quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

PAS816. Um encontro macabro

De costas para ele, frente a um grande espelho, estava uma bonita mulher, alta, esbelta, com um lindo cabelo loiro, que lhe caía em cascata sobre as espáduas. Procedia ao arranjo do rosto, pois tinha urna borla de pó de arroz na mão. O seu bonito rosto via-se ao espelho e Virgil reconheceu-a imediatamente. Era a mulher que procurava e, apesar de todo o tempo que se passara, ainda lhe parecia mais atraente. Mas assim corno o rosto e o busto dela se via no espelho, também lá apareceu a garbosa figura de Virgil. Ao vê-lo, ela deixou cair a borla e a caixa de pó de arroz no solo e emitiu um grito de angústia ao mesmo tempo que voltava o rosto para ele, os seus olhos mostravam o espanto que lhe produzia tão inesperada aparição.
—Tu! Tu... aqui!... — exclamou ela, com voz rouca. Virgil fechou a porta com o pé, sem perder Elizabeth de vista, e exclamou, tentando pôr serenidade e frieza na voz:
--Sim... Não me esperavas, claro...
— Talvez sim e talvez não. Disseram-me que andavas à minha procura para me matar... Se foi para isso que vieste podes disparar quando, quiseres. Talvez seja melhor eu desaparecer do mundo...
— Isso é contigo. Eu passei três anos no Inferno, mu tive sempre gosto na vida, pois tinha urna dívida a saldar quando saísse.
—E vieste até mim para a saldar. Há outra pessoa que está à frente da lista. Depois não sei o que farei. Mas há algo que eu gostaria de saber. Quem te disse que eu te procurava para matar-te?
— Ele.
—Jerry?
— Sim, Jerry e não compreendo como pudeste entrar em Dodge sem te encherem de tiros.
— É assim tão difícil entrar aqui?
— Para ti, pelo menos parecia. Jerry tem montado um serviço de vigilância para quando chegarem as diligências. No caso de apareceres faziam de ti um crivo.
—Um ruidoso acolhimento. Mas, como me reconheceriam?
— Jerry apanhou o retrato que me ofereceste e ficou com ele. Este retrato conhecem-no de memória os dois homens que te esperavam. Não consigo explicar como passaste despercebido.
— Foi porque não vim na diligência.
— Então, como vieste?
— Como vaqueiro, conduzindo uma manada de bois através dessa infernal pradaria.
—Tu? Tu conduzindo reses?
— Muito baixo para mim, não é isso? No entanto, era o único meio de chegar até aqui. Quando um homem é acusado de ladrão e está inocente, quando o metem num cárcere e lhe confiscam o que ganhou trabalhando honestamente e o põem no dilema de ter que se esconder para não ser apedrejado como criminoso, que outra coisa pode fazer? Ela que parecia ter recuperado um pouco a serenidade, olhou intensamente para Virgil e respondeu:
— Se a tua ideia é tirares informações antes de tomares uma medida drástica comigo, não vejo inconveniente em satisfazer a tua curiosidade:
«Quando te prenderam e te acusaram de ter roubado o dinheiro do cofre do patrão e mostraram as provas que tinham encontrado no teu aposento, confesso sinceramente que acreditei que tinhas sido capaz de fazê-lo.
— Era essa a confiança que depositavas em mim?
—Julguei que desejando solucionar quanto antes o problema da nossa boda, foras tão insensato que recorreras a semelhante façanha para o resolver rapidamente. E confesso, que embora considerasse que descera bastante para unir a minha vida a um jogador profissional, não estava ainda tão corrompida para me casar com um ladrão marcado pela justiça.
«Não me importa que não acredites naquilo que te vou dizer, mas posso jurar que foi para mim um golpe demasiado rude. Criara ilusões acerca do futuro, julgava que podias ser o homem capaz de me redimir e sair do poço dos saloons e sofri a terrível amargura de ver desfeitas todas essas ilusões e saber-me enganada no amor que já sentia por ti, pois que a realidade mostrava que eras tão vil ou mais que muitos outros que conhecia.
«Passei dias terríveis, segui o processo com angústia, esperando algo que demonstrasse que a acusação era falsa, que aquelas provas não existiam... Não sei, algo que te libertasse da acusação e te ilibasse dessa culpa. Mas o «júri» não aceitou mais que as provas tangíveis e foste condenado e encarcerado como ladrão. «Na minha solidão, no meu desvairamento e na minha raiva, somente surgiu uma pessoa que tentou consolar-me. Foi Jerry, um homem que até então nada significara para mim, pois nunca demonstrara que eu lhe interessasse.
