— Deita-te ao chão, Alma! Eu me encarregarei de averiguar quem disparou!
sobre as suas cabeças sibilaram vários projéteis mais, quase ao mesmo tempo. Eram vários os que disparavam, e faziam-no com espingardas pesadas. Uma imensa rocha que se achava sobre as suas cabeças fez chover sobre eles fragmentos de grande tamanho.
— São Brakam e seus homens, Milton.... Caíste numa armadilha.
O jovem, com os dois revólveres à altura dos olhos voltou-se para ela.
— É uma armadilha?
Alma arrastou-se sobre os cotovelos até colocar-se junto dele, ao abrigo duma rocha.
— Os homens de Brakam deliberaram seguir as minhas pegadas, e chegaram até aqui. Mas não adverti a sua presença. Estava desfalecida de fome e de sede. Até mim só se aproximou um homem...
—Um tipo ridículo com um cavalo meio morto?
—Esse... Esse mesmo. Não oferecia perigo. Deu-me de beber, e deixou-me um pouco de comida. Eu roguei-lhe que me tirasse daqui, mas não quis, pretextando que o seu cavalo não podia com duas pessoas. Era verdade. Então pedi-lhe, que se dirigisse a Oregon, passasse por Batteville e te avisasse. Ao princípio não tive nenhuma esperança, mas depressa compreendi que o tipo se dirigia diretamente para ali, para dar-te a mensagem e atrair-te.
— Atrair-me porquê? Acaso...?
Tinha-se produzido uma momentânea calma, e o silêncio mais absoluto tinha caído outra vez do labirinto de montanhas. Milton viu que o sol projetava debilmente as suas sombras, e afastou-se mais da rocha.
— Vi chegar Wilburn com quatro homens. Instalaram-se a quatrocentas jardas, naquele monte donde dispararam. Compreendi então que queriam apanhar-nos aos dois, que se me matavam a mim jamais saberiam o teu paradeiro, e que tinham pregado aquela armadilha para que te reunisses comigo. Agora estamos os dois na mesma tumba, Milton.
A rapariga abraçou-se fortemente a ele, e depositou um beijo nos seus lábios. Um beijo raivoso e desesperado, que tinha sido o último. Carey não se moveu; os seus músculos permaneceram graníticos, impassíveis. Alma retirou os lábios com um sabor frio e salgado neles.
—Veio Brakam junto de ti? — perguntou Carey, sem olhá-la.
— Tentou-o, Milton; mas eu tinha ainda três balas neste revólver, e quando o vi baixar, disparei. Compreendeu então que corria perigo. E decidiu esperar até matar-te a ti, e até que eu tenha gasto a última bala. Então tudo lhe será muito fácil.
Milton olhou-a. Os seus olhos tinham-se tornado espantosamente cinzentos, e nas comissuras dos seus lábios havia uma careta que deu medo a Alma. Uma careta satânica.
- Há muitos anos, uma mulher índia como tu esteve cercada num lugar como este pelos irmãos mais velhos de Wilburn. Essa mulher era minha mãe. Os Brakam acabaram com todos os seus defensores, e depois queimaram pólvora sobre a pele dela. Se te matam, Alma, quero que...
— Queres que eu morra também, Milton?
Ele baixou os olhos.
—Guardarei as minhas duas balas até ao último minuto, Milton. Juro-te que uma delas será para Wilburn. Quando se acerque de mim, quando...
Uma bala estalou em frente dos seus olhos, e fez-lhe lançar um grito.
— Afinam a pontaria, rapariga. Têm boas espingardas e muito tempo por diante. Esperam que cometamos alguma imprudência para caçar-nos como a coiotes. Melhor dito, para caçar-me a mim...
Carey, apesar de ter os revólveres na mão, não tinha efetuado ainda um só disparo.
— Porque fugiste do nosso acampamento? — perguntou, segurando pela nuca a cabeça da rapariga e apertando-a contra a rocha, onde estivesse a coberto. — Porquê?
—Porque queria salvá-los, Milton..., à custa do que quer que fosse.
Da garganta de Alma tinha brotado um soluço. Explicou então a Carey a decisão que tinha tomado, a sua vergonha ao compreender o abismo em que tinha estado a ponto de cair, e depois a sua fuga...
Ao ouvi-la falar, uma luz mais humana e cordial ia nascendo nos olhos de Carey.
— Obrigado, rapariga. E perdoa-me por ter desconfiado de ti. Tirar-te-ei desta enrascada com vida, custe o que custar. Fabricarei para ti um caminho de chumbo.
