sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

PAS702. A arte de domar uma égua selvagem

Cathy dormiu bem naquela noite, o que não era muito de estranhar, pois sofria nos últimos tempos de insónias com muita frequência. Desde o seu encontro com os bandidos, precisando melhor, embora não em consequência dele.
Mas os seus propósitos de vingança contra o culpado estavam ameaçados de morrer por extinção, pois Gentry Keller parecia haver desaparecido tragado pelas montanhas e ninguém voltara a vê-lo em Sheridan nem em Akron.
E ela precisava de o humilhar, fazê-lo pagar o ultraje que lhe infligira ao roubar-lhe aquele beijo, cujo fogo sentia ainda a queimar-lhe os lábios, enrubescendo-a de vergonha cada vez que o recordava.
Mas se durante toda a semana, após a festa de Sally, dominara a sua impaciência com a esperança de que no domingo o poderia ver na cidade, essa esperança desvanecera-se por completo. Por isso, depois de uma noite inteira sem dormir, resolveu ir visitá-lo ao seu rancho.
Entre as terras da fazenda Garfield e a que fora de Kerr havia apenas uma franja montanhosa de escassa importância e que não era ponto de passagem para parte alguma, pelo que as possibilidades de ter um encontro desagradável eram tão escassas que não valia a pena toma-las em consideração.
Contudo, Cathy não estava muito certa de que os seus pais pensassem da mesma maneira, e muito menos que estivessem de acordo com a sua iniciativa de visitar sozinha um homem jovem e solteiro, pelo que resolveu não comunicar a ninguém o seu propósito, dizendo apenas que tencionava dar um passeio matinal.
Que o foi, realmente, e delicioso, certamente.
Ao transpor a área montanhosa que separava os dois ranchos, esquilos e gralhas escondiam-se na espessura.
Sob uma espumante cascata, da qual subia um poético e maravilhoso cântico murmulhante, grandes trutas nadavam no fundo cristalino da água, cheio de brancos seixos. Um lagarto de bom tamanho fugiu assustado, internando-se na verde penumbra da vegetação. Nos pontos mais soalheiros, os fetos, os lírios e uma gama variada de plantas multicores inclinavam-se ou balanceavam suavemente ao sopro preguiçoso da brisa.
Em dado momento, de um parapeito assomado sobre a pradaria, pôde dominar o conjunto de instalações do rancho que fora de Kerr, que dali se viam muito bem, não obstante a distância.
Advertiu-se de alguns movimentos que atraíram a sua atenção para um pequeno curral com uma alta vedação, no alto da qual se viam dois homens encarrapitados, enquanto mais três, no seu interior, sujeitavam e selavam o único animal ali encerrado e que se debatia furiosamente.
— Oh! meu Deus!
Cathy levou as mãos ao peito, incrédula e consternada, pois aquela labareda dourada que reluzia ao sol era inconfundível e já a vira antes, na inolvidável ocasião em que fugira à armadilha preparada junto do lago, no Choked Cannyon.
Como era possível que aquele formoso animal estivesse cativo?
A jovem ficou aturdida. Haviam-na impressionado extraordinariamente tanto a inteligência como a beleza do baio e experimentara uma grande alegria ao vê-lo escapar. Mas agora, não obstante, não sabia se a impressionava mais a deceção de ver aprisionado o indómito bruto, ou a sua admiração pelo homem capaz de o caçar vivo e incólume, não obstante a sua extraordinária rapidez e apurado instinto.
Porque nem por um momento duvidou que fora Gentry Keller quem o tinha caçado.
A contemplação do baio e a certeza de que se estavam a fazer os necessários preparativos para o montar, fizeram que a rapariga esquecesse completamente os absurdos propósitos de vingança que a tinham levado ali e, metendo as esporas nos flancos da sua montada, empreendeu a descida com uma rapidez desaconselhada pela prudência.
A ondulante linha do mal traçado caminho terminava no sopé da montanha, onde uma tosca ponte de grossos troncos ligava esta com a planura, através de um largo arroio que descia serpenteando das alturas, em remansos ou saltos espume jantes.
A ponte era estreita e não muito segura, mas Cathy atravessou-a a todo o galope, pois uma nuvem de poeira elevava-se do pequeno curral, tornando-lhe difícil distinguir o cavaleiro que pugnava por se manter na sela do serril cavalo e dominá-lo.
