terça-feira, 24 de outubro de 2017

PAS796. Uma jovem quer volter ao local da noite negra

A rapariga levantou-se e atravessou o restaurante. Andava lentamente e o fino tecido do seu belo vestido envolvia-lhe as pernas, modelando pormenorizadamente a perfeição das suas linhas. Dexter Clinton esqueceu-se de Huong, dos filhos, das três espingardas, dos pratos e do balde destinado a recolher o sangue... só era capaz de pensar na beleza daquela mulher.
Kent Slater sorriu enquanto as suas sardas mudavam de cor. Isto demonstrava que o vaqueiro estava a ruborizar-se. Suas largas mãos correram pela espalhafatosa camisa e suspirou.
— Deixa-os, Huong, parecem boas pessoas — disse a j ovem suavemente.
— E somos, não há dúvida, senhora... apressou-se Clinton a confirmar.
— Wigmore, Rebeca Wigmore — disse a jovem.
— Todos parecem boas pessoas, mas poucos o são, na verdade. Há muitos anos que lido com vaqueiros e julgo conhecer todas as suas manhas — asseverou Huong, abaixando a espingarda.
— Oh! Mas ele fala tão bem como tu e eu! — exclamou Clinton, surpreendido.
— Melhor, seus pés tortos, muito melhor que tu e o teu companheiro. Só falo mal quando me apetece, e, par dormires tranquilamente, sempre te direi que nasci em Omaha e meu pai chegou aos Estados Unidos quando tinha doze anos. Vamos, filhos... Mas fique um de você a vigiar a porta. Não duvido da palavra da menina Wigore, mas qualquer destes dois tinhosos é capaz de a matar e fugir com o dinheiro.
— Maldito prato de leite-creme! — vociferou Clinton, levando a mão ao revólver.
Mas afastou-a rapidamente por ter observado que os filhos de Huong continuavam a sorrir... com as espingardas prontas a disparar. O domador de potros sorriu também, a pensar que chegaria a oportunidade de se desforrar do mau bocado que esses três canários sorridentes lhe tinham feito passar.
— Venham para a minha mesa, quero falar convosco — disse Rebeca.
Os dois vaqueiros seguiram-na sem hesitações. Tanto Kent como Dexter estavam satisfeitos por se terem livrado dos pratos... Apesar de preferirem morrer, antes de isso suceder lavariam os pratos.
Rebeca indicou-lhes umas cadeiras e ela sentou-se na mesma que ocupara havia momentos. Chamou Huong que acorreu entre reverências, e disse-lhe:
— Uma garrafa de uísque e dois copos para os meus amigos.
Dexter Clinton sentiu imenso desejo de se levantar lançar o grito dos condutores de manadas, mas pensou que isso era muito estridente para a doce e encantador mulherzinha do Leste... e calou-se.
— Por que foi socorrer-nos, «miss» Wigmore? — perguntou Slater, o mais prático dos dois... embora emprestasse dinheiro ao amigo.
— Vou responder-lhe com outra pergunta: é verdade que são excelentes cavaleiros e profundos conhecedores de todos os caminhos que partem de Dodge até à fronteira do Rio Grande? — inquiriu a jovem, observando atentamente os dois vaqueiros.
— Eu nasci num carro que ia de Dodge para Santa Fé, ainda Dodge City não existia no mapa. Depois, todos os anos, voltava a percorrer o mesmo caminho — respondeu Clinton, nascido no Texas, mas que, realmente, conhecia bem as rotas do sul.
— Meu pai era guia de caravanas, e eu aprendi com ele — afirmou Slater, sem torpedear a verdade, coisa rara nele, pois, como bom vaqueiro, tendia para o exagero e até para inventar algumas historietas.
— Nesse caso, devo esclarecer que decidi pagar a conta porque necessito de dois homens nas vossas condições. Tudo está pronto para seguirmos até alcançarmos o sul, mas não encontro guias — disse Rebeca.
— A que região do Sul pretende ir? — volveu Slater.
O vaqueiro possuía olfato especial para desvendar mistérios, e quase nunca falhava. Pelo menos, não falhava duas vezes consecutivas. Nesse dia, porém, tinha falhado já uma vez ao ceder à tentação de jogar com batoteiros profissionais, e nem se apercebera do logro...
