Ao ouvir estas palavras, Anabela fez um movimento rápido para descer; mas o fiscal, que gostava de vê-la ao pé de si, embargou-lhe discretamente o passo.
—Não lhe parece bem viajar acompanhada?
—Deixe-me descer.
Nesse momento, ouviu perto, ruído de passos. Voltou a cabeça. As suas faces empalideceram.
Cinco guardas custodiavam Ted Lambert e Regina, ambos com as mãos atadas nas costas. Anabela recordou o estranho sonho da noite anterior. Era tanto mais curioso quanto era certo que Lambert havia aparecido nele para salvá-la. Acaso, intimamente, confiava nele mais do que em nenhuma outra pessoa do mundo?
Fitou-o claramente nos olhos e não viu neles rancor nem o menor assomo de ódio. Em troca, ele olhou-a, como se fosse uma mulher desconhecida que tivesse ido ver a diligência partir,
—Suba, «miss» Loren—disse uma voz atrás dela. —Tenha a bondade...
Era o governador, que já a conhecia havia alguns anos.
—Mas eu...
—Compreendo o seu escrúpulo. Não gosta de viajar com determinadas companhias. Mas quer realmente, ir para «Phoenix»?
— Sim. Tenho a impressão de que os meus nervos se acalmarão, quando sair de Pedra Branda.
—Se é assim, aconselho-a a que viaje connosco. Hoje em dia, as diligências são assaltadas com frequência, sobretudo desde que esse maldito «Duas Balas» infesta a região. A senhora correria perigo se viajasse em outras condições. Nós iremos muito protegidos: cinco homens, escolhidos entre os melhores atiradores do Estado. Levam «rifles» de repetição. Quem se atreverá a aproximar-se de nós? — E baixando a voz, acrescentou confidencialmente: —Tudo isto é justificado não só pelos prisioneiros, mas também porque levamos dinheiro, um monte de dólares, para subvencionar os camponeses pobres do Arizona. Não me separarei dos saquinhos, nem que me matem. Mas ninguém sabe em que consiste o nosso carregamento.
Enquanto falava, fora avançando o seu corpanzil, de forma que Anabela não teve outro remédio senão subir e sentar-se no mesmo lugar. O governador sentou-se logo a seu lado.
—Onde está seu pai? Teria gostado de falar-lhe. Ele não virá despedir-se de Si?
— Não... Não creio! Meu pai vive muito ocupado com o seu rancho. ultimamente contratou mais quinze trabalhadores mexicanos. Foi buscá-los a Santa Fé, para trabalharem no rancho.
—Quinze jornaleiros? Ê um número bastante elevado, pois segundo sei, a sua equipa era já uma das maiores. Que pretende fazer seu pai com tanta gente?
—Não sei. Passo meses inteiros sem pôr o pé no rancho. Mas para dizer a verdade, a última vez que lá estive, tudo muito descuidado. Pelo que vi, os mexicanos não fazem nada.
Anabela falava por falar, procurando dissimular a grande perturbação que sentia. Entretanto, os guardas iam carregando maletas para o tejadilho, enquanto os dois prisioneiros estavam junto da porta, esperando a ordem de subirem.
—Como mulher, a senhora não deve entender dessas coisas — disse o Governador, sorrindo. — Desculpe que lhe diga isto. O rancho de seu pai produz muito. Toda a gente sabe que os Loren são uma das famílias mais ricas do Arizona.
Anabela sentiu o desejo de sair dali. Não faria aquela viagem por nada deste mundo, nem que estivesse condenada a passar o resto da sua vida em Pedra Branda. Levantou-se para descer, pretendendo um súbito mal-estar, quando uma voz imperativa a fez deter:
—Já podes subir, grande patife!...
Ouviu-se essa voz, quando Ted Lambert punha o pé no estribo e era empurrado, ao mesmo tempo, por um guarda que estava na sua retaguarda, de revólver engatilhado. Ted teve de sentar-se em frente de Anabela. E logo a seguir, Regina, seguida também de outro guarda.
Anabela ainda persistiu na ideia de apear-se. Mas a porta fechou-se logo violentamente e uma voz gritou:
— Pode partir! Foi tudo tão rápido, que Anabela não pôde reagir. Quando quis fazer um esforço definitivo, a diligência já ia em marcha.
Encontrou-se entalada entre o governador e um guarda, tendo na sua frente Ted e Regina.
—Não faça caso destes dois patifes, «miss» Loren. Não abrirão o «bico» durante a viagem, tenho a certeza.
