domingo, 13 de junho de 2021

ARZ002.02 Os negócios estranhos e desastrosos do tio Erik

Não só tinha visto, mas também ouvido tudo quanto ali se passara. E ao chegar a casa, deixou para melhor oportunidade o propósito de interpelar o tio e tutor. Esperara tanto tempo, que nada importava adiar um pouco mais o momento de satisfazer a sua curiosidade. Curiosidade que convergia para um ponto bem concreto: porque é que o tio Erik, sempre tão desabrido com todos os rapazes que lhes frequentavam a casa, tratara Dave, desde o primeiro dia, com tão excessiva cordialidade?

De tudo quanto acabava de ouvir, o que mais tinha ferido a sua sensibilidade eram as palavras que se referiam a ela: «Agrada-me também a tua noiva... Ou não é tua noiva?». Ao ouvi-las proferir por aquele homem estranho, experimentara a sensação de que a esbofeteavam em público. «Ou não é tua noiva?».

Agora era Hazel quem discutia essa questão consigo própria. Podia ela considerar-se a prometida de Dave? Não. Havia-o sempre repelido, não consentindo que lhe falasse de amor nem de nada que se lhe parecesse. Não obstante, permitira que ele a acompanhasse a toda a parte, embora sabendo que essas relações poderiam ser mal interpretadas por certa gente.

— Fi-lo por comodidade — pensou em voz alta, enquanto fustigava o cavalo a caminho de casa. — Para que o tio Erik me deixasse em paz... Desde o princípio que ele 'desejava que eu gostasse de Dave. Porquê esta preferência?

Chegava a casa. Ao redor do edifício via-se uma multidão de carros. A cidade encontrava-se a três horas escassas, e todos quantos ali iam eram gente importante, convidados pelo tio Erik para um dia de campo.

Estas festas, com passeios escolhidos por ordem rigorosa, enchiam de tédio a rapariga, e, por isso, apenas a ocasião surgia, isolava-se.

Os carros dispunham-se a partir até ao cimo da colina, donde se avistava o mar. O mar podiam vê-lo mesmo sem sair da cidade. Para quê, pois, tanto aparato, tantos carros em ordem de marcha? Aqueles peralvilhos nem sequer tinham a virtude de se dirigirem à colina montados a cavalo! É que o tio Erik gastara um bom punhado de dólares — do capital de Hazel, sem dúvida — a construir uma estrada até ao alto da colina, e, agora, havia que utilizá-la levando os amigos no carro.

— Há mais de uma hora que andamos à tua procura! — gritou do pórtico o tio Erik, figura alta e esquelética, de bigode grisalho. — Onde te meteste?

Antes de responder, Hazel lançou à sua volta um olhar furtivo. Não localizou nenhum dos subordinados de Dave. Todos quantas ali se encontravam eram convidados. Em muitos rostos descobriu certa expressão de enfado, pois todos sabiam que ia dar-se uma cena demasiadamente vista: o tio e tutor recriminando Hazel. Uma cena lamentável, pois muitas vezes o tio Erik, exasperado pelo silêncio da sobrinha, perdia a cabeça e tornava-se inconveniente.

— Sempre que vimos. aqui, desapareces! —prosseguiu o tio Erik, exagerando o tom. — É assim que recebes os nossos convidados?

Entre os jovens que presenciavam a cena, abundavam os despeitados, os que não tinham logrado êxito junto de Hazel. A rapariga, por seu turno, desprezava-os, pois não vira ainda em nenhum, deles a suficiente energia para, lutando com todos, se fazer notar par ela.

Muitos destes ressentidos estavam desejosos que o tutor começasse a desbocar-se e chegasse ao insulto, como de outras vezes havia acontecido. Hazel compreendeu-o. Habituara-se a permanecer sempre calada, em atitude submissa, não deixando nunca transparecer a rebeldia que dentro dela se avolumava. Desta vez, porém, não quis dissimular:

—Também são meus convidados, tio Erik? Apontemos...

Não tinha ainda descido do cavalo. Inclinada um pouco sobre a cabeça do animal, os braços apoiados no arção, fitava-os a todos com ironia. A sua voz era suave e tranquila. Todavia, para o tutor foi como o estampido dum trovão. E para muitos convidados também.

— Que é isto? Que significa? — bradou a esquelética figura.

Nesse momento chegava Grotto.

— Senhor Kelly, trago um recado do meu patrão. Assuntos urgentes obrigam-no a partir para a cidade...

Ainda teve tempo de explicar alguns pormenores, a fim de justificar aquela fuga. De súbito, uma risada de Hazel interrompeu-o.

— Por Deus, Grotto! Para quê tanta mentira? Diga a verdade! — instou, olhando-o de frente.