Duas novas balas embateram no outro lado da rocha, somente a umas polegadas das suas cabeças. Carey compreendeu que não podia mover-se dali. Que quando o fizesse, seria alvo fácil para aqueles pistoleiros.
Admirado por não ter ouvido relinchar o seu cavalo, voltou a cabeça. «Satan» tinha recebido uma das primeiras balas, e jazia lastimosamente no leito de areia, com a cabeça voltada para o seu amo numa posição e olhar inúteis. Nos seus grandes olhos abertos não havia o menor sinal de vida.
Entretanto o outro animal, tinha desaparecido com as primeiras detonações, sem deixar o menor rasto.
— Daqui não poderei fazer nada, Alma —disse Carey, com uma repentina decisão. —Toma, um dos meus revólveres, e dispara duas vezes para o ar. Guarda as balas do teu. Esses disparos farão encolherem-se instintivamente durante umas frações de segundo. Então eu saltarei até àquela rocha à minha esquerda. Desde ali poderei fazer fogo.
— O que tu quiseres, Milton.
A rapariga empunhou o revólver, e disparou duas vezes para o ar, sem descobrir somente a mão. Carey aproveitou aquele momento para saltar um par de jardas até um refúgio mais propício, sem ser hostilizado. Então Alma teve ocasião de contemplar a estranha tática daquele homem.
Completamente estirado sobre a superfície pendente, em sentido contrário a esta, apontou o seu revólver para o monte onde se refugiava Wilburn e os seus homens. O seu braço estendido, recto, formava um cano perfeito de espingarda. Sem mover um músculo, quase sem respirar, aguardou. A sua mão direita parecia completamente morta. Mas quando sobre o monte apareceu o primeiro relevo de uma figura humana, o dedo indicador moveu-se duas vezes com velocidade estonteante. As duas detonações soaram pelo deserto, e duas balas encontraram um bom alvo de carne.
Do outro lado dos caminhos ouviu-se um grito selvagem. Carey não se moveu. Continuava na mesma posição, aguardando outra presa.
Alma, com a cabeça colada à rocha, compreendeu que os seus esforços seriam inúteis ao fim, e sentiu como umas lágrimas espantosamente salgadas queimavam as suas faces.
Durante quase dez minutos não se escutou um só som. Milton continuava quieto. Depois, alguém mais se moveu no monte, pela direita. Carey aguardou. A forma fez-se mais precisa; incluso brilhou a espingarda que apontava para ele. E Carey sorria ao ver o ponto de mira do revólver onde se recortava uma cabeça. Disparou outras duas vezes. Com a testa atravessada, um segundo inimigo caiu para o abismo.
-- Só ficam Brakam e dois pistoleiros — sussurrou Alma. — Brakam e dois pistoleiros...
— Intentarão atacar-nos pelas costas. Vigia tu, Alma.
— Ser-lhes-á muito difícil. Achamo-nos colados ao deserto, e nas nossas costas não há nada. Têm de nos atacar de frente ou de cima.
Milton compreendeu que os homens de Wilburn procurariam um novo lugar para fazer fogo. E só o procurariam durante a noite, quando não pudesse advertir os seus movimentos.
O tempo deu-lhe razão. O sol ocultou-se rapidamente e durante várias horas não se produziu nenhum novo ataque. Mas Carey não se moveu. «Se ao menos tivesse um cavalo, poderíamos tentar fugir durante a noite, quando eles mudassem de posição, pensou. Dar-lhe-íamos um bom chasco. Mas agora é inútil procurá-lo. Tenho de aguentar.»
A sede torturava-o, depois de tão longa exposição ao sol, e constantemente intentava humedecer os lábios com a língua. Mas esta estava seca e áspera. O cantil da água achava-se sobre a areia, entre Alma e ele. Tinha de soltá-la precipitadamente, ao ouvir o primeiro disparo.
«Quando escurecer um tanto mais, intentarei alcançá-la — pensou. —Um trago dar-me-á ânimo.»
Assim aguardou pacientemente meia hora, até que a escuridão se fez por completo. Então começou a deslizar pacientemente para o cantil. Mas uma saraivada de detonações comeu a areia junto dele. Dispararam desde algum lugar sobre as suas cabeças, e depois sem apontar, só para desmoralizá-los.
Carey voltou ao seu esconderijo, rodando velozmente sobre si mesmo. Um glu-glu-glu angustioso deixou-se escutar. O cantil tinha sido atravessado e o seu conteúdo derramava-se agora sobre a areia, que o engolia velozmente.