Anabela olhou para Regina. A linda rapariga parecia ter envelhecido alguns anos numa só noite. O seu aspeto era abatido, derrotado, como se, de repente, tivesse visto destruído tudo que até então tinha sido o sustento espiritual da sua vida.
— Posso ajudá-la nalguma coisa? —perguntou--lhe Anabela. —Desejaria que esta viagem fosse leve para si...
A situação era irreal, quase insustentável. Estavam ali a mulher que amava Larry Tompson e aquela que lho havia arrebatado. Encontravam-se ali um homem perseguido e a mulher que o havia atraiçoado.
Cinco «rifles» esfomeados guardavam aquela estranha diligência carregada de paixões, verdadeira diligência para o inferno, que havia empreendido uma viagem pelo caminho da morte.
Um corvo seguiu-os, grasnando, desde que saíram de Pedra Branda. Aquela ave de mau agoiro revoluteou sobre os cavalos, inquietando-os com o seu lúgubre grasnar.
—Não se incomode comigo—respondeu Regina a Anabela. —Agora, não preciso de nada.
O caminho para «Phoenix» seguia pelo Sul as últimas abas das Montanhas Rochosas e era uma das mais acidentadas que as diligências do Arizona percorriam.
Duas horas depois da saída de Pedra Branda haviam atravessado já dois desfiladeiros e descido ao fundo de vales onde o calor causava abatimento. O caminho serpenteava por entre quebradas solitárias, e ao atravessarem uma planície, os viajantes só podiam descansar a vista nas altas ervas, pelas quais ainda retouçavam algumas reduzidas manadas de bisontes.
—Nunca vi isto tão quieto—grunhiu um dos guardas da escolta, assomando a cabeça a uma janela. —Nem uma caravana, nem um cavaleiro solitário, nada. Nem bandidos, sequer.
—Ninguém se atreverá a atacar-nos—disse o governador. — Mas é precisamente a solidão que deve pôr-nos alerta. Quando virem que alguém se aproxima, disparem sem dó nem piedade. Vale mais enganarem-se do que irem desprevenidos...
Ted não havia descolado os lábios durante as duas horas de caminho, limitando-se a olhar fixamente, absorto, num ponto do tapete. Mas ao ouvir aquelas palavras, levantou o olhar.
—Levam aqui alguma coisa de valor?
— Vocês. Achas pouco?!
—Nós não temos valor. Refiro-me a dinheiro.
—Sim. Levamos alguns milhares de dólares para fazer empréstimos aos camponeses pobres. Se nos atacassem, seria um «bolo» excelente.
—Tem razão.
Aquilo parecia também não importar grande coisa a Ted Lambert. Tornou a ficar imóvel, com o olhar fito no desenho do tapete. Sentia na sua frente o olhar de Anabela, quente e pegadiço como os seus lábios.
Uma hora depois, quando saíam de um desfiladeiro, ouviu-se o primeiro tiro. Um dos guardas soltou um grito, enquanto preparava o seu «rifle». A bala roçara-lhe apenas as costas. Uivando de raiva, disparou três vezes.
—Estão a atacar-nos?
Anabela empalideceu. Tentou olhar para trás, pela pequena janela, e não viu mais do que a poeira infernal do caminho.
— Ouviu-se apenas um tiro. Que teria sido?
Ted teve um sorriso sarcástico e triste.
—Há tipos trocistas, em todos os caminhos de diligências. Talvez, algum desses tivesse disparado, para se distrair...
O governador riu, mas o seu riso soou falso.
—E verdade. O nosso amigo tem razão. Há trocistas para tudo. Eu mesmo o seria se fosse mais novo.
A diligência rodava, com ruído, pelo leito de um ribeiro seco, cheio de seixos. Um dos guardas tornou a deitar a cabeça fora da janela.
—O que se passa, Larsen?
—Nada, senhor. Foi um tiro isolado. Alguém quis excitar os animais... parece que é apenas um atirador.
—Então, não há perigo?
—Não, senhor.
A desmentir esta resposta, nesse momento ouviram-se mais dois tiros. As balas ecoaram no espaço como o uivo de dois cães gemebundos. O membro da escolta, que falara da janela, ficou imóvel, enquanto uma careta de espanto se estereotipava no seu rosto. As suas feições enrugaram-se como se fossem de papel e a cabeça descaiu sobre o bordo de vidro, que estava descido.
Todos os que estavam da parte de dentro, viram o sangue correr-lhe com abundância, da nuca. O homem foi arrastado pelo veículo, durante alguns metros, indo depois cair aos pés da sua própria montada, que o seguira fielmente.
