segunda-feira, 1 de novembro de 2021

ARZ133.06 Boicote à tragédia grega a partir do «saloon» flutuante

 Sentou-se num banco e pôs o chapéu em cima das pernas. Quando virou a cabeça, descobriu o prefeito, que tirava uma cadeira de um canto do camarote, para se sentar a sua excessivamente adornada esposa. Tyler também o viu. 

— Suba, xerife — convidou-o, depois de o comprimento. — Terei muito prazer em assistir ao espetáculo na sua companhia. Dizem que o de hoje é muito bom. 

E acrescentou ao ouvido de O'Farrell: 

— Nas outras noites adormeci. Não o pude evitar. As tragédias dos grandes autores gregos são joias do teatro mundial, mas maçadoras como os bêbedos. 

O xerife sentou-se e cumprimentou cerimoniosamente a esposa do prefeito. Ocupou um lugar à direita de Tyler, na parte mais afastada do palco. Faltavam apenas dois ou três minutos para o espetáculo começar, o que não impedia que a sala ao ar livre estivesse menos de meia. 

— Lamento o pobre Chapman — disse Tyler, fingidamente pesaroso. — Está a lutar como um bravo contra os graves problemas que o apoquentam. Consta-me que perde dinheiro. 

— Não é tanto por culpa do povo como da ilícita concorrência dos «saloons» flutuantes. Veja o de Douglas, iluminado da proa à popa como um brilhante arco-íris, a fazer sombra ao «Loving Kate». Não há direito. 

— É vergonhoso. Devia fazer-se uma lei que proibisse a permanência dos «saloons» no porto por mais de dois dias. Os «saloons» flutuantes foram sempre pássaros de arribação em viagem pelo rio. 

Naquele instante apagaram-se os bicos de gás do «Loving» e os espectadores ficaram mergulhados numa discreta meia-luz. Então abriu-se o camarote fronteiro ao do prefeito, no qual entraram Coleman e a mulher. Ao reconhecê-lo, pelo reflexo de uma luz do palco, Tyler sussurrou outra vez ao ouvido do xerife: 

— Não lhe ligue muita importância; é um pedante, vem ao teatro para disfarçar. A mim não me engana. 

— Que mais sabe de Coleman? 

— Está mais interessado do que ninguém na prosperidade dos «saloons». Recebe uma boa parte dos lucros. 

— Tem provas, prefeito? 

— Não, mas é o que imagino. Acaba de comprar um armazém de cereais e uma moagem na capital da região cerealífera, Kansas City. 

— Não há dúvida de que é uma notícia curiosa, «mister» Tyler. 

Abriram-se os reposteiros que formavam o pano de boca e apareceu o primeiro ator do imortal drama. Desde as primeiras cenas, o público pôde admirar a luxuosa decoração e o talento dos atores, orientados pelo diretor de cena, Chapman, dos bastidores, como se fossem títeres. As dúvidas de Hamlet, príncipe da Dinamarca, adquiriram um realismo impressionante na mímica e na declamação de toda a companhia, tanto dos atores principais como dos secundários. 

Justamente quando decorria uma cena culminante, o palco e parte da sala foram banhados pela luz que provinha do «saloon» de Douglas, amarrado a pouco mais de quinze metros do «Loving Kate». Além disso, para maior escárnio, soaram então uns tiros isolados que, repetidos pouco depois em maior proporção, conseguiram paralisar a ação e desconcertar os atores. 

Foram mais de cinco minutos de tiroteio e correrias no barco fluvial de Douglas. O barulho foi tão grande que William Chapman velo ao palco, cheio de cólera, mas também de lágrimas nos olhos. 

— Senhores! Bem veem que está tudo organizado contra a minha boa vontade, para me arruinar. Não há direito, senhores, que uma quadrilha de jogadores prospere a coberto da mal chamada lei, enquanto um pobre sonhador como eu oferece o mais seleto de um reportório que me custou anos a aprender. 

O prefeito levantou-se indignado, com a mão levantada a apontar para o «saloon». 

— Basta de atropelos inadmissíveis! — exclamou em tom solene. — A meu lado está o xerife, a quem, em nome do povo de São Luis, peço que prenda esses desordeiros, que decerto organizaram a desordem a propósito. 

O'Farrell saltou do camarote para a coberta. Em frente, Coleman sorria como um grande estúpido, com a vista posta no prefeito. Alguns espectadores, vendo que os atores permaneciam mudos e que pareciam ter-se esquecido do seu papel, batiam furiosamente com os pés e outros abandonavam a sala. 

— Não, por favor! — gritava Chapman. — Peço-lhes que tenham paciência. Os tiros e essa luz tão viva perturbaram-nos. 

Alguns poucos riram-se dele e dirigiram-se para a prancha; mas com o seu procedimento arrastaram outros. O'Farrell desceu entre uns vinte espectadores. Alguns subiram também ao «saloon» flutuante, não para colaborar com a autoridade, mas sim para se divertirem num estabelecimento fechado, embora estivessem a bordo. 

