segunda-feira, 14 de agosto de 2023

ARZ161.05 Uma caravana “enterrada” no gelo (cercada por índios e despistada por cartógrafo)

O pico Saddle erguia-se ante a impressionada caravana de «quáqueres». Roscher tinha-lhes dito:

— Do outro lado fica o vosso novo lar. A passagem sobe por essa ladeira, por entre as rochas. Espero que consigamos atravessá-la antes que comece a neve.

— O coronel Morgan disse que não nevaria antes de dois meses.

— A julgar por como desce a temperatura, começará a nevar muito em breve.

O «Patriarca» disse, com o seu habitual fanatismo:

— Precisamos de passar. Uma das nossas mulheres vai dar à luz muito em breve, e um «quáquer» não pode nascer num caminho; tem de nascer sobre a sua terra.

Roscher deu então ordem para continuarem. A caravana avançava lentamente. Da ladeira do Saddle, um homem vigiava-a. Um homem estendido sobre as rochas, com uma espingarda nas mãos. Era Denis O'Donell. Apertava os dentes, com raiva.

— Imbecis! Deviam ter esperado! Convém-me que ninguém entre no Lemhi antes da próxima Primavera. Só um Inverno e serei fabulosamente rico. No Inverno os riachos arrastam mais areia aurífera, os índios fundem o gelo com fogueiras e arrancam mais ouro que nunca! Mas essa gente vem estorvar-me!

Levantou a espingarda, apontando com cuidado. Queria assustá-los, mas um homem como Denis O'Donell nunca fazia as coisas por metades. Podia assustar a caravana e reduzi-la ao mesmo tempo. Por que não? Apertou o gatilho.

No caminho, um homem que marchava agarrando as rédeas de um cavalo, caiu com um rugido.

Roscher «Montana» deteve o seu cavalo, gritando a todos que se abrigassem.

Denis O'Donell corria por entre as rochas, mudando de lugar e disparando de novo. Queria dar a impressão de estarem vários atiradores na passagem. Dessa vez não alcançou ninguém. A terceira, já noutra posição, abateu um cavalo, que ao cair derrubou um carroção, provocando grande alvoroço na caravana.

Algures uma criança começou a chorar.

O'Donell ainda disparou duas vezes mais, já de qualquer maneira, e depois correu para o lugar onde tinha deixado o cavalo. Meteu a espingarda no coldre da sela, cobrindo-a com uma manta de pele de ovelha e, montando, rodeou um pequeno montículo, descendo à planície por outro lugar. Roscher viu-o aproximar-se, agitando o chapéu e, por força de hábito, gritou:

— Não disparem! É o Denis O'Donell!

—Nós não disparamos, jovem — disse um «quáquer».

Roscher afastou-se do carroção atrás do qual se protegia, fazendo sinal aos outros para que permanecessem cobertos. O'Donell chegou junto dele, desmontou de um salto e atirou-se para trás do carroção, arrastando o jovem consigo, enquanto gritava:

— Cuidado, essa encosta está cheia de índios! Que ninguém se mostre! Consegui passar por milagre! Acertaram em alguém?

—Um morto, sim! Explique-se, O'Donell! Que se passa no Lemhi? O coronel Morgan contava com a aprovação dos «arapahos» e agora recebem-nos a tiro. Desde quando têm estes índios armas de fogo?

O'Donell fez uma expressão de desgosto.

— Pergunte-lhes a eles, quando os vir; mas têm-nas e sabem usá-las, e não permitem que ninguém entre no território. Nós não podemos sair do vale. Têm-nos cercados dia e noite.

— Que aconteceu ao correio que o coronel Morgan lhe enviou há duas semanas?

O'Donell mentiu tranquilamente. Precisava que a caravana retrocedesse.

—Não vi nenhum correio. Certamente esses diabos caçaram-no. Retrocedam, depressa, não podem continuar! Tentarei salvar os meus guias! Um deles morreu também!

O «Patriarca» escutava em silêncio. Quando O'Donell acabou de falar, disse:

— Não retrocederemos, senhor. Esta terra foi-nos concedida por vontade do Senhor, somos pacíficos e viveremos em harmonia com os índios, respeitando-nos mutuamente. Viemos de muito longe para que retrocedamos agora. Só acontecerá o que tiver de acontecer. Continuemos, senhor «Montanha».