Carey soltou uma imprecação. Depois, com os ouvidos atentos, tentou fixar a posição dos seus inimigos. Inútil. Nenhum som chegava agora de qualquer dos quatro pontos cardiais. Os seus inimigos moviam-se bem. E o mais urgente era ocultar aquele vestido de Alma, cuja cor clara destacaria perigosamente quando a lua aparecesse. Como se adivinhasse os seus pensamentos, a rapariga chegou arrastando-se para junto dele.
-- Não temos água, Milton. Esta tarde desmaiei uma vez, mas antes que me encontrasses, e amanhã te acontecerá o mesmo se não morreres antes. Podes esperar isso.
Carey não parecia escutá-la.
—Tira esse vestido, Alma.
—Como? Pretendes que fique nua?
—Porás a minha camisa. E como saia amarras à cintura a manta que «Satan» levava sempre sobre o lombo. Depois deixarás o vestido branco entre as rochas. Depressa! Despe-te nas minhas costas! Aqui tens a camisa!
Alma obedeceu sem refilar. Carey ouvia os seus rápidos e silenciosos movimentos ao tirar a roupa, e ainda naquelas circunstâncias uma estranha emoção agitou o seu peito. Mas sobrepôs-se a ela.
— Bem. Agora atarei um extremo do vestido à corda da minha cintura. Esconde-te.
Com rápidos movimentos, Carey atou o vestido e lançou-o sobre umas rochas. Ao elevar-se a lua seria visível como uma difusa forma branca. Alma contemplava-o sem despegar os lábios.
--Quando o virem dispararão sobre ele. Tu tens de tirar rapidamente a corda e mover o vestido, como se te ocultasses. Eu me encarregarei do resto.
Duas horas mais tarde a lua apareceu sobre as montanhas do horizonte. Carey pôs-se em pé e aguardou com os revólveres apontados. De entre uns caminhos à sua direita, partiu uma detonação. Alma tirou a corda, e o vestido iniciou um movimento. O disparo voltou a repetir-se.
Milton, que à primeira vez tinha fixado já a posição do atirador, fez um só disparo, deitando-se imediatamente ao chão. Um grito de surpresa e horror brotou das rochas situadas em cima da sua cabeça.
— Só dois inimigos, Alma. Só dois inimigos agora...
Agarrando-lhe a mão, desceram os dois silenciosamente para o deserto. Milton sabia que ali não teriam a proteção das rochas, mas considerava seguro que um dos dois sitiadores tentaria passar rapidamente a cavalo para pedir reforços, e queria evitá-lo.
—Há um carro enterrado ali em baixo—disse Alma, num sussurro—Está cheio de caixotes, e num há moedas de ouro...
Carey olhou-a através da escuridão, sentindo uma nova emoção dentro do seu peito.
—Quando o descobriste?
Ao chegar aqui. Houve um furacão, e removeu a areia. Provavelmente há muitos anos que está enterrado. E, possível que os furacões o tenham posto a descoberto alguma outra vez, mas depois a areia devia cobri-lo em seguida.
Milton suspirou.
— O mundo é muito pequeno, Alma. Ridiculamente pequeno, e por isso mesmo imensamente perigoso. Há muitas probabilidades de que esse carro seja o que enterrou minha mãe por conta da Confederação. Isso lhe custou a vida quando regressava.
E não juntou nenhuma palavra mais. Os dois estavam já no deserto, colados às paredes das rochas.
—Esperaremos aqui. Não tardarão em dar sinais de vida.
Com efeito, uma hora mais tarde, algo como um lento som de cascos ouviu-se sobre a areia. Um cavalo avançava com dificuldade para o deserto. Mas antes que fosse visível a seus olhos, o animal relinchou e depois fez-se um silêncio. O ginete, temendo ser descoberto, tinha voltado as costas.
— Tentarão outra vez— assegurou Carey. — Fizemos muito bem em não dar sinais de vida.
Passaram três horas mais, e uma lenta claridade começou a cair sobre as montanhas do horizonte. O lago de sal despediu os seus primeiros reflexos. Alma estava meio vencida pelo sono e pela fadiga, e Carey sentiu que umas espessas nuvens flutuavam diante dos seus olhos. De repente, algo fê-los pôr-se em guarda. Foi o mesmo barulho de antes, e algo mais. Algo sobre as suas cabeças, instantâneo.
Carey enrodilhou-se, disparando para cima quase sem olhar. Um homem que estava apenas a cinco jardas por cima das suas cabeças, e que se dispunha a matá-los, caiu pesadamente sobre ele, atingindo-o no ventre.