«Foi quem me consolou, me distraiu, quem pôs uma nota de compaixão na minha alma e era tal a minha angústia, que me deixei prender naquelas demonstrações de afeto.
«E foi ele quem acabou de tirar-te do meu pensamento, quando um dia me disse que se inteirara de algo que justificava a tua ignóbil ação. Garantiu-me que tinhas uma amante mexicana, a quem davas inúmeros presentes e por ela cometeras aquele roubo, já que aquilo que ganhavas era insuficiente para satisfazer os seus caprichos.
— Ele disse isso? E quem era essa afortunada que valia mais do que tu?
— Deu-me o nome. Disse-me que se chamava Esperanza, que trabalhava no «Dólar de Prata» e, que ao saber da tua prisão, fugira de Austin, temendo ver-se envolvida no caso.
«Feria-me imenso saber que eras um ladrão, mas como mulher, feria-me mais o meu amor-próprio saber que tinha sido enganada.
«Isto fez com que te desprezasse; e pensei noutro homem para me distrair e me ajudar a esquecer-te. «Esse homem foi Jerry. Mostrou-se amável, carinhoso, apaixonado. Mais tarde e após declarar-me o seu amor, prometeu que se casaria comigo e tornar-me-ia feliz como eu o merecia.
«Deixei-me levar pelo meu estado de alma; aceitei as suas relações, e se bem que não sentisse por ele um amor que não sonhara, confiava em que, com o tempo, me afeiçoasse de verdade. Um dia, aborrecido, disse-me que tivera urna luta com o irmão. Garantia que o irmão lhe devia uma quantidade enorme de dinheiro, e que não lho queria pagar.
«Jerry disse que exigira o dinheiro porque tinha grandes projetos. Com aquele dinheiro e com o que economizara, pensava em que nós fôssemos para Abilene, onde durante a temporada de verão podíamos ganhar dinheiro em abundância. A sua ideia era montar um saloon, mas desde o momento que o irmão não lhe pagava a dívida, tinha de trabalhar como gerente até arranjar a quantia necessária.
«Como as relações com o irmão eram impossíveis decidira abandonar Austin; pensara em mim para o acompanhar a Abilene onde trabalharíamos os dois, para reunir o suficiente para nos estabelecermos. Tanto se me dava estar num sítio como noutro; e julgava também que, afastando-me de Austin, mais facilmente te esqueceria e para não te ver quando saísses em liberdade.
«No dia seguinte partimos para Abilene. Eu ignorava o motivo que levava Jerry a querer sair de Austin, com tanta pressa. Só mais tarde é que soube a razão, mas já era tarde, e não tinha remédio.
«Trabalhámos os dois em Abilene. Ele conseguiu arrendar uma mesa de roleta, em que, segundo disse, ganhava todos os dias uma boa maquia e eu trabalhei num saloon onde ganhei o dinheiro que quis, pois corria em abundância.
«Ao terminar a temporada, quando Abilene voltou a ser uma povoação tranquila, falámos em voltar a Austin ou a Santo António, até à temporada seguinte. Foi então que disse que preferia trabalhar em Santo António, pois um amigo contara que tinhas saído em liberdade da prisão do Austin e te gabaras que havias de matar os dois, por estarmos juntos. «Garantiu-me não ter medo de ti e só queria evitar que eu não fosse maltratada, no caso de ele não estar presente.
«Propôs-me então a nossa vinda para Dodge, pois esta temporada seria o paraíso dos ganadeiros. Com tempo, antes de chegar a primavera, podia ultimar os seus projetos. Ia montar aqui um bom saloon e queria tê-lo a funcionar antes de chegarem as primeiras caravanas. Perante estas palavras, tive medo de voltar para o Sul, pois podia encontrar-te, e aceitei a proposta.
«Quando chegámos aqui, isto tinha o aspeto duma povoação sem importância. Era muito triste e aborrecido e Jerry não teve dificuldades em alugar este local, onde pensava estabelecer o saloon.
«Contou-me então, que embora tendo dinheiro, não possuía o suficiente para instalar o melhor saloon de Dodge e que necessitava da minha ajuda.
«Não sei que impulso me levou a negar. Não a negar, aias sim a entregá-lo sem garantias, e honestamente expôs-lhe a minha ideia. Ninguém sabia o que podia acontecer no dia seguinte, e não queria expor-me a ficar sem um dólar, depois de ter trabalhado tanto.