Cathy nunca estivera ali, pois o antigo proprietário jamais fora amigo de seu pai, mas tinha ouvido dizer que Kerr era um homem pouco cuidadoso em questões de ordem e asseio, e, renunciando a lutar havia algum tempo, tinha a sua fazenda completamente abandonada, pelo que se admirou dos arranjos e reparações, alguns deles bastante visíveis, que notava por toda a parte, e que não podiam deixar de se dever ao novo proprietário, não obstante o pouco tempo decorrido desde que adquirira o rancho.
No entanto, não se fixou em todos os pormenores, de tal maneira a sua atenção se concentrava no pequeno curral, onde os homens, parecendo advertir-se da sua aproximação, se voltavam para olhar curiosamente, enquanto um deles parecia destacar-se dos restantes para caminhar ao seu encontro.
Cathy deteve a sua montada e o homem aproximou-se, tomando as rédeas do animal junto ao freio. A rapariga verificou tratar-se de um homem já idoso, de magro e apergaminhado rosto no qual brilhavam estranhamente uns amarelados olhos de falcão que a examinavam penetrantemente.
— É a menina Garfield, não?
— Sim. Lamentaria muito havê-los interrompido. Eu queria apenas...
— Chamo-me Sad e sou o capataz. Quer desmontar? Deve ter sido um bom passeio e é natural que esteja cansada.
— Obrigada.
Ao aceitar a ajuda do capataz e saltar em terra, Cathy sorriu timidamente sem saber que dizer.
Mas não teve de se esforçar.
— Gen está a domar aquela égua dourada. Quer assistir?
A rapariga sorria agora mais abertamente, desvanecida a sua timidez. Sem saber porquê, sentia que o velho Sad era seu amigo.
— Oh, ficaria encantada!
— Será capaz de se atrever a encarrapitar-se ali em cima ... Na ópera é de onde melhor se vê ... Claro que me atrevo.
Cathy era «western» e rancheira de nascimento, pelo que sabia perfeitamente que os vaqueiros denominavam de «ópera» a última travessa da vedação.
— Nesse caso, venha. Eu ajudá-la-ei a subir.
Um momento depois a jovem estava também encavalitada no alto da cerca, junto do veterano vaqueiro, olhando com os olhos muito abertos a violenta luta que estava a desenrolar-se no recinto.
— Está quase terminado — ouviu o capataz dizer-lhe. -- Este bicho é de uma energia inesgotável. Já foi vencido, mas nega-se ainda a admiti-lo.
No entanto, Cathy não conseguiu advertir-se de qualquer indício que a levasse a supor que o animal estava dominado.
A égua, que sabia agora ser o magnífico baio, espinoteava como se fosse de borracha, a cabeça encolhida entre as patas, rígidas estas, o dorso violentamente arqueado, numa vertiginosa sucessão de saltos de natureza a parecer impossível que alguém pudesse manter-se sobre a sela.
Mas Gen permanecia ali e ali continuou, até que o animal se deteve para tomar fôlego, pausa que o cavaleiro aproveitou para o exasperar, metendo-lhe as esporas ao longo das ilhargas.
«Gold Dust» (1), como mentalmente havia já batizado a égua, elevou as mãos, batendo o espaço com os cascos e relinchando o seu protesto. Depois, num violento impulso, arrancou em desenfreada correria que cortou subitamente, cravando as patas dianteiras no solo e deixando-se cair de flanco contra a vedação.
Cathy soltou um grito de angústia, pois numa ocasião idêntica, sendo ainda muito criança, vira fazer aquilo mesmo a um cavalo selvagem e, a partir de então, o seu domador passou a ocupar-se da cozinha de campanha do rancho, coxo e inutilizado para montar.
No entanto, desta vez foi diferente. Gene soubera retirar a perna antes de se verificar o intento do bruto de lha esmagar, deixando-se ficar montado de lado até o animal se afastar da paliçada.
— Está assustada. É o final — gritou Sad.
Efetivamente, «Gold Dust» debatia-se cegamente e com tal violência que só a sua enorme resistência podia permitir. No entanto, tornava-se impossível prolongá-la por muito mais tempo.
De facto, começou a correr loucamente em redor do recinto, até que, pouco a pouco, foi obedecendo à vontade do cavaleiro, que lhe fez diminuir a marcha, reduzindo o furioso galope a trote moderado, dirigindo-o para um lado e para o outro até detê-lo completamente.
