreendo — acrescentou voltando a esfregar o pescoço — é porque o raptaram — e voltou a olhar para o sardento.
— Isso também eu queria saber, xerife — disse Derry cautelosamente. — Eu creio que se encontrarmos esse tal Frost tudo se explicará.
— Procurarei dar com ele o mais cedo possível. E agora entrem no meu escritório pois terão de explicar detalhadamente o que sucedeu.

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