Todavia, na questão de Rebeca Wigmore o seu olfato especial não falhava. Era estranho que, não havendo manadas a conduzir nem caravanas de Califórnia para Texas, nessa época do ano, não tivesse a rapariga encontrado nenhum guia, pois viajar com tão linda boneca devia ser autêntica delícia.
— Quero ir a Arizona, mesmo ao centro da região que se estende entre os rios Salt e Gila, nas proximidades dos limites que separam Arizona do Novo México — respondeu Rebeca, sem titubear, francamente.
— Co'os diabos! Em pleno território «apache»...! — exclamou Clinton, afastando o copo de uísque, que tinha já na boca.
— Ninguém quererá acompanhá-la, não tenha dúvidas. Aquilo é o inferno com as letras todas. E, ainda por cima, os «apaches» são piores que os demónios — afirmou Slater.
— Nada, ninguém me impedirá... Tenho de ir ao planalto do Mogolão. Encontra-se lá o cadáver de meu pai e quem sabe se descobriremos o tesouro que também as areias do deserto escondem — insistiu Rebeca.
— Quando morreu seu pai? — perguntou Clinton.
— Não sei bem... Há mais de dois anos que esteve nesta aldeia com outros dois professores da Universidade de Pensilvânia. Iam em dois carros e levavam quatro mestiços como guias. Sei que chegaram a «Fort Combie» e que certo comandante Spencer lhes forneceu uma escolta... Depois não tivemos mais notícias deles até que, há quatro meses, um soldado encontrou vários objetos pertencentes à expedição do meu pai. Como num deles estava gravado o nome da Universidade, o comandante enviou-os aos seus legítimos proprietários.
— Onde foi que o soldado encontrou esses objetos? — inquiriu Slater.
— Numa aldeia «apache». E um dos prisioneiros disse que tinham chacinado todos os componentes da expedição.
— Não tenha dúvidas. Os «apaches» são mesmo assim.
Aonde eles caem, ninguém fica vivo... nem as serpentes cascavéis. Como sabe o sítio exato em que a expedição do seu pai foi atacada? — perguntou Clinton.
— Não sei bem, mas tenho um mapa traçado por meu pai. Quero seguir a rota que ele marcou até encontrar os restos da expedição.
— Não conseguirá o que pretende. Se tiver muita sorte, ainda chegará ao território dos índios, mas duvido que alcance as margens do rio Canadian. Não é trabalho para mulheres como a senhora, e até seria fatal para muitos homens. Além disso, ninguém há-de querer aventurar--se por essas terras, consigo ou com outra pessoa qualquer — explicou Slater.
Tenho já três carros e dois condutores para cada um deles. Contratei mais três homens que servirão de escolta. Preciso, agora, de um guia... e se forem dois, muito melhor — respondeu Rebeca.
 - Não conte connosco. Os «apaches» são autênticos demónios e aparecem quando os homens, que passam por essas terras, menos esperam. Embora o Exército esteja a persegui-los em toda a parte e os agricultores não lhes concedam um momento de repouso, há pequenos grupos espalhados pelo interior. Um desses grupos, apenas de trinta homens a cavalo, atacou «Fort Combie» e matou a guarnição toda... incluindo o comandante Spencer — afirmou Slater.
— Desde Santa Fé, em Novo México, até Fénix, capital do território de Arizona, e sem contar os «apaches», há por ali centenas de bandos de indesejáveis, e criminosos de várias categorias, ainda piores que os peles-vermelhas... e a senhora é demasiadamente bonita — acrescentou Clinton.
— Que pretende insinuar? — perguntou Rebeca, surpreendida.
— Que, para eles, «miss» Wigmore seria o melhor despojo de guerra — afirmou Slater, brutalmente.
— É impossível! Estamos nos Estados Unidos e a Lei' defende os cidadãos da República. A Lei protege-nos... — disse Rebeca.
— Nesses territórios, a Lei é desconhecida. Cada homem impõe a sua lei... e obriga os mais cobardes a cumpri-la... à força de balas. Não se esqueça... Dodge City, ao lado de outras regiões selvagens, é um verdadeiro oásis de paz e tranquilidade... Uma coisa mais ou menos parecida com o céu — pormenorizou Slater.
— Não posso desistir... Nem quero... Tenho de terminar a obra do meu pai! É um dever moral! — exclamou Rebeca.