O'Donell ficou vermelho de raiva.

— Têm muitas armas? Sabem o que os espera?

Roscher «Montana» bateu na sua espingarda, dizendo:

— Estas são todas as nossas armas, cartógrafo, e os meus revólveres. Os «quáqueres» nunca andam armados.

Denis O'Donell, gritou.

— Estão loucos! Morrerão todos os que entrarem na passagem! Você sabe-o, «Montana», você é responsável por eles! Essa passagem é uma maldita armadilha, com milhares de índios à vossa espera!

Roscher «Montana» olhava para a passagem. Um homem podia tentar passar, como o fizera o próprio O'Donell, mas uma lenta caravana de gente inexperiente…

Além disso, um vento gelado começava a soprar, vindo do Norte, e grandes nuvens escuras corriam pelo céu; naquela altitude, os nevões chegavam quase sempre repentinamente.

— Receio que esta gente continue seja como for, O'Donell. Nada pode detê-los.

O'Donell olhava para aqueles silenciosos homens, aos quais nada parecia impressionar. Depois observou o céu. Se entrassem na passagem saberiam que não havia nem um índio emboscado; depois do ataque ao correio do coronel não tinham voltado a atacar. Estavam ocupados a encher novamente o saco com pepitas de ouro. E se os «quáqueres» entrassem no Lemhi seria o final de tudo para ele.

— Há uma possibilidade, Roscher: rodear o pico pela outra ladeira... A viagem é mais longa... mas os «arapahos» não consideram esse território como deles. Entretanto, vou tentar ver o chefe «arapaho». Tenho de ajudar os meus guias.

Roscher ainda hesitava. O chefe dos «quáqueres» decidiu:

— Sigamos por esse caminho, jovem. É sem dúvida Providência quem no-lo indica.

Roscher «Montana» aceitou.

— Tentaremos. Se as neves não se adiantarem, talvez consigamos chegar ao Lemhi.

Denis O'Donell disse:

— Não nevará por agora. Que tenham sorte. Vou enganar outra vez os índios.

Enquanto se afastava no seu cavalo, sorria feliz. Porque o ar já cheirava a neve e dentro de poucos dias Lemhi ficaria completamente isolado do mundo; a caravana de «quáqueres», com Roscher à frente, morreria congelada no Saddle; nunca chegaria ao vale. «Terei até à Primavera para que os «arapahos» trabalhem para mim. Quando chegar o degelo partirei para Oeste, com um carroção bem carregado.»

Os «quáqueres» eram indomáveis. Pareciam guiados por uma força interior que os fazia enfrentar fosse o que fosse. Roscher «Montana» estava impressionado pela forma como aqueles homens e mulheres, e até as crianças, abriam caminho por entre o mato, colocavam troncos no solo para facilitar a passagem dos carroções, ou removiam as pedras e a terra que lhes impediam o caminho.

O avanço naquelas condições, por uma encosta virgem do enorme pico, era quase impossível, mas a caravana avançava, ainda que fosse muito lentamente. E conforme subiam o frio ia-se tornando mais intenso e em breve começou a chover, uma água gelada que era quase neve.

Roscher costumava adiantar-se sozinho, a cavalo, regressando depois com ar sombrio. Uma dessas vezes disse ao chefe da colónia:

— Retrocedam. Ainda estão a tempo. Acampem no vale e na Primavera poderão voltar a tentar...

O «Patriarca» negou, sorrindo:

— Impossível. Continuaremos...

Continuaram, internando-se na terrível montanha. Até que sucedeu o que Roscher «Montana» tanto temia. Uma manhã, quando despertaram, a neve cobria tudo. Os «quáqueres» permaneciam impassíveis. Roscher desesperava:

— Isto significa que não podemos retroceder nem avançar. E, ainda por cima, os «arapahos» seguem-nos de dia e de noite!

— Não vi nenhum — disse o «Patriarca».

— Mas eles vêem-nos a nós, não duvide. Se tivermos de passar aqui o Inverno, chefe, morrerão as crianças, e também muitos adultos.

O «Patriarca» continuava inalterável.