Naquele preciso momento, uma saraivada de balas de revólver arrancou nuvens de areia junto dos seus pés. Brakam tentava atravessar o deserto a cavalo, e fazia fogo contra eles. Mas tão irregulares eram os movimentos da sua cavalgadura, que não podia afinar a pontaria.
Alma lançou uma praga. Com os olhos brilhantes de ódio, fez fogo com o seu revólver. O cavalo de Wilburn veio ao chão com um trágico volteio, junto ao lago de sal. Um espantoso, um opressivo silêncio fez-se sobre os três.
Milton Carey avançou lentamente. As suas feições impassíveis tinham os olhos brilhantes cravados em Brakam, que se tinha posto em pé. A sua mão direita empunhava o revólver negro. Avançou para o seu inimigo com a rigidez e a fatalidade duma fantástica figura de chumbo.
Wilburn, com um grito fez fogo. Mas o percutor golpeou no vazio. Não havia mais balas no tambor do seu revólver. Foi para desenfundar o outro, e Carey atravessou-lhe com um só balázio a mão esquerda. Com os olhos desorbitados pelo terror, Brakam viu-o aproximar-se. A sua mão ferida iniciou no vazio uns movimentos espasmódicos. Da sua garganta partiu um murmúrio seco, uni ronco. Carey atravessava já o lago de sal.
— Tu és... Milton, Carey! Tu... és aquela criança! Não pode ser! Não pode...!
Os seus olhos cravaram-se como hipnotizados no cano do revólver que ia fechá-los para sempre. Quase não deu crédito ao que via quando Carey o atirou ao chão.
—Não vou matar-te com uma bala, Brakam. Matar-te-ei com a minha mão. Com a minha mão direita.
Estavam somente a uns passos de distância, e ambos os homens se atiraram como bestas selvagens uni sobre o outro. Foi uma luta feroz, sem quartel e sem piedade. Uma luta de morte que terminou com Brakam afogado, esvaindo-se em sangue sobre o lago de sal.
Milton Carey levantou-se como um fantasma depois do selvático combate. Com os ombros baixos, como que pesando muito, aproximou-se de Alma. Ambos sem falar, começaram a caminhar pelo deserto. O sol projetava as suas sombras, juntas na areia.
Foi três horas mais tarde quando descobriram Luigi e Gina galopando em dois bons cavalos, atrás dos quais levavam atados outros dois. Ao princípio, Milton pensou que se tratava duma miragem. Mas quando os braços morenos de Luigi o abraçaram teve de reconhecer a realidade.
— Aquele tipo pequeno emborrachou-se em Battesville numa noite—explicou Luigi quando se apearam e beberam todos uns goles de água. — Depois de tragar dezasseis litros de licor, começou a explicar a todo o mundo que Brakam lhe tinha pago para atrair-te a uma cilada. Então eu avisei Gina e preparei os cavalos.
-- E aquele tipo? Não se deu conta?
Luigi olhou para o chão com uma hipócrita atitude de desolação.
—Não se deu conta. Pobrezinho! E agradeço-te que me tenhas recordado, Milton. De vez em quando temos de rezar pelos mortos.
Carey pôs-lhe uma mão no ombro, sorrindo.
—Tu sempre procuraste um bom filão, Luigi, para te casares dignamente com Gina. Neste deserto há um. Um mais importante que aquele que pudeste sonhar na melhor das tuas bebedeiras. Agarra nos cavalos e vai-te embora, Luigi.
O calabrês não teve tempo de reagir, pois Milton, depois de dar-lhe um abraço, apressou-se a sentar Alma sobre o lombo dum dos cavalos livres, saltando para o outro.
—Disse-te a verdade, Luigi. Adeus.
E depois de uma saudação com o braço, ambos empreenderam o trote. A Milton não lhe agradavam as despedidas. Luigi encolheu os ombros, e, cantando uma velha canção da sua terra, seguiu para o deserto. Alma e Milton não falaram durante um grande bocado.
— Que vamos fazer agora? —perguntou ela por fim, olhando-o. —Sou mulher, e como tal, agarrada. Ali havia uma verdadeira fortuna...
— A Luigi far-lhe-á mais falta que a nós. Voltaremos agora a Dusty Plain, e procuraremos um homem honrado chamado Carver. No seu rancho há um bom posto para os dois. Um posto digno para ti, Alma.
Ela sorriu, e os dois olharam-se em silêncio. Ao fim de um momento, pareceu ocorrer a Milton uma ideia.