«Ele aborreceu-se pela minha desconfiança e, num acesso de orgulho, disse:
«—És uma estúpida em tratar-me assim e para que vejas que sou leal, faço-te uma proposta. Vou instalar o saloon e vou pô-lo em teu nome. Mas o benefício será a meias para os dois. Está bem?
«Ao ouvi-lo, arrependi-me do que dissera, mas o meu amor-próprio impediu-me de voltar atrás e aceitei. Julgo que foi a única coisa boa que fiz com respeito a ele. Montou-se o saloon, entreguei-lhe as minhas economias contra um documento assinado e tudo ficou pronto a funcionar.
«Mas antes que chegassem as primeiras manadas, já isto parecia uma Babel. Chegavam mais jogadores, abriam-se mais estabelecimentos e começavam a afluir mulheres dispostas a explorar os vaqueiros.
«E um dia, alguém me informou de que Jerry andava metido com uma rapariga chamada «Rosa, a Mexicana», artista de muita fama. Esperava um contrato e não se decidira ainda por nenhuma das várias ofertas recebidas.
«Não falei a Jerry acerca disto. Podia ser má-língua, e eu é que tinha de verificar a veracidade dos factos. Ele não me deu tempo a investigar, pois passados poucos dias disse-me:
«— Temos que ir pensando em contratar raparigas. Chegaram bastantes e há por onde escolher.
«— Bem — disse eu. — Se já são precisas, contratam-se.
«—Então, vou recomendar-te uma. Chegou uma artista mexicana que traz um grande cartel, obtido em todo o Oeste, e seria uma boa aquisição. «Revoltei-me ao ouvi-lo e respondi:
«— Boa aquisição, para ti, não é isso?
«— Que queres dizer?
«— Que sei da tua grande intimidade com ela e que st te agrada mais que eu, não o posso evitar. Mas não me julgues tão falta de sensibilidade que possa admitir aqui as tuas amantes.
«És uma estúpida! — gritou. — Acreditas em tudo o que te contam e eu não tolero isso. A mexicana é uma boa atração para o saloon e é do meu gosto que ela seja contratada. «Furiosa, gritei por minha vez:
«— Esqueces que sou a dona e também a gerente? Tu tens os teus grandes negócios de gado que te rendem bastante dinheiro; eu tenho esta casa para garantia do meu futuro; com o teu dinheiro a rapariga não precisa de trabalhar. Não tem nada a fazer aqui. Quem manda aqui sou eu.
«Aquilo exasperou-o. Ameaçou-me em pôr-me fora, apesar da casa estar em meu nome, mas não me assustou. Se ele é duro, eu não lhe fico, atrás quando é preciso.
«A partir de então, cessaram as nossas relações. Vem, fica, vai, mas como se fosse um estranho, na casa; não levou nada para diante, porque teve medo do escândalo e das minhas reações. Talvez isto não fosse o pior. Um desengano mais na vida, talvez porque o meu destino é viver enganada e o mais longe possível da felicidade. O trágico foi não há muito tempo, quando apareceu no saloon um cliente que frequentara a «Estrela de Prata» em Austin. Quando me reconheceu, disse-me muito sério:
«— Pequena, tu que podias viver uma vida independente, ou pelo menos encontrar um homem relativamente digno, foste cair tão baixo, unindo-te a esse bandido do Jerry?
«Quem me falava assim, era um rancheiro muito estimado, que tem um rancho nas proximidades de Austin.
«Nervosa de ouvir aquela afirmação, perguntei:
«— Que quer dizer com isso, senhor Milton? Não sei porque Jerry há-de ser alcunhado de bandido.
«— Quer isso dizer que ignoras as patifarias feitas por Jerry antes de sair de Austin?
«— Patifarias? Ignoro o que quer dizer.
— Nesse caso informar-te-ei de tudo o que se passou. Quem me contou foi o ajudante que Virgil tinha na «Estrela de Prata» antes do sucedido.
«Segundo me contou, Jerry tentou assassiná-lo uma noite, porque sabia de mais. Jerry chegou a Austin na noite anterior ao roubo do cofre e entrou e saiu furtivamente do saloon. O ajudante de Virgil viu-o e não disse nada, mas no dia seguinte, quando se descobriu o roubo e Jerry apareceu, dizendo que chegara nesse dia à cidade, o homem suspeitou de qualquer coisa e foi tão imprudente que lho disse. Jerry ameaçou-o de morte se desse com a língua nos dentes e uma noite deu-lhe três tiros, deixando o ajudante às portas da morte. Quando este saiu do hospital, procurou Jerry, mas não o encontrou.