— Isso é lá consigo... Desejamos-lhe felicidades. Vamos, Dexter — disse Slater, erguendo-se.
Deu uns passos em direção da porta. Queria respirar. Mas, ao ver os dois canos da espingarda que o filho de Huong empunhava, retrocedeu rapidamente e voltou a sentar-se. Esquecera-se, por completo, dos chineses e, na ânsia de estrangular o susto que a traiçoeira arma lhe tinha causado, encheu o copo de uísque e esvaziou-o de um só trago.
— Que aconteceu? — perguntou Clinton, que não tinha reparado em coisa alguma.
— Eu vou despertar a vossa memória... — disse Rebeca, a sorrir; — O filho de Huong vigia a porta e disparará se fugirem do restaurante sem ter pago o jantar.
— Mas a senhora disse que pagaria tudo! — exclamou Slater.
— Disse, não há dúvidas... no caso de anuírem à minha proposta. Hão-de compreender que não estou disposta a pagar as despesas feitas por dois simples desconhecidos — volveu Rebeca, a sorrir, mas não como os chineses. Era um sorriso calmo e sincero.
— Por essa é que eu não esperava! -- apostrofou Clinton. — Com mil raios!
-- Acautelem-se, digo-lhes eu, pois estão a apontar uma espingarda para os matar, ali, da porta da cozinha, e creio que os chineses disparam com muita facilidade. Que horror! — preveniu a rapariga.
Clinton voltou-se e gemeu aflitiva e prolongadamente, ao ver as ameaçadoras espingardas de dois canos apontadas diretamente para as suas. costas. Nunca soube quem assestava a miserável' arma contra ele... Seria o pai, o tal Huong? Seria um dos filhos? Mistério! Para Dexter, os três chineses eram exatamente iguais.
— Entre chineses, pratos, espingardas e índios «apaches»... prefiro os peles-vermelhas. Pelo menos, ainda estão muito longe daqui — observou Slater.
— Sou da mesma opinião. Quando saímos de Dodge Cite? — perguntou Clinton.
— Amanhã de manhã. Devo, porém, avisá-los que já dormirão esta noite no meu acampamento e que sou capaz de os mandar amarrar para não fugirem — advertiu Rebeca.
— Não é preciso mandar amarrar-nos. Quando damos a nossa palavra, sabemos cumpri-la, seja como for — retorquiu Slater, com a maior seriedade.
- Estou certa disso — afirmou Rebeca, num acento grave e sério. — Quanto vamos ganhar, patroa? — perguntou Clinton.
— Duzentos dólares por mês. Sim, é um pouco mais do que ganhavam a conduzir manadas — declarou a jovem, que sabia já muito bem quanto era o ordenado dos vaqueiros.
— Sim, é quase três vezes mais... Não se esqueça, porém, dos «apaches». Valem um dinheirão! — disse Clinton.
— Bem, já nos podemos retirar; a não ser que ainda queiram comer alguma coisa — disse a rapariga, deixando umas notas em cima da mesa.
— Eu não quero mais nada. Só gostaria da garrafa de uísque. Tenho a garganta cheia de pó, de terra... nem já sei há quantos dias e receio que vá ter mais pó e mais terra na garganta antes de tirar a porcaria que está encafuada nesse maldito corredor... O uísque é o melhor remédio para semelhantes enfermidades — respondeu Clinton, com a garrafa já bem segura.
Huong apareceu logo, desdobrado em reverências muito especiais, dedicadas ao solene ato de receber dinheiro. O chinês instituíra três graus de reverências. Primeiro grau — reverências para atender os clientes: várias incli-nações do tronco até à cintura. Segundo grau — reverencias para anotar os pedidos dos clientes: simples movimentos de cabeça e alguns «breves» sorrisinhos. Terceiro grau — reverências de «receber dinheiro», nas quais participavam todos os músculos do seu magro corpo, desde os músculos da cabeça até aos dos tornozelos... E, ao receber o dinheiro, estremecia como um pudim de gelatina.
— Boas noites, senhores; boas noites, «miss» Wigmore — desfez-se o chinês em cumprimentos de despedida.
— Talvez voltamos a estar na presença um do outro, muito brevemente — comentou Clinton em voz baixa, ao sair do restaurante.

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