terça-feira, 6 de dezembro de 2022

BUF145.01 Apesar de um desejo infinito de ficar por ali… partiu à procura de um homem


O homem cobria-se com um chapéu cinzento mascarrado pelas manchas ocasionadas pelo pó da estrada e pelos pingos de chuva, vestia calções do uniforme dos soldados confederados, meio descosidos, esfiapados e desbotados pela luz do sol, e uma camisa que deveria ter sido amarela, mas que apresentava, agora, uma cor vaga e indefinida.

Usava, também, botins militares a que afivelara um par de esporas de enormes rosetas de aço ferrugento.  Vestia, descuidadamente, apresentando-se cheio de sujidade desde o chapéu até às botas e tinha a barba crescida.

O seu cavalo, porém, era um cavalo novo, negro, bem tratado, de bela estampa, ágil e nervoso. O seu revólver era um «Colt Walter», de modelo recente, que trazia enfiado num coldre de coiro lavrado suspenso de um cinturão-cartucheira repleto de balas que usava afivelado um pouco abaixo da cintura.

Frederick Wheeler parecia um autêntico vagabundo. E era-o na realidade, obrigado pelas circunstâncias. Melhor lhe assentaria uma outra designação, mas essa era perigoso pronunciá-la.

Wheeler era, efetivamente, um proscrito, perseguido já naquela altura em todos os Estados da União. Fora um dia declarado inimigo público por alguém e assim começara a ser considerado dai por diante.

A transformação da sua existência foi-se operando pouco a pouco, durante, aproximadamente, cinco anos, incluindo aqueles que a guerra durara.

Todo o homem possui extraordinárias qualidades de adaptação e Wheeler soube adaptar-se às circunstâncias, tal como os grãos das sementes se adaptam ao terreno em que são lançados.

Não lhe dava qualquer cuidado o facto de ter de andar a fugir, constantemente. Tinha-se habituado já a procurar a porta da saída, mesmo antes de entrar e desempenhar a missão que ali o tinha levado. Sabia, perfeitamente, que, com exceção dos desertos e das montanhas, não podia permanecer em qualquer lugar muitas horas seguidas. Nada já o inquietava.

Adivinhava o perigo muito antes de ele adejar sobre a sua cabeça. Sentia-o no sangue e em todo o corpo, como se fosse um sexto sentido apurado e agudo, de que se servia, tal como qualquer animal utiliza o olfato.

Apesar disso, Frederick Wheeler sentiu que o seu coração se alvoroçava quando se lhe deparou o pequeno edifício num recanto do estreito vale situado entre duas montanhas.

Retesou as rédeas do cavalo e apoiou o cotovelo sobre a sela inclinando o corpo para a frente. Derrubou a aba do chapéu e assim permaneceu imóvel, durante longos minutos.

Contemplou, emocionado, todo o cenário da sua vida. Tinham decorrido ali vinte anos da sua existência, desde a sua meninice até à sua juventude. Fora ali, com efeito, que vivera toda a sua vida, pois os anos que se seguiram não passaram de anos de morte.

Entre aqueles montes, brincara, correra, saltara, perseguira e fora perseguido pelos cães de guarda da herdade; matara um lobo ante os olhos pávidos de sua irmã, quando contava, apenas, dez anos.

Ali fora sepultado seu pai, um homem forte e destemido que vencera mil combates e acabou por morrer vítima de uma estranha enfermidade. Ali, em resumo, estavam, indelevelmente, impressas todas as fases da sua vida, da sua verdadeira vida.

Fechou os olhos por um instante e ficou imóvel. Roçou, levemente, com os tacões os ilhais da sua montada sem utilizar as esporas e empreendeu a descida, lentamente, em direção ao distante edifício.

Era uma herdade composta por uma casa de regulares dimensões e por quatro pequenos pátios. Em um deles, duas vacas leiteiras retouçavam a erva, mansamente, agitando, vagarosamente, as longas caudas. Um velho cão, um autêntico lobo de Alsácia, olhava para os animais, respirando, ofegantemente, aflito pelo sufocante calor.