— O Senhor não nos abandonará. Vamos fazer uma pequena exploração, jovem.

Deborah saiu do seu carroção, levando um recipiente para ir buscar água. Roscher quis ajudá-la, mas o chefe não o consentiu.

— As nossas mulheres são muito capazes, jovem. Não é trabalho de homem acarretar água.

Deborah afastou-se e Roscher foi selar o seu cavalo, acompanhado pelo «Patriarca», e afastaram-se os dois também sobre a neve, pela cornija que era a única passagem. A neve continuava a cair. Quinze minutos mais tarde Roscher segurava o cavalo do seu companheiro, gritando:

— Para trás! Uma avalancha!

Refugiaram-se apressadamente sob uma saliência da rocha. Em frente deles passou a avalancha, uma enorme massa de neve arrastando pedras e troncos... Durante quase meia hora tiveram a impressão de que o pico Saddle se desmoronava; depois, fez-se um silêncio frio e terrível.

Os dois homens saíram do seu refúgio. A cornija Unha desaparecido diante deles e urna montanha de grandes pedras fechava completamente a já difícil passagem.

— Bem, «Patriarca», você quis chegar a esta situação. Agora não podemos sequer retroceder. Seria preciso abandonar os carroções, e mesmo assim muitos morreríamos antes de chegarmos ao vale.

— Quem fala em retroceder? Isto é uma nova prova, para mostrarmos se somos merecedores dos favores que recebemos constantemente. Continuaremos.

«Montana» irritou-se.

— Está louco! Como tenciona continuar?

— Abrindo caminho por entre esta barreira.

— E impossível. Precisaríamos de meses e morreríamos todos de frio! Nem sequer com explosivos se conseguiria!

O «Patriarca» disse, calmamente:

— Temos explosivos num carroção. Reservava-os para abrirmos poços. Se pensa que poderão ajudar-nos a passar, usá-los-emos.

«Montana» encolheu os ombros, resignado.

— Pode ser que abramos passagem, e também que provoquemos avalanchas que nos enterrem a todos. Mas você ganha. Tentá-lo-emos quando deixar de nevar. De que massa são vocês feitos?

 *

 Quatro vultos escuros estavam estendidos sobre a neve. Eram quatro «arapahos», envoltos em grossas mantas. Olhavam para a encosta, alheios à neve que caía sobre os seus corpos. Os cavalos esperavam atrás deles, dotado com a mesma paciente resignação dos donos.

Algumas centenas de jardas mais abaixo, carroções, cavalos, homens e mulheres atarefados, lutavam contra uma enorme parede de pedra e gelo. Os índios não falavam. Mas, de súbito, algo os sobressaltou. Produziu-se uma pequena explosão e uma parte das rochas e do gelo saltou pelos ares. Os homens da caravana soltaram gritos de alegria, e os «arapahos» puseram -se de pé e correram para os seus cavalos. Os animais não podiam galopar sobre a neve. Já bastante faziam avançando penosamente, atascando-se até aos curvilhões.

Tardaram quase um dia inteiro em chegar ao povoado, agora ocupado quase cinicamente por mulheres e crianças. Os «tupis» de peles fumegavam pelo orifício do cone; lá dentro, em covas feitas no solo, ardiam fogueiras, onde se aqueciam pedras sobre as quais se vertia água, produzindo um vapor que envolvia tudo.

Os homens procuravam ouro nos arroios, derretendo gelo para poderem chegar à areia. Os quatro recém-chegados entraram no «tupi» principal, onde um homem jovem falava com vários anciães. Era Moose Red, filho do chefe dos «arapahos».

— Moose! Um desses homens que vieram do Este, pelo outro lado das montanhas, domina também as pedras! Vimos como as faz voar. Está a abrir passagem na encosta. Não é só o homem mau do rio que tem esse poder. Esse outro homem branco também tem o raio na mão!

Moose Red pós-se de pé, olhando para o grupo de anciães. Um deles disse lentamente:

— Só o urso pode lutar contra o urso, Moose. Moose Red falou, furiosamente:

— Esse homem que também domina o poder da terra não pode ser pior que o outro, o que tem o meu pai prisioneiro! É possível que nos ensine a lutar contra ele, a vencer o seu poder. Os homens brancos usam poderes que nós não conhecemos... Sabeis qual deles tem o fogo!