O Governador foi o primeiro a reagir. O seu rosto adquiriu um tom sanguíneo e tirando um pequeno revólver do bolso, exclamou:
—Se nos atacam, é preciso replicar.
— Replicar?! Com isso?
Em outro momento a voz de Ted teria parecido insolente. Mas nesse instante, tinha um tom grave e sério.
—Os homens da escolta não são mancos. Acabarão com esse maldito, antes de ele se aproximar...
Ted fechou os olhos e apoiou a cabeça no espaldar, como se quisesse dormir. Regina inclinou a cabeça, enquanto nos olhos de Anabela apareceu uma expressão de terror incontido, como se nesse instante tivesse descoberto que se encontrava só no mundo.
Os dois guardas que viajavam dentro da carruagem, sacaram os seus «rifles» pelas janelas e apontaram-nos, ao lado da diligência, para a traseira desta. Mas não se via rasto de qualquer inimigo. Era como se tivessem sido atacados por algum desses fantasmas dos primeiros povoadores do Arizona.
—Não se vê ninguém, senhor. Se não fosse o cadáver de Larsen, diria que tudo isto foi um pesadelo.
Ted Lambert conhecia bem aquele terreno. Entreabriu apenas um olho e fitou o governador.
—Não nos atacarão, enquanto não passarmos para o outro lado do rio. Esse será o momento.
Com efeito, não se enganou. A primeira detonação excedeu a sua expectativa.
—Tinhas razão, Ted. Atacam-nos agora! —disse Anabela, fitando-o com um olhar apavorado.
O jovem olhou para ela, pensando que, apesar de tudo, seria uma pena que uma jovem tão bela morresse numa diligência, tirada por bestas desbocadas, por um caminho daqueles. Encolheu os ombros e murmurou:
— Talvez queiram raptar-te...
Os homens da escolta respondiam ao fogo. Mas eram apenas dois e os seus tiros eram ineficazes, embora os atacantes se mostrassem a descoberto.
Eram uns dez ou doze cavaleiros, com boas montadas e munidos de «rifles», de longo alcance. Os que faziam fogo, através das janelas, homens duros e experimentados, calcularam que os atingiriam, embora não se atrevessem a exteriorizar a sua opinião.
Os perseguidores não eram índios, mas homens brancos, que atiravam bem e galopavam furiosamente atrás da diligência.
Um dos guardas a cavalo caiu, atravessado por uma bala no peito. O outro optou por colar-se a um dos lados da carruagem, cobrindo-se assim, ao menos, das balas que viessem das traseiras. Mas desse modo os seus tiros foram tão ineficazes como as salvas de pólvora de um funeral.
—Alcançar-nos-ão depressa—disse Ted. —E aqui não podemos esperar auxílio...
Os seus olhos fitaram os de Anabela, que devia ter visto neles algo estranho que a fez ter medo.
—Foste tu quem nos meteu nisto... esses homens vêm auxiliar-te. Querem salvar a tua vicia...
— Uma vida que tu condenaste para sempre... —retorquiu ele, com um clarão estranho no olhar.
—Esses homens não podem ter nenhum contacto com Ted Lambert — disse o governador. —Ninguém, á exceção de algumas pessoas de destaque da cidade, sabia que os prisioneiros viriam nesta diligência. Ninguém, portanto, podia preparar este ataque em regra. Esses homens devem atacar-nos por outro motivo.
— Por causa do dinheiro — disse Lambert, com um sorriso. — Quem sabia que nesta diligência viria o dinheiro para os camponeses pobres...
O Governador fitou-o, perplexo. O suor corria-lhe pelo rosto.
—Não creio que alguém soubesse, pela forma como se fizeram os preparativos. Talvez alguém se inteirasse disso, mas ninguém suspeito.
—Depende do que o senhor entender por suspeito —retorquiu Ted, com a maior naturalidade. — Que ainda não se averiguou quem é o autor dos últimos roubos, assaltos e crimes cometidos na região. Ou julga que, se se tratasse de um verdadeiro suspeito, teria agido até agora com tanta impunidade.
O governador não teve tempo de responder. Nesse momento, o homem que galopava ao lado da diligência, deu um salto na sela e, soltando um grito, foi cair a distância da sua montada. Os da diligência compreenderam que ficavam reduzidos aos seus próprios recursos, sem nenhuma escolta exterior.
—Esses tipos atiram bem—disse um dos guardas. — E agora estão tão perto de nós, que não falharão o alvo.