— Já está! — voltou Sad a exclamar, entusiasmado. Não há outro cavaleiro como Gen.
-- Oh!, com toda a certeza que não! — concordou a excitada Cathy com muito mais veemência do que convinha a uma senhora.
— Agora terei de lhe dar uma fricção e agasalhar bem esse animal para que não apanhe um resfriamento. Dá--me licença, menina Garfield?
— Naturalmente.
O capataz saltara já para o interior da cerca com uma agilidade perfeitamente juvenil, assim como os vaqueiros, que se agruparam em torno do baio e do seu cavaleiro.
— Bom trabalho! — ouviu Cathy dizer ao rapaz.
Com crescente inquietação viu Gen desmontar fatigadamente e, entregando as rédeas ao capataz, desapertar o lenço do pescoço e dirigir-se para ela, enxugando o bronzeado rosto brilhante de suor onde ressaltavam, cada vez mais intensamente à medida que se aproximava, o branco da sua impecável dentadura e o azul dos seus grandes olhos que a contemplavam com perturbante firmeza.
— Que alegria, Cathy! exclamou ele. — Estou contentíssimo de a ver.
Ela notou que o rosto masculino se avermelhara um tanto e sorriu, fazendo um esforço para dominar a timidez de que se sentia invadida.
— Custa a 'acreditar que assim seja — redarguiu a jovem, procurando mostrar-se jovial, mas sem estar muito convencida de o conseguir. Não vivemos tão longe que não possa visitar-nos uma vez por outra...
— Está a ser injusta — protestou ele. — Depois do ocorrido na festa de Sally Ormond não estava muito certo de ser bem recebido se a visitasse, e por outro lado, como deve supor, estou cheio de trabalho.
— É sempre possível arranjar algum tempo para aquilo que realmente se deseja. De qualquer modo, aceito a sua escusa, visto que teve a delicadeza de a engenhar.
— Conceda-me alguns momentos para me desfazer de toda esta sujidade e tentarei convencê-la de que não se trata de nenhuma escusa.
— Concedido — riu ela, pois Gen estava realmente coberto de pó e de suor depois do seu encarniçado combate com o baio.
— Permita-me...
O jovem elevou os braços para abarcar entre as suas mãos a breve cintura da jovem, depositando-a suavemente no solo com a maior facilidade, tal como se ela fosse uma pena.
Mas embora não o parecendo, estava a realizar um esforço superior às suas forças, não propriamente físicas.
Ela estava adorável com o seu elegante traje de amazona e, ao tomar-lhe a cintura para a depositar no solo, ela elevara para ele a sua linda cabeça e sorrira-lhe de um modo tão enfeitiçador, que Gen estivera quase a apertá-la nos braços e a comê-la com beijos.
Mas em vez disso dedicara-lhe uma galante reverência ao mesmo tempo que lhe indicava a casa com um gesto da mão.
— Visto que sou obrigado a abandoná-la por alguns minutos, quero deixá-la ao menos confortavelmente instalada.
— Não se preocupe. Prefiro ficar por aqui a bisbilhotar.
— Está em sua casa. Não conhecia o rancho? — perguntou-lhe Gen, solicito.
— Não. O senhor Kerr e meu pai nunca se entenderam lá muito bem.
— Sei que Kerr acusava seu pai de todas as suas perdas.
-- Isso é absurdo!
— Deve tratar-se de um passatempo local, pois agora Ormond, Morden e outros manifestam a opinião de que sou eu quem lhes reduz as manadas.
— Meu pai não pensa desse modo.
— Na realidade não creio que alguém faça outra coisa que não seja desafogar o seu mau humor. A partir de agora, poderá haver motivo para dúvidas, visto que também eu me tornei ganadeiro. Mas anteriormente resultaria estúpida tal acusação, visto que, desde que cheguei a esta terra, nunca tive, comprei ou vendi uma única vaca. Inteira-se, entenda-se — acrescentou com um sorriso.
Deixou-a instalada no terraço da casa e foi a correr tomar um rápido banho e mudar de roupa, o que não lhe levou mais de quinze minutos. Ao regressar, já com melhor aspeto, verificou que ela não estava onde a deixara, mas sim novamente na cerca onde se encontrava a égua dourada.