Perry Douglas recebeu-o no meio da sala, sentado à sua mesa com alguns dos seus esbirros. Entre os dedos cobertos de anéis segurava um havano, do qual de longe em longe puxava uma fumaça. 

— Olá, xerife! — exclamou. — Suspeito que também se aborreceu com as experiências tragicómicas de Chapman. Sente-se porque vai começar o desfile das mais bonitas artistas do Oeste. É meu convidado de honra. 

O'Farrell fitou-o com repugnância. 

— Você é ruim e traiçoeiro como um chacal 

Perry expeliu uma baforada de fumo. 

— Superarei completamente esse pobre pateta. O género ínfimo e frívolo dá mais dinheiro, mas chegará o momento em que montarei os melhores espetáculos do país. 

— Produz-me náuseas ouvi-lo falar. Garanto-lhe que o seu reinado no Missouri está a terminar. Aviso-o, Douglas, que, se tentar outra vez prejudicar rasteiramente os espetáculos do «Loving Kate», não hesitarei um só instante em metê-lo no calabouço. 

O outro levantou-se com expressão dura. 

— Que diz? O meu lema foi sempre jogar limpo. Você sabe que estou a financiar as loucuras de Chapman. Que diz agora? 

O xerife, muito irritado, apoiou as mãos na mesa e fitou o jogador. 

— Não só o meterei na cadeia, como selarei a entrada do seu «saloon». Entendeu? 

— É uma bravata, xerife — disse, encolhendo os ombros e sentando-se. — Tenho boas relações com a lei, como sabe. 

— Não lhe permitirei que se exceda. Inundou de luz o «Loving Kate» e provocou o tiroteio para prejudicar o espetáculo. 

— Oh, não! — protestou, tomando uma atitude inegavelmente cínica. — Tivemos de correr a tiro uns zaragateiros. Não é verdade, rapazes? 

Claro que os outros corroboraram as suas palavras. 

— Sente-se e falaremos depois. Não vê que já abriram as cortinas? O meu espetáculo começa agora. 

Efetivamente, saíram do palcozinho diversas raparigas belas e seminuas, que começaram a dançar e a cantar. As duzentas mesas estavam ocupadas por vaqueiros quase bêbedos, velhos comerciantes cujos olhos devoravam as jovens coristas e por jogadores. 

Douglas assumiu as suas funções de diretor de cena, fazendo sinais às raparigas e aos músicos. Depressa, porém, demonstrou a sua inaptidão com ordens e contraordens que provocaram uma confusão considerável. Com o rosto coberto de suor, fazendo poucos gestos, mas contrariado, Perry Douglas não fez caso das pancadinhas que O'Farrell lhe dava no ombro. Teve de lhe dar uma palmada mais forte. 

— Deixe essas coisas para quem perceba do ofício. Vamos! Preciso de si na coberta. 

Perry virou-se, bruscamente e olhou com desprezo para o xerife, do qual era mais alto quase uma cabeça. 

— Que é isto? Nunca virei as costas a um desordeiro como você. Aceitarei o seu desafio mais tarde. 

— O desafio está lançado desde que o conheci. Agora é outra coisa. Ordeno-lhe que apague as luzes que dificultam a representação no «Loving Kate». 

— Que diz? — protestou o outro, arqueando as sobrancelhas. — São luzes de minha propriedade, que posso acender e apagar quando me convenha. 

— Não estou de acordo. É uma concorrência desleal que não lhe permitirei. Vamos! Apague-as imediatamente! 

Disse-o com tanta energia e convicção, que Perry ficou aturdido. 

— Condescende, Perry — aconselhou Mackley. — O nosso «saloon» está cheio. E uma pequena satisfação que lhe podemos dar. 

Depois de refletir um momento, Douglas acedeu. 

— Está bem, xerife. Apagarei as luzes quando «miss» Laura terminar a sua atuação. 

— Não! Agora mesmo. 

Era verdade que Piky Laura aparecia no palco com uma saia florida, corpinho e blusa azul, de mangas curtas. Os seus cabelos dourados e o mistério dos seus olhos verdes desempenhavam um papel importante na encenação do seu número.

— Douglas, estou à espera! 

O interpelado parecia estonteado pela presença de «miss» Laura. Passava a língua pelos lábios, num transe de gozo íntimo. Fez um gesto e olhou de soslaio para o xerife. 

— Apaga-as, Alex, e que me deixe em paz de uma vez. 

O'Farrell não se mexeu do sítio de onde partia a escada que levava à coberta. Deu passagem ao pistoleiro, o qual, ajudado pelos seus companheiros, foi apagando os bicos de gás que iluminavam o «Loving». Quando regressou ao teatrinho, a multidão aclamava a loura e os mais atrevidos e boçais dirigiam-lhe frases de elogio ofensivas. 

— Vem cá, granjeirinha do diabo! Dá-me um bocadinho do mel dos teus lábios! 

