sábado, 10 de dezembro de 2022

BUF145.05 A visita de uma flor do deserto


Açodado e ofegante pela vertiginosa cavalgada, acabava de chegar um dos assalariados da herdade junto de Blaise Stilles.

— Patrão... Vêm ali os soldados.

Blaise largou os ferros com que estava marcando o gado e olhou, preocupado, à sua volta. Fez um sinal ao homem que lhe servia de capataz e confidenciou-lhe:

— É necessário fazer desaparecer o cavalo negro de forma que não seja possível encontrá-lo. Avisa depois as minhas filhas para que fechem bem as portas, e diz-lhe que tratem da vida da casa com a maior naturalidade. Se chegam a descobrir a presença do homem, ainda vamos passar algum mau bocado.

Pensou em se dirigir ao encontro dos militares, mas, vendo as coisas com mais serenidade, resolveu pegar novamente nos ferros e prosseguir na faina.

— Segurai bem o animal! Cuidado!

Voltou-se e olhou para os dois soldados, por entre o fumo com cheiro a carne queimada. Os soldados conversam a certa distância com um dos seus empregados, que, estendendo um dos braços, apontava para o lado onde ele se encontrava. Mandou soltar o potro acabado de marcar, correndo este a refugiar-se junto da mãe, uma égua branca de bela estampa.

Os visitantes eram um cabo e um soldado. Pararam seus cavalos junto do picador, mas não desmontaram.

— O senhor é que é o dono do picadeiro?

— Para os servir.

— Procuramos um homem.

— Existem aqui bastantes.

— Trata-se de um proscrito, de um assassino.

— Entre os meus, homens não há nenhum assassino.

— Descobrimos um charco de sangue no caminho que qui nos conduziu.

— E foi isso que os convenceu de que o homem se encontra em minha casa?

— Naturalmente. Temos fundadas suspeitas...

Os soldados eram ianques. Os ianques são todos receosos e falam com timidez, de maneira que a única forma de aparentarem valentia era falar em tom arrogante, o que lhes acarretava o ódio de toda a gente. Dois dos serventuários do rancho colocaram-se junto deles, demonstrando claramente que a sua presença ali não era nada agradável.

— Voltaremos acompanhados de um pelotão — garantiu o cabo.

— Podem trazer, até, o regimento inteiro. Os senhores poderão ser os donos de tudo isto, mas quem manda em minha casa sou eu — ripostou o picador com firmeza.

—Procederemos a uma busca... a não ser que consinta que dêmos já uma vista de olhos — acrescentou o cabo, amenizando a sua atitude.

— Não consinto seja o que for. E aconselho-os a que se retirem antes que algum dos cavalos tome o freio nos dentes.

O cabo compreendeu que se achava em presença de um homem voluntarioso. Murmurou qualquer coisa entre dentes e apossando-se das rédeas, disse em ar de despedida:

— Não perderá pela demora... e peça a Deus que o não encontremos em falta... Garanto-lhe que passará um mau bocado!

Passava já de mela dúzia de homens que rodeavam os soldados, acabando estes por compreender que o mais aconselhável seria retirarem-se dali. Deram meia-volta e afastaram-se sem proferir mais palavra.

Apenas desapareceram na volta do caminho, Blaise apressou-se a ir ao encontro de suas filhas.

— O ferido não pode continuar aqui — disse ele.

Madalena demonstrou apenas contrariedade, mas Vicky revelou imediatamente a angústia que a notícia lhe causara. Seguidamente, Blaise acercou-se de Fred que o olhava com expressão indefinida.

— Vai ser transportado daqui para outro lado — disse ele, na convicção de que o ferido o não compreenderia. — Vamos levá-lo para uma cabana situada no alto da montanha; faz parte também da minha propriedade, e ninguém se lembrará de ir lá incomodá-lo. Reside lá um casal de mexicanos que são os guardas das pastagens, e que estão ali à minha disposição para tudo o que for preciso.

Vicky puxou por um braço de seu pai.

— Acha que estará bem na cabana? — perguntou.

— Diogo é um homem de confiança. Não tenhas receio.

— Não poderei acompanhá-lo? — implorou Vicky.

— Não podemos ir as duas? — perguntou Madalena.

— Não. Vocês têm de ficar aqui — respondeu o pai. — É conveniente não levantar suspeitas. Dentro em breve aparece por aí algum pelotão com ordem de passar uma revista a todo o rancho e é indispensável que estejamos todos presentes. O que é necessário, é fazer desaparecer todos os vestígios da presença do ferido.

As duas jovens conformaram-se. Uma hora depois, Frederick Wheeler, envolto em lençóis e cobertores, era transportado num carro carregado de palha e de feno, em direção ao alto da montanha.