Milhares de recordações lhe acudiam à mente, à medida que se ia aproximando. Seria capaz de recordar, minuto a minuto, tudo que ali ocorrera durante todos aqueles anos; coisas que naqueles remotos tempos seriam, certamente, insignificantes, mas que adquiriam agora um relevo e uma importância extraordinários: O velho lobo de Alsácia que ele conhecera quando, ainda, não passava de um simples e gracioso cachorrito, roliço e brincalhão, que parecia rebolar-se pelo chão quando corria; as vacas leiteiras, o maior sonho de sua mãe, cuja única preocupação era alimentar seus filhos com dois litros de leite por dia.

Coisas que Wheeler jamais se teria atrevido a referir, com receio de provocar a hilaridade a quem o ouvisse; com temor de se tornar ridículo e que, apesar de tudo, ocupavam um lugar preponderante no seu árido coração.

Deteve o cavalo junto à paliçada pintada de verde que circundava a casa. Uma pega de vistosas cores, presa por uma das patas, lançava um canto agudo, esquisito, gemente, enquanto tentava poisar sobre a paliçada sem o conseguir.

Subitamente, o velho cão de guarda farejou a proximidade do homem e ergueu-se, inquieto, ainda que falto de agilidade e deitou-se a correr, pesadamente, ladrando com força. Frederick Wheeler apeou-se, sossegadamente, e aguardou o simpático animal que pôde ainda dar um salto, tocando-lhe na cara com a ponta do focinho.

— Olá, «Fatty». Então como te corre a vida?

O animal continuou ladrando de contentamento, recebendo com um incessante mover de cauda as carícias do homem, dando saltos alegres e apoiando as patas dianteiras no cinturão repleto de cartuchos e de balas.

Abriu-se a porta e apareceu uma mulher em que Wheeler reconheceu sua irmã. Esta trazia uma criancinha nos braços que começou a chorar quando o sol lhe deu na carita.

— Elsie! — chamou ele.

A mulher olhou-o, surpreendida e imóvel, apertando a criancinha contra o seu peito robusto.

— Não me conheces? —perguntou Frederick, aproximando-se.

Uma mulher idosa surgiu por detrás de Elsie e que, mal o lobrigou, imediatamente, exclamou:

— Fred, meu filho!

As duas mulheres encaminharam-se a correr para o recém-vindo, unindo-se todos três num apertado abraço. Passou-se um momento de silêncio e de emoção, dando lugar, pouco depois, à maior inquietação.

— Por que vieste?

— Tinha um desejo imenso de vos ver.

—Não corres perigo?

— Nunca se sabe onde ele pode estar. Mas acho que, mesmo assim, valia bem a pena só para poder abraçar-vos mais uma vez.

Sorriu-se, amargamente, sem poder dominar-se, procurando a todo o custo animar as duas mulheres. Olhou, seguidamente, para o roliço bambino que sua jovem irmã trazia nos braços.

—Rapaz?

— Rapaz — repetiu ela com orgulho.

—E quem é?

— Teu sobrinho. — Toma!...

Fred coçou a cabeça por debaixo do chapéu e tentou pegar na criança, mas como se não ajeitou, limitou-se a contemplá-la.

— Que idade tem?

— Cinco meses.

—E quem é o pai?

— Por que não entramos em casa? — interveio a mãe. — Se continuamos aqui, acabamos por morrer assados.

Pegou no braço do filho e entraram em casa lado a lado. A mãe convidou o filho a sentar-se. A jovem colocou a criança num berço bastante tosco, regressando um instante depois com um jarro de água fresca, tirada do poço que o próprio Fred abrira algum tempo antes, enquanto a mãe preparava a mesa.

— Deves ter fome — disse.

— Alguma... o que eu tenho mais, é desejo de voltar a provar os teus petiscos.

— Está quase pronto. Esperas, não é assim?

Junto do jarro de água foi colocada uma garrafa de qualquer bebida espirituosa que Fred saboreou com o maior deleite. Enquanto esperava, abeirou-se do berço onde o menino, que cessara de chorar, se entretinha a brincar com o galho de um pequeno arbusto.