Ted inclinou um pouco a cabeça. Como ia de costas para a frente da diligência, pôde ver, através da janela da traseira, alguns dos homens que os seguiam. E dirigindo um olhar significativo a Anabela, explicou:
— São mexicanos!
A jovem teve um sobressalto que lhe pareceu inexplicável. Olhou para trás, pela janela, e através da poeira pôde ver os largos chapéus multicores dos homens que os perseguiam. E sem se voltar, replicou:
—Não tenho nada a ver com isso. Porque me olhas desse modo?
Nesse momento, uma bala entrou pelo vidro da janela, fazendo-o em estilhaços, alguns dos quais se cravaram no rosto de Anabela, que gemeu, fechando os olhos, aterrada. A bala saiu pelo outro lado da carruagem. Foi um verdadeiro milagre não ter encontrado nenhuma cabeça.
Ted sentiu novamente algo que não conseguia explicar. mas que era concreto e lhe mordia o coração. A rapariga não podia morrer ali, não podia cair, atravessada, sobre os seus joelhos, enquanto eles rodavam para o Inferno. A diligência transformar-se-ia, em breve num imenso baú cheio de cadáveres bamboleantes, um dos quais seria Anabela.
A brusca visão da rapariga, com os olhos abertos e a cabeça fendida por um balázio, fê-lo baixar os olhos e fechar os punhos. Sem que quisesse reconhecê-lo, algo no fundo de si mesmo alie dizia que presenciar aquilo seria uma dor demasiado forte para ele.
De súbito, encontrou-se a falar. Notou que os seus lábios se moviam e modelavam palavras, sem que parecesse que a sua vontade interviesse nisso. Notou, enquanto falava, um aperto no coração, que era como se toda a sua intimidade saísse a descoberto, mesmo contra o seu desejo.
Anabela fitou-o com os olhos, muito abertos, onde o terror fora substituído pela surpresa.
—Agora vamos morrer, Anabela, visto que já nada nem ninguém nos poderá salvar. Mas eu não quero deixar este mundo sem te dizer mais uma vez que te amo, e que, apesar da tua traição não sinto o mais pequeno rancor por ti. O orgulho pode ser, às vezes, o pior dos sentimentos. Tentei odiar-te, Anabela, e durante estas duas horas, sentado na tua frente, tenho estado a inventar frases atrozes com que insultar-te, antes de morrer. Mas nenhuma delas pode ser pronunciada. Um homem deve ser sincero nos últimos momentos, Anabela, e eu, um foragido vindo da fronteira, um homem com a cabeça posta a prémio, digo-te que te amo, Anabela, que amo a rapariga mais bonita e mais rica de Pedra Branda. Agora, nada disso importa já, mas alegro-me de que estejamos os dois juntos, quando duas balas nos atravessarem. E não há ódio nisto, mas simplesmente a satisfação de ver-te até ao fim, esquecendo o teu nome.
Anabela olhou-o fixamente, com os olhos húmidos, sem saber que responder. Ela também sentia que o seu coração queria falar. Mas, de súbito, um brusco solavanco da carruagem deitou-a para a frente, sobre Ted, e sentiu o seu rosto colar-se ao dele. Durante esse breve contacto, os lábios de Ted beijaram sofregamente a face de Anabela, depois separaram-se de novo.
Ted quis revoltar-se contra si próprio. Mas não pôde. O que o aproximava de Anabela era mais forte do que a sua vontade. Para afastar o pensamento de tornar a beijá-la, dobrou um pouco a cabeça e começou a olhar para os homens que os perseguiam.
Estavam mais próximos e, decerto, nenhum deles fora ainda abatido. Galopavam com inteira confiança, sem forçar os animais, disparando só esporadicamente, mais atentos a adiantar-se à diligência e a poder atirar contra algum dos cavalos, do que a perfurar as chapas da carruagem. De qualquer modo, os seus poucos tiros eram certeiros, e o guarda que se achava à direita soltou um gemido, largando o seu «rifle». Tinha sido alcançado no queixo e uma intensa mancha vermelha ia-lhe cobrindo a boca e a garganta.
— Estamos completamente perdidos! —murmurou Regina, que ainda não falara. E voltando a adquirir nos seus olhos um brilho de crueldade que Ted já vira neles, acrescentou: — Sinto não ver nunca mais Larry Thompson. Cuspir-lhe-ia no rosto todo o meu ódio e desprezo.
Mas precisamente nesse instante os seus olhos dilataram-se de assombro. Acabava de ver Larry.
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