— Agrada-lhe? — perguntou ao aproximar-se.
Ela voltou-se, sorrindo.
— Oh! É maravilhosa! Tenciona vendê-la?
-- Não.
Cathy desviou os olhos com certa precipitação, a fim de que ele não se advertisse do seu desencanto.
-- Lamento murmurou. — Gostaria imenso de a possuir.
— Ainda bem.
A rapariga elevou vivamente a cabeça, olhando-o entre surpreendida e desgostada.
— Você não pode sabê-lo -- continuou Gen com um leve sorriso —, mas essa égua escapou-se-nos quando apanhámos toda a manada a que pertencia. Foi precisamente no momento em que chegou o seu vaqueiro com «Stormy». Não obstante, tive-a muito perto, quase ao alcance do meu laço, e pude verificar que era um animal jovem, de bom sangue, veloz e resistente. E decidi que seria uma boa montada para si.
Ela olhou-o de novo, abrindo desmesuradamente os seus belos olhos.
— Para mim?!
— Exatamente. Agrada-lhe?
— Oh, claro que sim! Mas... quer dizer que a caçou para mim?
— Precisamente. Mal acabei de encerrar a manada, tomei dois cavalos frescos e, juntamente com «Storny», iniciei a perseguição. Foi longa e cansativa, mas, finalmente, depois de deixar completamente esgotados os dois animais de reserva, a resistência excecional do meu zaino permitiu que me aproximasse o suficiente para a laçar.
Cathy escutava-o com os olhos brilhantes e a respiração alterada.
— E vai-ma vender? — perguntou, incrédula. Gen sacudiu a cabeça negativamente.
— Já lhe disse que essa égua não está à venda
O brilho luminoso que por momentos transpareceu nas escuras pupilas da rapariga desapareceu lentamente.
— Agradeço-lhe muito, senhor Keller, mas se o entendi bem, não seria correto que aceitasse a sua oferta e, de qualquer modo, tão-pouco mo permitiriam.
Gene desatou a rir.
— Ainda tenho de a domar — disse. Temos tempo.
Ela olhou-o sem compreender até descobrir um fulgor azulíneo nas pupilas masculinas que dançava e ria. Então sorriu lentamente ao mesmo tempo que também fulgurava qualquer coisa na aveludada profundidade dos seus olhos.
— Está assim tão certo de o conseguir? perguntou com intenção, semicerrando os seus belos olhos que brilhavam de malícia. — A si mesmo lhe ouvi dizer que as éguas são mais difíceis de domar.
— É uma questão de habilidade e de firmeza — afirmou Gen.
— Sente-se muito seguro de si mesmo.
— Para triunfar é condição imprescindível.
Ela inclinou a cabeça sorrindo-lhe, enquanto começava a calçar as luvas.
— Devo dizer que lhe desejo o triunfo?
— Sim, desde que o diga sinceramente.
Ela não respondeu, dirigindo-se para a casa, em frente da qual se encontrava o seu cavalo.
— Confio em que não se disponha a deixar-nos já — disse ele, colocando-se a seu lado. — Fique para almoçar e, depois, se mo permitir, acompanhá-la-ei.
— Não é necessário. Você deve estar muito fatigado.
— O banho pôs-me como novo e, em qualquer caso, desfrutar da sua companhia compensa-me sobejamente de qualquer esforço. Ela deitou-lhe um olhar velado pelas suas longas pestanas.
— Agradeço-lhe muito, mas não posso ficar. Meus pais não sabem que vim aqui e ficariam alarmados se não estivesse de regresso à hora do almoço.
— Como você queira. Conceda-me apenas um momento para selar o meu cavalo.
-- Não se incomode.
-- Nada me poderia incomodar menos.
Deixou-a novamente para se dirigir rapidamente ao estábulo, de onde não tardou em regressar com o magnífico «Stormy» conduzido à rédea.
— A sua disposição — disse, inclinando-se junto do cavalo de Cathy, com as mãos entrelaçadas para ajudá-la a montar.
— Sentiria se lhe roubasse o seu tempo -- pretendeu ainda dissuadi-lo a jovem, inclinando-se para ele, uma vez sobre a sela.
-- Nunca o meu tempo foi tão bem empregado replicou Gen galantemente, montado por sua vez.
(1) «Poeira de ouro».

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