— Oh, maravilhosa rainha das variedades do Oeste! Sou capaz de furar a pança do prefeito Tyler se me deres um caracol do teu cabelo dourado como o sol. 

Os homens que falavam desta maneira eram parasitas da pradaria e valentões de «saloon», a quem o álcool destravara a língua. Por isso, o jogador não se zangou. 

Laura continuou a sua atuação, interpretando três números mais. A seguir veio a apoteose final, muito mal realizada, em que as coristas ofereciam as suas preces e flores à rainha dos cabelos chamejantes. 

Entretanto. O'Farrell quase não se mexera do lugar primitivo. Mesmo assim, quando «miss» Laura abandonou o palco e se dirigiu para a mesa do patrão, por entre a gritaria geral, seguiu-a com a vista, admirando os seus extraordinários encantos. 

Douglas beijou-a na face esquerda, segurou-a pela cintura e retiraram-se para a sala de jogo. O xerife, como um cão que segue um rasto que o entusiasma, seguiu-os de perto. Notou que na primeira oportunidade «misse Laura virou a cabeça e sorriu-lhe. Este foi um favor que não esqueceria. 

A sala estava cheia de jogadores e de mulheres tão corrompidas pelo vicio como os seus companheiros. As mesas de cartas, onde havia quatro ou mais pessoas a jogar o póquer ou qualquer outro jogo de azar, tinham um candeeiro que iluminava os circunstantes. 

Na roleta e no tapete verde apinhava-se muita gente no meio de um frenesim louco e da expectativa dos apostadores que seguiam a corrida e os saltos da bolinha na roleta. 

O dinheiro circulava tão prodigamente como no palácio do rei Midas. Não eram saquinhos contendo pó áureo e pepitas de ouro, como sucedera nos «saloons» terrestres da Califórnia, do Oregão e do Nevada, aquando da fascinante corrida dos «diggers» ou pesquisadores; em São Luís faziam-se as apostas em notas e moedas de ouro e prata. 

Naqueles territórios os jogadores punham na mesa os saquitos com o produto de muitos dias de pesquisas no deserto ou na montanha, dispostos a multiplicá-lo ou a perder tudo numa noite. Junto do dinheiro colocavam os seus «six-shooters» ou revólveres de seis tiros, como cães de presa que tinham a missão de defender a fortuna do «digger». Procediam assim porque era fácil os falhados e os bandidos, deslumbrados pelo ouro, caírem sobre a mesa no seu afã de se apoderarem do alheio. 

No «saloon» flutuante de Perry Douglas não acontecia o mesmo, como o xerife verificava, observando o ambiente e a gente que enchia a sala, onde havia sete mesas de jogo. Às vezes, quando a bola girava na roleta, o silêncio parecia cortante como o fio de uma faca. 

— Jogam mais, senhores? — perguntava Turban, Mackley ou qualquer dos esbirros do jogador, na sua missão de «croupiers». 

Os apostadores colocavam pilhas de notas ou de prata no número e cor que lhes apetecesse. Depois de feitas as apostas, a multidão esperava o desenlace friamente ou com um nó na garganta, conforme o temperamento de cada um. No fim, a banca levava os lucros. 

— Número vinte e dois. Ninguém apostou.

O «croupier» recolhia o dinheiro com o rodo, perante o olhar cobiçoso dos que tinham perdido. Perry Douglas, com o seu ar de nababo ocidentalizado, percorreu a sala levando a sua amada pelo braço. Parecia plenamente satisfeito, tanto que abriu uma garrafa e encheu dois copos. 

— Eh, xerife! — chamou-o, sorridente. — Brinde comigo pelo êxito das minhas empresas. O episódio do «rodeo» foi um absurdo. Não nos interessavam os mil dólares e sim demonstrar que os meus homens também sabem domar cavalos. 

O'Farrell pegou no copo, tocou com ele no do jogador e disse, fitando os olhos verdes de «miss» Laura: 

— Brindo por Piky Laura, certo de que muito breve abandonará esta pocilga e será a atriz excecional que viu nela William Chapman. 

A loura sorriu agradecida ao xerife, e até tirou uma flor do peito e lha pôs numa casa do colete. 

— Pode acontecer, amigo Philips — murmurou. 

— Como? Que dizes? — interrogou-a o jogador, num acesso de cólera. — Jamais me abandonarás! 

«Miss» Laura continuou a sorrir ao xerife, como se não tivesse ouvido as palavras do patrão. 

— Vem comigo, Piky! Preciso de estar só contigo. 

Segurou-a brutalmente por um braço, que ficou roxo devido à pressão, puxou-a com força e meteu-a num gabinete cuja porta fechou com. estrépito. 

— Aquilo chama-se abuso de poder. É o mandão do embarcadouro, mas por pouco tempo. Prometo-lhes que acabarei com ele. 

O xerife saiu galhardamente, de cabeça erguida, desprezando o olhar sinistro de Alex. Douglas não era já intocável em São Luis. 


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