As horas decorriam com impressionante lentidão para Frederick. O médico visitava-o uma vez por dia e sempre quase ao anoitecer. Meia hora antes de chegar, começava logo a ouvir-se o rangido das rodas do carro que o transportava.

Quatro dias depois, o médico, visivelmente, satisfeito, anunciou-lhe que se encontrava livre de perigo e que, para evitar que o seu paradeiro fosse descoberto, só ali voltaria decorridos cinco dias.

Autorizou-o a comer e a beber toda e qualquer espécie de alimentos e de bebidas e até sentar-se na cama, se isso lhe agradasse.

A monotonia da sua convalescença era amenizada pela presença do médico, do mexicano e da mulher deste, uma mulher roliça, de pele avermelhada, com um sorriso permanente estampado no rosto.

Caminhava bamboleando o seu enorme corpanzil, com certa graça e até com seu quê de malícia. De cada vez que soltava uma gargalhada, abria a boca de tal forma que abrangia toda a cara de orelha a orelha. Mas o seu riso era alegre e contagioso o que era muito do agrado do mancebo.

Diogo quis presenteá-lo com um enorme pistolão pari que ele pudesse defender-se na sua ausência, mas Fred preferiu ficar de posse do seu «Walter» que o tinha acompanhado juntamente com as suas roupas.

O casal estava sempre ausente durante toda a manhã, mas após o regresso e depois de preparada a refeição não voltavam a sair senão no dia seguinte. Todos os dias um portador de confiança vinha saber notícias do convalescente, trazendo consigo tudo aquilo de que pudesse necessitar.

— Gostaria de ver «mister» Stiles para lhe agradecer tudo que tem feito por mim — disse Fred em certa ocasião.

— O patrão é o melhor dos homens — disse o rapaz — e era capaz, só por si, de fazer quanto tem feito até agora, mas a menina Vicky está constantemente a pedir-lhe que o não abandone.

Frederick sentiu uma enorme gratidão para com a rapariga que, decorridos cinco dias, se apresentou de visita à cabana. Entrou com as maiores cautelas e olhou-o com a maior angústia, como se fosse ela própria a padecente.

Fred sorriu-se e ela sorriu-se também, com um suspiro de alívio e de satisfação.

— Como se sente?

— Bem. Penso que estou curado por completo.

— Está muito magro — disse ela com brandura, aproximando-se do leito.

— Brevemente estarei recomposto..., mas tudo isto o devo exclusivamente a ti... não é verdade?

A jovem meneou negativamente a cabeça. Sentou-se próximo dele, sobre um banco tosco, olhando fixamente para os seus olhos.

— Tenho sofrido muito por sua causa.

— Mas não devias tê-lo feito. Sabes, porventura, quem eu sou?

— Fred.

— Sim, mas um Fred perseguido pela Justiça como autor de diversos crimes de assassínio.

— Mas sei que é bom.

— E que importância tem isso, se a minha sorte é sempre a mesma? Receio bem que o teu sofrimento tenha sido inútil.

A jovem entristeceu-se ainda mais, mas Fred acrescentou:

— Sei perfeitamente que te devo a vida, mas tenho esperança de que um dia te poderei pagar tudo isto.

— Oh! Não se trata de nada disso!... Eu... bem... eu quero apenas que se ponha bom e...

Inclinou a cabeça. Nunca existiu um «e...» venturoso. Renascia, para voltar a enfrentar a morte. Em qualquer lugar a encontraria, certamente, e agora com mais probabilidades do que antes, porque juntara mais um crime à sua lista negra e tinha há muito a sua cabeça a prémio.

Olhou para ela. Era uma linda rapariga. Fizera dezoito anos, mas não o parecia. Concorria para isso a forma do seu penteado todo aos caracóis, a sua pele aveludada e pálida, o azul-claro dos seus olhos e o rubor das suas faces.

Fred achou que era insuportável saber que Lou Marty a tivesse cingido nos braços e felicitou-se por lhe ter tirado a vida.

Quando ela ergueu os olhos e o seu olhar se cruzou com o dele, baixou a cabeça pressurosamente. Sentiu-se envergonhada e pretendeu disfarçar o seu acanhamento entabulando uma conversação.

— Vim aqui saber se necessita de alguma coisa... Não precisa de nada?

— Não, Vicky; não preciso seja do que for. Sinto-me, até, muito bem. Bem hajas.

— Bom...

Levantou-se do assento. Fred tentou baldadamente arranjar um pretexto para a demorar mais um pouco, mas não o conseguiu.

— Vais-te embora?

— Meu pai espera-me. Ele não queria que aqui viesse.

