terça-feira, 16 de novembro de 2021

BIS116.03 Assim nasce um batoteiro

Passou o tempo e não tardou em desaparecer a paliçada que rodeava a povoação. Winona crescia com rapidez assombrosa. Os «sioux» fugiram mais para o Norte, hostilizados pelo fogo das armas dos novos emigrantes, que acudiam do Este àquelas terras. 

Criadores de ovelhas, «cow-boys», mineiros c aventureiros, converteram Winona numa cidade populosa e próspera. Por essa altura, John e Pat tinham já o seu rancho. Trabalhavam, suados, debaixo do sol abrasador do Verão, quando as vastas- planícies reverberavam e vibravam de calor; e tremiam de frio ao cavalgar de noite guardando o gado nos mercados de fins de Outono. 

Nas suas veias, porém, sentiam o pulsar da vida sã, e exaltava-os a glória de trabalhar e a alegria de viver. 

Só de longe em longe acudiam à cidade e ao «saloon». 'Winona convertera-se numa terra importante pela afluência de viajantes que chegavam de toda a parte. 

O ouro corria às mãos-cheias. Era uma época de prosperidade para todos. 

O rancho dos Barton era um modelo para quantos o viam. Os seus cavalos eram os mais ágeis e robustos de muitas milhas em redor, e as suas vacas as que mais leite proporcionavam para o consumo da população. 

Para conseguir tudo aquilo tinham tido que trabalhar duramente. Para o manter tinham de continuar com a mesma tenacidade. 

Crescendo em importância, Winona também cresceu em vícios. Uma legião de pessoas de mau viver veio perturbar os costumes pacíficos dos seus habitantes. Já não lhes bastava um «saloon». Abriram duas casas de jogo. Tinham pressa de enriquecer e iam com frequência àqueles antros, procurar a incerta fortuna. 

Pat Barton, mais débil de carácter do que o irmão, deixou-se arrastar pela corrente. Ao princípio, ia de longe em longe a Winona. Depois começou a visitar a cidade com maior frequência. 

— Aonde vais? — perguntava-lhe o irmão. 

— Por aí, a ver o que há de novo em Winona. 

— Que queres que haja? Nada. 

— Bom, nem sempre havemos de estar aqui metidos. Preciso de me distrair. 

— Distrair-te a jogar? Qualquer dia... 

Pat ria-se, desprendia o cavalo, saltava sobre a sela e despedia-se com um: 

— Volto já, resmungão! 

John, da porta do rancho, via-o partir, e meneava a cabeça, preocupado. Não podia proibi-lo de agir a seu modo, mas não podia deixar de o advertir de que ia por mau caminho. 

Pat não se sentia satisfeito com o que ganhava no rancho. Queria mais, sempre mais. Aprendeu a jogar com todos os truques possíveis, ao ponto de se converter num consumado batoteiro. Possuía, na verdade, para isso qualidades excecionais. 

Muitas milhas em redor não havia quem lhe levasse a melhor no manejo das cartas. 

Uma noite, James Claer, o proprietário do «saloon» mais concorrido de Winona, o «Ás de Copas», chamou-o de parte: 

— Eh! Pat! — disse. — Passa pelo meu gabinete, preciso de falar contigo. 

Que teria Claer para lhe dizer? Terminou a partida que tinha iniciado já, e dirigiu-se ao encontro do proprietário do «Ás de Copas». 

— Aqui estou, Claer. Que me querias? 

— Senta-te, Pat. Vamos tratar de negócios. 

Pat sentou-se onde o outro lhe indicava, e deitou um olhar de relance à sua volta. 

— Belo gabinete o teu, Claer — comentou. 

— Sim, trouxeram-me os móveis de Chicago. Tu poderás também ter um igual, ou melhor, se quiseres. 

Pat revolveu-se na cadeira. Para ter um escritório como aquele era necessário muito dinheiro. Além disso, para que quereria ele um escritório assim? Para tê-lo no rancho? 

— Estás com vontade de brincar, Claer — disse. 

— Não, não tenho vontade de brincar, Pat. Sabes bem que sou pouco amigo de gracejos. Escuta: as pessoas começam a aperceber-se de que a sorte que tens ao jogo é demasiada. Desconfiam. Acabarão por averiguar que fazes batota, e então... 

— Eu não faço batota — interrompeu. 

— Não me venhas para cá com essa — protestou Claer. — O que acontece é que ninguém te prendeu ainda, mas no dia em que te virem as cartas marcadas... 

— Que sucederá...? — deixou Pat escapar. 

Claer sorriu triunfante e acrescentou: 

—Nada, se eu e os meus homens te protegerem. 

—Eu não preciso de que ninguém me proteja. Jogo honestamente. 

Claer acentuou mais o sorriso, torcendo a boca. 

—Se é assim — grunhiu — faz aquilo que entenderem. Mas, se algum te meter um par de balas na cabeça, isso é lá contigo. Não basta ter os dedos ágeis e a inteligência bem esclarecida. Um dia em que menos se espere, surge por aí outro mais esperto do que tu e então... 