— Sim, vimo-lo.

Moose Red pegou na sua manta de vivas cores. Colocou um gorro de pele e sobre os mocassins umas tiras também de pele.

— Façam sinais. Que voltem os homens que estão nos arroios.

Fizeram-se os sinais de fumo; ninguém que não fosse «arapaho» poderia interpretá-los. Moose Red e os quatro vigilantes puseram-se a caminho; iam deixando marcas atrás deles, para que os restantes homens pudessem segui-los.

Quando chegaram ao alto da encosta, o nevão era mais intenso do que nunca; lá em baixo, os colonos tinham interrompido o trabalho para descansarem e aquecerem-se. As fogueiras fumegavam.

Moose Red ordenou que lhe mostrassem o homem que manejava os explosivos.

— Aquele! O que veste como um caçador!

— É diferente dos outros. Assemelha-se aos que têm o meu pai. Talvez pertença à mesma tribo, a que tem o segredo desse poder.

Ficaram imóveis. Pouco a pouco foram aparecendo outros homens; Moose distribuía-os de forma que não pudessem ser vistos. Ao anoitecer, em torno do acampamento dos confiados «quáqueres» havia mais de mil índios espreitando, armados para a guerra.

Roscher «Montana» estava inquieto; várias vezes os cavalos da caravana tinham relinchado, impacientes.

Roscher sabia que os cavalos eram muito sensíveis à proximidade de lobos, ursos, e também dos «mustangs» montados pelos índios.

— Também é possível que os animais estejam a avisar-nos de uma nova avalancha. Vou subir um pouco a encosta, para ver como está a neve — disse «Montana» ao chefe dos «quáqueres».

Não levaria o cavalo; um passo em falso do animal, uma pedra mal assente, poderia provocar a catástrofe. Envolvendo-se na sua grossa samarra forrada de pele e levando a espingarda sob o braço, afastou-se do acampamento. Era muito difícil caminhar sobre aquele plano inclinado, enterrando-se na neve.

Agarrando-se aos arbustos, foi subindo lentamente. Quando já se tinha afastado bastante, ouviu pancadas no gelo. Alguém estava a fazer algo muito perigoso ali perto.

Amaldiçoando o imprudente Roscher rodeou uma rocha. Inclinada sobre uma lisa superfície de gelo, uma jovem tentava abrir um buraco para chegar à água. Era Deborah; a seu lado tinha vários baldes. Ao ouvir os passos de «Montana» ergueu-se, assustada.

— Oh! Tinha que...

— Que está a fazer aqui sozinha, longe do acampamento? — perguntou Roscher, irritado.

— Procuro água. É esse o meu serviço... É melhor retirar-se, senhor «Montana». Estou proibida de falar consigo.

— Não falará com ninguém, se continua a bater no gelo; ou provocará uma avalancha ou enterrar-se-á no arroio gelado! Não precisavam de a mandar buscar água, há neve por todos os lados e basta derretê-la!

— O «Patriarca» diz que ninguém deve iludir as suas responsabilidades nem escolher o caminho mais fácil. Eu devo procurar água. Por favor, senhor «Montana», vá-se embora! Proibiram-me de falar consigo, proibiram-me, inclusivamente, de olhar para si!

 «Montana» abafou um protesto.

— Estão todos loucos! E eu também, por acompanhá-los! Vamos, regresse para junto dos outros!

Segurou-a por um braço. Ela estremeceu, corando. E de súbito deitou os braços ao pescoço de Roscher, que ficou bastante surpreendido. Não esperava uma coisa daquelas da fugidia rapariga. Começou a murmurar:

—Deborah, pequena... eu...

Então compreendeu que não era amor, mas sim verdadeiro terror o que havia nos olhos da bela jovem «quáquer».

Roscher «Montana» voltou a cabeça. Avançando silenciosamente sobre a neve, várias dezenas de índios «arapahos» tinham-se aproximado. Rodeavam-nos por todos os lados, apontando-lhes os seus arcos e as suas lanças. Qualquer tentativa de defesa era inútil, especialmente tendo Deborah a seu lado.

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