— Então não o faças esperar; bem hajas pela tua visita, Vicky, e, se fosse possível, gostaria de tornar a ver-te se o risco não for demasiado.

— Deveras? Queres que eu volte aqui?

Os seus olhos iluminaram-se.

— Desejo-o ardentemente.

Dirigiu-se para a porta. Voltou-se, sorriu-se timidamente e saiu com certa precipitação. Fred entregou-se aos seus pensamentos, de que foi arrancado pela voz do mexicano.

—Bonita, hem! Aquilo é mesmo urna florinha do deserto. Chega a parecer inacreditável que Deus faça coisas tão... tão... Compreende, não é? Que ele faça mulheres como a minha, não terá muito mérito, mas é normal, é lógico, é o que acontece todos os dias. Não é necessário mais do que fazer uma coisa e pôr-lhe uma boca para que essa coisa coma, como acontece a minha mulher..., mas uma criança tão bela, tão perfeita, tão... tão...

Falava pelos cotovelos, Fred tinha por vezes de o ouvir durante horas seguidas. Mas era a única companhia que tinha e a alma do mexicano era de tal maneira simples que aliviava os seus padecimentos espirituais.

— Conhece a irmã dela?

— Quem? Madalena? Conheço, mas como há já muito tempo que saí de lá de casa... Suponho que a vi debruçada sobre mim, através das névoas com que a febre cobria os meus olhos.

—É também muito perfeita. Tem qualquer coisa que esta não tem... qualquer coisa que perturba os homens. Quando se sorri... — passou as costas da mão pela boca. - Bom, quando entreabre a boca num sorriso... faz-nos cair a alma aos pés. Tem uma boquinha... e um corpinho... benza-a Deus... Bem, compreende, não compreende?

— Perfeitamente.

— É claro que Madalena também foi feita por Deus. E porque é que não fez Adela com os mesmos encantos?... E claro que, se assim fosse, Adela não viria a pertencer a Diogo. Digo eu isto...

Frederick sorriu-se. Adela chamou pelo marido e o enfermo tornou a ficar sozinho.

Concentrou de novo o seu pensamento em Vicky. Vicky ajudava-o a esquecer sua irmã e até o seu próprio drama. Pensando nela chegava a sentir renascer as antigas ilusões, a notar certa ansiedade imprópria de si, pelo menos nas circunstâncias em que se encontrava. Disse lã com os seus botões que era muito natural que viesse a enamorar-se dela, mas recusou-se a acreditar que assim fosse. Vicky não passava de um bebé quando ele partira; se tinha crescido, tinha sido...

A verdade, porém, é que estava uma autêntica mulher e que a sua maneira de olhar, apesar de toda a sua ingenuidade e de ter uma pureza angelical, não deixava de ser um olhar de mulher. Baniu aquelas ideias da cabeça. Que ele fosse capaz de se enamorar e até de se apaixonar pela rapariga, nada tinha de extraordinário; extraordinário seria que ele alimentasse esperanças de vir a gozar aquele amor.

Viu o rosto da jovem entre sonhos e deliciou-se. Viu-a chorando e rindo; viu-a radiante e viu-a triste. E depois destes sucessos, convenceu-se a si mesmo de que vivera toda a vida a seu lado.

Acreditou que estava a ouvir a sua voz; aquela voz de timbre tão suave que era como um bálsamo para a sua atribulada alma.

E entre sonhos e pensamentos, as horas escoaram-se. A noite descera sobre a Terra. Diogo e Adela tinham discutido e ralhado. Acabada a discussão, o mexicano tinha saído com o seu velho cavalo. Fred estava convencido de que ele fora em busca de qualquer coisa, mas o tempo decorria e o homem nada de aparecer.

Frederick estava disposto a perguntar qualquer coisa a Adela, mas a mulher não lhe apareceu no quarto durante toda a tarde.

o resto do tempo a pensar em Vicky. Pensou como poderia ser feliz se não fora a sua triste situação de proscrito reclamado pela Justiça; se tudo continuasse a ser tão simples com era antes da guerra...

Baniu outra vez aquelas ideias da sua cabeça. Não era possível...

Voltou a fixar o pensamento na jovem, com os olhos fortemente cerrados... ouvindo até o som da sua voz.

Subitamente pareceu-lhe ouvir um vago ruído vindo do exterior, uma coisa parecida com o longínquo resfolegar de um cavalo.

Apurou os sentidos. Deu conta de que alguma coisa se movia; alguma coisa que, cuidadosamente, se agitava sobre o terreno amolecido, atapetado de relva e de sálvias cheirosas.

Eram passos. E passos cautelosos.

 

 

 

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