—Quem é o pai do pimpolho — voltou a perguntar, lembrando-se de que lhe não tinham ainda respondido.

—É o Aloísio — respondeu a avó. — Lembras-te dele?

— O Aloísio Marty? Claro que me lembro! Quem iria imaginar semelhante coisa?

O inocentinho sorria-lhe e Frederick sentiu qualquer coisa de muito estranho no seu íntimo. Um desejo infinito de ficar por ali...

Aquele sentimento, a dizer a verdade, não queria dizer, precisamente, aquilo, mas sim o pressentimento de que ele jamais poderia vir a ter uma criança como aquela, ou, pelo menos, não lhe seria possível contemplar o seu meigo sorriso durante todo o tempo que quisesse; vê-lo crescer, como tinha visto crescer o cachorrito «Fatty», como tinha visto nascer e crescer as vitelas.

Sua irmã veio sentar-se a seu lado, contemplando-o com interesse.

— Confesso que não te reconheci.

— Não me digas! — troçou o irmão. — Tão mudado estarei eu?

— Tens a barba crescida e a tua pele parece-me mais queimada do que antigamente. Pareces-me, até mais magro e mais alto.

A mãe também se aproximou.

— Queres tomar um banho? Vou preparar-te a água e barbeias-te em seguida. Tens todas as tuas coisas no mesmo lugar onde as deixaste.

Frederick anuiu em silêncio. O calor do lar...

Nem sua mãe, nem sua irmã davam largas aos seus sentimentos, precisamente, para não empanar com lágrimas o tempo que ele ali se demorasse. Eram Wheelers dos pés à cabeça, de sangue heroico nas veias, sempre conformados com a sua sorte.

— Eu próprio irei preparar a água — disse Fred.

Saiu para o exterior, tirou vários baldes de água do poço e encheu um recipiente suspenso numa das paredes, um pouco elevado, mas onde se podia chegar utilizando uns degraus construídos com adobes que ele próprio havia imaginado.

Uma espécie de duche, um pouco tosco, mas bastante prático. Verificou que tudo se encontrava bastante descuidado. Era evidente que faltavam ali as mãos de um homem e perguntou, intimamente, que fazia em casa o marido de sua irmã. Resolveu não pensar mais no assunto e tratou de se libertar do suor e da poeira.

Através da cortina, pôde ouvir a voz de sua irmã que o informava de que colocara ali roupa lavada. Vestiu-se e regressou à casa de jantar.

A mesa estava servida e sobre ela havia três pratos, vendo-se ao centro uma travessa com um assado de que se evolava um aroma que Frederick quase tinha esquecido já.

Sentou-se no lugar do costume e esperou em silêncio, contemplando quanto o rodeava. Elsie dava de mamar ao filho, sua mãe preparava-se para servir os pratos e o cão dormitava a seus pés, apoiando o ventre nas biqueiras das suas botas.

O pequenino olhava-o com os seus enormes olhos inexpressivos, chupando, avidamente, o peito da mãe. Pareceu parar um pouco para sorrir e prosseguiu mamando, gulosamente.

A expressão da jovem era triste, embora Frederick não pudesse suspeitar as causas. Apesar disso pressentiu fosse o que fosse, quando reparou que, apenas, havia três talheres na mesa.

—E Aloísio?

A mãe encarou-o com olhar inquieto. Não respondeu, pelo que Frederick resolveu insistir:

— Onde está ele?

— Não vem... não vem agora comer.

Os olhos da anciã desviaram-se dos olhos do filho que acabou por se sentir intrigado. A idosa mulher correu a meter-se na cozinha. Alguma coisa se queimava.

A criancinha mamava, agora, já sem vontade, só de vez em quando. Tinha adormecido. Apesar disso a mãe apertava-o contra o peito, parecendo querer impedir que o menino dormisse.

Uma das paredes de madeira aparecia cheia de buracos por efeito do tempo e não havia ali umas mãos que a consertassem. Frederick levantou-se.

—Por que me escondem o que se passa?