Pat fitou-o fixamente no rosto, e perguntou: 

— Que queres dizer com isso? É uma ameaça? 

—Não, não, rapaz — apressou-se a esclarecer o proprietário do «Ás de Copas». — É apenas um conselho. Custar-me-ia muito se te acontecesse alguma desgraça. 

Pat continuava a fitar o seu interlocutor. «Um conselho?» Não, era uma ameaça, tinha a certeza. James Claer tinha qualquer fito em toda aquela conversa. 

— Fala claramente — pediu-lhe. — O que é que pretendes, na verdade? 

— Belo, parece que entras por fim no caminho da razão — exclamou Claer. — Falando é que a gente se entende. Cada um faz o seu negócio. Favor pago com favor. Tu jogas como quiseres e eu colocarei à tua disposição dois homens que jurarão e trejurarão, se for necessário, que não fazes batota, no caso de te descobrirem. E se as circunstâncias o obrigarem, farão mais ainda do que jurar. Procurarei escolhê-los entre os mais rápidos a puxar o gatilho. Pode ser que alguma vez necessites da sua ajuda. 

— E eu o que é que terei de dar em troca? – quis saber Pat. 

James Claer demorou a responder-lhe. Andava à procura de um charuto para o seu visitante. Pegou num, comprido e grosso, e estendeu-lho. 

— Toma — ofereceu. — Fuma. 

Depois foi ao ponto de lhe dar lume para que o acedesse. Pat colocou o charuto na boca e chegou-lhe o lume. Como, entretanto, Claer não tivesse respondido à sua pergunta, repetiu: 

— E eu que terei de dar-te em troca? 

Claer, refastelado no sofá, com a cabeça encostada para trás, deu uma longa fumaça no charuto, tirou-o da boca, entreabriu os lábios, e o fumo foi saindo como uma larga e interminável fita que se desfazia lá em cima. Depois apoiou os cotovelos na mesa e, cravando os olhos em Pat, respondeu: 

— Metade daquilo que ganhares. 

Pat ia protestar, mas Claer impediu-o, fazendo um sinal com a mão e acrescentando: 

— Não te parece muito, não é verdade? Além disso, ainda estás a tempo de escolher: associares-te comigo ou, já sabes, um par de tiros na cabeça... claro que isto é uma simples suposição, mas uma suposição que facilmente se poderá converter em realidade. 

Pat compreendeu que não lhe restava outro remédio senão aceitar. Associando-se a Claer, os ganhos seriam menores; mas os riscos diminuíam em igual proporção também. Depois de pensar um pouco, acedeu: 

— Bem, os lucros a meias. 

— Tinha a certeza de que serias razoável — disse o proprietário do «Ás de Copas». — Umas mãos e uma inteligência como as tuas devem ser defendidas e conservadas durante muito tempo. Ficamos então sócios, hem? 

— Sim, ficamos sócios. 

Apertaram as mãos e Pat deixou seguidamente o gabinete. No fundo, agradava-lhe o pacto feito com Claer. Deste modo, teria as costas bem guardadas. Ao voltar para o «saloon», sentia-se outro homem, mais seguro de si próprio. «Umas mãos e uma inteligência como as tuas devem ser defendidas e conservadas durante muito tempo», tinha dito Claer. 

Olhou as mãos, orgulhoso, e colocou o chapéu um pouco mais inclinado. Começava a julgar-se um homem importante. 

Tão importante se julgou, que acabou por deixar de ir para o rancho. John lamentava-o, e procurou impedi-lo, advertindo-o: 

— Vais por mau caminho, Pat. 

Este riu-se dele: 

— Por mau caminho? Enganas-te, John. Não nasci para cavar a terra nem ordenhar vacas — protestou. — No «Ás de Copas» o dinheiro ganha-se facilmente. Aparecem por lá muitos ingénuos que largam em poucos minutos tudo quanto ganharam em vários anos de trabalho. Claer e eu entendemo-nos bem. 

— Mas isso não é sério — objetou John. 

— Porque é que não é sério? Jogo honestamente e tenho sorte, isso é tudo. 

— Jogas honestamente? Dizem por aí... 

— Deixa-os falar. São os invejosos. Em poucos anos ficarei rico, e então verás... 

John não quis insistir. Para quê? Pat era ambicioso. Estava convencido, no entanto, de que ele jogava com truques, e repugnava-o essa conduta. Mais do que uma vez lhe tinha visto as cartas marcadas. Mas nada podia fazer para evitar que seguisse por tão mau caminho. Apesar de tudo, continuava a sentir por ele a mesma amizade que sempre sentira. E considerava-o ainda o seu «pequeno Pat». 

Pat, pelo contrário, pensava apenas em ganhar dinheiro, fosse como fosse, ainda que tivesse de afundar-se cada vez mais no caminho da desonra. James Claer bem o impelia para isso. 