«Em troca, soube que Jerry discutira com o irmão, desaparecendo em seguida e mais tarde soube-se da existência dum cheque falsificado, recaindo as suspeitas sobre Jerry.
«Foi isto que ele me contou. A patifaria causou quase a ruína do irmão de Jerry que teve de traspassar o saloon.
«A revelação foi para mim um autêntico choque. Então comecei a ver claro em muitas coisas e a mais cruel vergonha se apoderou de mim. «Compreendi que o patife manobrava assim para se apoderar duns milhares de dólares e para se meter na minha vida. Era esta a situação desesperada em que eu me encontrava e que já não tinha remédio.
«Com toda a raiva que me dominava, lancei-lhe em cara as suas patifarias. Ao princípio, tentou negar, gritando que lhe dissesse quem me informara. Mas neguei; não queria prejudicar quem me abrira os olhos e, no fim, irado, disse que não lhe importava a minha opinião. Convencera-se que eu não era a mulher que lhe convinha, pois não nascera para a podridão em que me queria lançar.
«E por fim, digo-te que aqui goza duma• fama péssima e é odiado de morte, mas ninguém se atreve a meter-lhe uma bala na cabeça. Rodeou-se duma quadrilha de pistoleiros com a qual impõe o terror na cidade e manobra contra os negociantes, a quem ameaça de morte, quando algum quer comprar gado que ele pretende.
«Quebrámos toda a intimidade. Vem aqui, mas não passa do bar e exige os seus lucros. Estou desesperada e a minha ideia era, quando acabasse a temporada, traspassar o saloon, e fugir para longe, onde ninguém me conhecesse.
«Esta é a história. Para mim, é indiferente que acredites ou não. Se vieste para matar-me, livra-me do fardo da vida, que te agradeço, mas jura-me que o matarás também a ele.
Elizabeth, pálida, transtornada pela dor e pela raiva, deixara-se cair no tamborete, e com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cara entre as mãos, chorava em silêncio. Ele, rígido, contemplava-a com mais dó que raiva. Compreendia os desgostos dela, do engano, das misérias e amarguras vividas junto daquele miserável e os seus braços lutavam por estender-se e enlaçá-la com paixão.
Mas algo os detinha, talvez a recordação, talvez a vergonha duma entrega tão rápida e conteve-se. Por fim, aproximou-se dela e, com voz rouca, disse: /
— Levanta essa cara, Elizabeth.
— Deixa-me, Virgil, mata-me ou foge do meu lado. Sou uma mulher indigna e é melhor que te esqueças de mim. Se vieste para castigar Jerry e o conseguires, ficarei a dever-te essa consolação, mas não te poderei pagar, porque nada digno de ti te poderei oferecer.
— A morte de Jerry está decretada e os minutos de vida que lhe restam estão contados. Agora, se pensas que podes fazer algo por mim, só te peço uma coisa.
— Diz qual é.
— Vou matar, Jerry, mas quero ter uma justificação para mostrar ao xerife, quando tenha de ir à presença dele, se for esse o caso. Quero que escrevas num papel tudo o que o rancheiro te contou de Jerry e o assines. Se não o fizeres... o final será o mesmo. Ela levantou-se, abriu a gaveta dum pequeno móvel e tirando papel e caneta, escreveu durante alguns minutos. Depois, entregou o papel a Virgil, dizendo:
—Diz se está bem assim. Ele leu e respondeu:
—Está muito bem. Era o que necessitava. Retrocedeu.
Ela, angustiada, exclamou:
— Aonde vais?
— À praça, presenciar o leilão. É lá que Jerry acabará a sua carreira de bandido.
— Não, pela tua vida, não vás lá! Tem junto dele todos os seus pistoleiros!
-- Não tenho medo. Também tenho lá oito homens decididos, dispostos a ajudar-me, e talvez a estas horas, esses pistoleiros estejam convertidos em simples borregos. Está tudo pronto para a grande final.
— Se é assim... Desejo-te mais sorte que aquela que tiveste até agora e a ele todo o sofrimento que merece... Adeus, Virgil, perdoa-me se te fiz tanto mal, mas foi inconscientemente; como tu, fui vítima da fatalidade e bem o tenho pago.
Mas ele, com voz fremente, disse:
— Vou, mas... voltarei, Elizabeth. Ainda temos muito que falar. Mas não é este o momento de fazê-lo. Quando tudo tenha terminado, voltarei.
E saiu ao corredor, para abandonar o saloon, não por onde entrara, mas sim pela porta principal.

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