Sobre o lume nada havia, nada se queimava. O pequenino adormecera nos braços de sua mãe, cujo rosto, pálido ao princípio, começava, agora, a ruborizar-se. Ambas as mulheres compreenderam que não podiam iludir a pergunta. Elsie colocou a criança no tosco berço e cobriu os seios nus. Dispunha-se a falar, mas foi interrompida por sua mãe.

— Não precisamos de nada, Fred. Seriamente. Estamos bem.

— Por que me respondes assim, mãe? — perguntou Frederick com amargura. — A criança, por acaso...

— Escuta-me, Fred querido... — suplicou a mãe aproximando-se dele.

Assim, tão chegada a seu filho, parecia ter muito menor estatura, frágil, de cabelos brancos emoldurando um rosto pálido, rugoso e respeitável. Frederick contemplou-a com tristeza. Não disse nada. Esperou que ela dissesse alguma coisa.

— Acredita que não necessitamos de nada. O nosso desejo era que estivesses sempre a nosso lado...

— E Aloísio? É ou não é, o pai da criança?

— É, sim, filho; mas...

— Onde está ele?

— Não sabemos.

Frederick curvou a cabeça.

— Compreendo. Um deslize...

Olhou para sua irmã. Deu-lhe imensa pena ver aquele rosto ruborizado, belo e triste. Sentiu uma infinita piedade pelo inocente que dormia no seu berço.

— Aloísio não pensou em mim — murmurou, espacejando as palavras. —Deve ter-se convencido de que eu não regressaria mais. Mas alegro-me por tê-lo feito, ainda que mais não seja, para lhe arrancar o coração do corpo.

— Fred!

Sua mãe abraçava-o, obrigando-o a olhar para ela.

— O pior de tudo isto passou já, meu filho; e agora somos felizes à nossa maneira. O menino ocupa, de certo modo, o vácuo por ti aberto; contemplando-o todas nos consolamos... seria demasiado triste esta vida se vivêssemos, completamente, sós.

—E muito triste continuará a ser, certamente, arrastando toda a vida esta vergonha.

—Não. Não tem sido o calvário que tu supões, Fred; temos sabido suportar tudo o melhor possível. O horror da guerra tem evitado de sentirmos a vergonha a que te referes. Tudo tem decorrido da maneira mais natural.

Frederick voltou-se para sua irmã. A jovem tremia emocionada e Fred receou tê-la olhado com demasiada dureza.

— Estavas apaixonada por ele, ou...?

— Amávamo-nos, Fred — afirmou a jovem com firmeza.

— E há quanto tempo o não vês?

— Haverá, aproximadamente, um ano..., mas disse que voltaria!

Wheeler esboçou um irónico e amargo sorriso.

— Tu sabes que ele não regressará.

A mãe voltou a interromper.

— Talvez outrora necessitássemos da sua presença, Fred, mas agora... agora já não é preciso. O menino chama-se Fred, tal qual como tu, e só de o contemplarmos nos consolamos... Somos felizes assim... Posso jurar-te, meu filho.

Frederick Wheeler cerrou os dentes e fez um enorme esforço para abrandar a expressão do seu rosto. Depois, conseguiu sorrir com mais suavidade, ainda que estivesse pensando em arrancar o coração do homem que fizera a desgraça de sua irmã, mergulhando a sua família na vergonha e no desespero.

Sentou-se. Fez um penoso esforço para comer e o resto do tempo decorreu mais, agradavelmente. Chegou, inclusivamente, a esquecer-se do calor e do carinho do lar por que há tanto suspirava.

Mas quando, entre beijos e palavras de carinho, lágrimas e soluços, voltou a montar o cavalo negro, a obsessão de matar Aloísio Marty dominava-o por completo.

Pouco ou nada podia fazer na vida, porque a sua vida, nas condições em que se encontrava, não podia ser de longa duração. Viria a ser porventura a última coisa que fizesse, mas estava decidido a fazê-la custasse o que custasse. Sentia-se capaz de derrubar todas as barreiras que se lhe opusessem.

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