James Claer era um homem sem escrúpulos. Chegado a Winona da longínqua Nova Iorque, toda a sua vida tinha sido um aventureiro. Alguém tinha marcado, no seu rosto, a cicatriz indelével de uma navalhada. Uma linha que lhe atravessava a face de lado a lado, como um permanente prolongamento do seu repugnante sorriso. Baixo e gorducho, dava a sensação de que rolava em vez de andar. Lisonjeiro e espertalhão, conseguia sempre tudo quanto ambicionava. 

Ele e Pat, com o decorrer dos tempos, conseguiram arruinar o proprietário do outro «saloon» de Winona. Já ninguém lhes poderia fazer concorrência. 

Pat, com uma atitude cínica e soberba, partia de longe em longe para o «seu rancho» corno ele lhe chamava. Só então os dois irmãos se encontravam. Em tais ocasiões, ria-se de John mostrando-lhe a carteira repleta de notas. 

— Quanto ganhaste este ano, John? — perguntava irónico. 

— O suficiente -para viver, e ainda um pouco mais — respondia o irmão, sorridente. 

— O suficiente para viver e ainda um pouco mais? — repetia Pat. — Esse pouco mais é o que me corresponde. Continuo, como tu, a ser o dono deste rancho, não o esqueças. 

John, sem replicar, desfazia-se do dinheiro que tanto suor lhe tinha custado para o ganhar, e dizia: 

— Tens razão, Pat. Leva-o, é teu. 

Pat guardava-o com a sua já habitual expressão de avareza. Que lhe importava que ao irmão fosse necessário muito trabalho para ganhar um punhado de notas! O seu único fito era aumentar a fortuna que possuía, tornar-se um homem rico e poderoso, à custa do que quer que fosse. Depois cavalgava apressadamente até Winona, sem voltar a cabeça, sem se aperceber de que John o seguia com os olhos, quase sempre húmidos de lágrimas... 

Quanto a James Claer, cumpriu a sua palavra. Dois homens seguiam constantemente Pat, enquanto este andava pelo «saloon». Por isso, quando um dia alguém se lembrou de insinuar que Pat fazia batota, saltaram imediatamente em sua defesa. 

— Batota? Quem é que está a fazer batota? Ele joga honestamente — berraram. 

Aquele que protestara, e contra o qual os dois se enfureciam, sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. Das palavras, passou às ações. Quis atacar Pat, mas os seus guarda-costas adiantaram-se tomando parte ativa na contenda. E travaram-no à força dos punhos, descarregando-os contra o recalcitrante. E tal sova lhe deram que o deixaram meio derreado. Derreado e tudo, jurou vingar-se, embora não deles, mas sim de Pat. Este andou uns dias preocupado e assustadiço. Qualquer ruído, qualquer pequena coisa o sobressaltava. Até que James Claer lhe perguntou: 

— Que tens, Pat? 

Confessou-lhe os seus receios e Claer desatou a rir em grandes gargalhadas, mesmo na sua cara. Depois, calou-se subitamente e afirmou: 

— Esse tipo já não pode fazer-te nenhum mal. 

— Já não pode fazer-me nenhum mal? Mas porquê? 

Claer baixou a voz e acrescentou: 

— Sofreu um acidente. 

Pat sobressaltou-se com o que ouvia; mas principalmente do sangue-frio de Claer, da tranquilidade com que falava daquilo. 

— Onde? — perguntou, um tanto incrédulo. — Queres vê-lo? 

Ficou hesitante, mas, por fim, acedeu: 

— Sim, quero vê-lo. 

E foram. O homem que havia ameaçado Pat de o matar jazia sem vida no fundo de um barranco. Não que tivesse caído lá de cima, como se poderia supor. Qualquer pessoa que o examinasse um pouco mais detidamente verificaria que tinha duas balas nas costas. Mas, em Winona, ninguém se preocuparia em averiguar as causas da morte daquele homem, riem sequer em enterrá-lo. Bem depressa os abutres e outros animais se encarregariam de o fazer desaparecer... 

— Como vês, foi um acidente — repetiu Claer. 

Pat admitiu, embora no fundo estivesse convencido do contrário: 

— Sim, foi um acidente, não adianta olhá-lo mais. 

Voltaram para a povoação. Pat sentia-se agora tranquilo e seguro. Claer cumpria a sua palavra. Enquanto continuassem associados, nenhum mal lhe aconteceria. Mas essa tranquilidade e essa segurança existiriam a troco de quê? 

De qualquer modo, o que importava era ganhar dinheiro, muito dinheiro. Às vezes, contudo, acusava-o a consciência daquilo que acontecera ao homem que sofrera o suposto acidente. No entanto, seria melhor se tivesse sido ele próprio a sofrer o «acidente»? 

Acabou por vencer os seus poucos escrúpulos. Uma ambição sem limites movia todos os actos que praticava. Egoísta e vil, a sua meta era enriquecer, para um dia regressar poderoso à povoaçãozinha costeira que o vira nascer. 

Os meios para o conseguir quase não contavam. Ninguém, ou quase ninguém, se fixava em Winona com o fim de enriquecer. Apenas, talvez, tipos como John, que nunca seria ninguém, que havia de passar toda a vida cavando a terra e ordenhando as vacas... 


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