— Como? A verdade, menina Kelly? — tartamudeou o homenzinho.

— Sim. Tal como aconteceu. Primeiro eu, mandando ao diabo esse farsante do Dave...

— Hazel — rebentou o tio Erik.

– Depois, a cobarde agressão que ia pôr em prática quando o senhor se encontrava caído — prosseguiu ela, sem deixar de sorrir. —E depois... Ah, depois! Que tareia, senhores! Por estes dias mais próximos com certeza que não aparece a ninguém...

Foi então que desceu do cavalo, muito lépida, e, mal poisou os pés no chão, largou a correr, subindo em duas passadas a escadaria que dava acesso ao pórtico. Ali, com a sua graciosa figurinha ao centro ido quadro formado por duas colunas, passou pelos circunstantes um olhar olímpico.

Refletia-se em todos os rostos o mais cômico e estúpido assombro. Hazel ficava ainda mais bonita quando começava a rir. O brilho dos seus olhos e dos seus dentes miúdos tinham coruscações de joias na oval do seu rosto de pele fina e morena.

— Bem, senhores. Se querem um bom conselho, regressem à cidade. Se acontecer alguma coisa que valha a pena, será lá e não aqui. E é isso o que eu vou fazer.

Voltando-se rapidamente, entrou em casa. O tio lançou-se atrás dela. Uma passada do homem valia por três da rapariga.

— Hazel! Hazel! Vem aqui, maldita! Que significa isto?

Porém, a rapariga não se detinha. Corria para se pôr de repente aos pulos, como se pretendesse que a distância entre ela e o tutor não se alargasse de mais. Hazel, por fim, deteve-se à porta do seu quarto. E, sem mais alteração do que a provocada pela louca correria, esperou que o tio chegasse ao pé dela. Vendo-o avançar, desfilou na mente da jovem, em poucos segundos, toda uma série de imagens pertencentes ao passado.

Viu com horror como aquela figura esquelética crescia para ela, os braços como asas de moinho em pleno vendaval, os olhos como carbúnculos, e aquela voz áspera, que nunca, nunca soara cariciosa, sempre a repreendê-la por qualquer coisa e a procurar atemorizá-la.

Hazel, sem se aperceber disso, havia chegado no decorrer dos anos ao mais oposto a que poderia chegar um temperamento como o seu: à dissimulação. E agora, duma forma inconsciente, sem um motivo plausível a que apoiar-se, simplesmente porque o intuía, reconheceu que era chegada a hora da sua alma romper as amarras. Era isto o que a havia feito saltar e rir diante de todos. Era isto o que a mantinha tranquila, enquanto seu tio, transtornado, os olhos mais fulgurantes e ameaçadores do que nunca, crescia para ela.

— Hazel!

Acabava de sentir o seu bafo de fogo.

—Que é, tio? — e, pela primeira vez na vida, susteve-lhe o olhar.

O velho deu um passo atrás, desconcertado.

— Está doida?

— Talvez. Mas doida de alegria. Estas festas sempre me aborreceram, mas nunca me tinha atrevido a destroçá-las. Que disparate! Foi preciso coragem para dizer a essa gente, que se aborrecer tanto como eu, que melhor é cada um regressar a sua casa...

— Hazel! Vais imediatamente pedir desculpa!...

— Mas se eu não os ofendi! Disse-lhes apenas que o interessante vai acontecer na cidade — começou a abrir a porta. — A propósito: já te esqueceste que faltam poucas semanas para a minha maior idade?... Não será de mais que a partir dessa altura me tragas ao corrente de todos os negócios que possam afetar o meu capital...

Uma mão seca, de dedos afilados e unhas amarelas, prendeu o braço esquerdo de Hazel. As unhas fincaram-se na roupa e na carne. E o mesmo olhar lento e penetrante, que uma hora antes a rapariga dirigira às mãos de Dave, pousou agora nas do seu tutor.

— Deixa-me, tio. Talvez não te convenha muito irritares-me. Pensa nisso enquanto mudo de roupa. Para já, vou hoje paira a cidade.

Erik Kelly soltou a jovem. E a atenção fugiu--lhe para tão longe que não se apercebeu de que ela desaparecera e se encontrava defronte duma porta fechada... Momentos depois voltava-se, lento, muito pálido. Era outro homem, como se de chofre lhe tivesse caído uma máscara. Um homem que tremia de medo, de puro terror. Como um autómato, deixou-se cair numa cadeira.

— Meu Deus! Sabe tudo! Esse canalha abriu--lhe os olhos!

Pensava em Dave. Pensava, afinal, no que estivera a ponto de suceder: que, irritado por alguma provocação de Hazel, tivesse revelado que três quartas partes do capital da rapariga já se encontravam à sua mercê, devido a desafortunados negócios do tutor...

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