—O teu pobre cavalo parece cansado, Alma. Porque não me acompanhas no meu? Este parece mais forte...
Ela sorriu outra vez. E obedeceu. A julgar pela presteza com que o fez, parecia que nenhuma ordem mais agradável lhe tinha sido dada na sua vida.
FIM
sobre as suas cabeças sibilaram vários projéteis mais, quase ao mesmo tempo. Eram vários os que disparavam, e faziam-no com espingardas pesadas. Uma imensa rocha que se achava sobre as suas cabeças fez chover sobre eles fragmentos de grande tamanho.
— São Brakam e seus homens, Milton.... Caíste numa armadilha.
O jovem, com os dois revólveres à altura dos olhos voltou-se para ela.
— É uma armadilha?
Alma arrastou-se sobre os cotovelos até colocar-se junto dele, ao abrigo duma rocha.
— Os homens de Brakam deliberaram seguir as minhas pegadas, e chegaram até aqui. Mas não adverti a sua presença. Estava desfalecida de fome e de sede. Até mim só se aproximou um homem...
—Um tipo ridículo com um cavalo meio morto?
—Esse... Esse mesmo. Não oferecia perigo. Deu-me de beber, e deixou-me um pouco de comida. Eu roguei-lhe que me tirasse daqui, mas não quis, pretextando que o seu cavalo não podia com duas pessoas. Era verdade. Então pedi-lhe, que se dirigisse a Oregon, passasse por Batteville e te avisasse. Ao princípio não tive nenhuma esperança, mas depressa compreendi que o tipo se dirigia diretamente para ali, para dar-te a mensagem e atrair-te.
— Atrair-me porquê? Acaso...?
Tinha-se produzido uma momentânea calma, e o silêncio mais absoluto tinha caído outra vez do labirinto de montanhas. Milton viu que o sol projetava debilmente as suas sombras, e afastou-se mais da rocha.
— Vi chegar Wilburn com quatro homens. Instalaram-se a quatrocentas jardas, naquele monte donde dispararam. Compreendi então que queriam apanhar-nos aos dois, que se me matavam a mim jamais saberiam o teu paradeiro, e que tinham pregado aquela armadilha para que te reunisses comigo. Agora estamos os dois na mesma tumba, Milton.
A rapariga abraçou-se fortemente a ele, e depositou um beijo nos seus lábios. Um beijo raivoso e desesperado, que tinha sido o último. Carey não se moveu; os seus músculos permaneceram graníticos, impassíveis. Alma retirou os lábios com um sabor frio e salgado neles.
—Veio Brakam junto de ti? — perguntou Carey, sem olhá-la.
— Tentou-o, Milton; mas eu tinha ainda três balas neste revólver, e quando o vi baixar, disparei. Compreendeu então que corria perigo. E decidiu esperar até matar-te a ti, e até que eu tenha gasto a última bala. Então tudo lhe será muito fácil.
Milton olhou-a. Os seus olhos tinham-se tornado espantosamente cinzentos, e nas comissuras dos seus lábios havia uma careta que deu medo a Alma. Uma careta satânica.
- Há muitos anos, uma mulher índia como tu esteve cercada num lugar como este pelos irmãos mais velhos de Wilburn. Essa mulher era minha mãe. Os Brakam acabaram com todos os seus defensores, e depois queimaram pólvora sobre a pele dela. Se te matam, Alma, quero que...
— Queres que eu morra também, Milton?
Ele baixou os olhos.
—Guardarei as minhas duas balas até ao último minuto, Milton. Juro-te que uma delas será para Wilburn. Quando se acerque de mim, quando...
Uma bala estalou em frente dos seus olhos, e fez-lhe lançar um grito.
— Afinam a pontaria, rapariga. Têm boas espingardas e muito tempo por diante. Esperam que cometamos alguma imprudência para caçar-nos como a coiotes. Melhor dito, para caçar-me a mim...
Carey, apesar de ter os revólveres na mão, não tinha efetuado ainda um só disparo.
— Porque fugiste do nosso acampamento? — perguntou, segurando pela nuca a cabeça da rapariga e apertando-a contra a rocha, onde estivesse a coberto. — Porquê?
—Porque queria salvá-los, Milton..., à custa do que quer que fosse.
Da garganta de Alma tinha brotado um soluço. Explicou então a Carey a decisão que tinha tomado, a sua vergonha ao compreender o abismo em que tinha estado a ponto de cair, e depois a sua fuga...
Ao ouvi-la falar, uma luz mais humana e cordial ia nascendo nos olhos de Carey.
— Obrigado, rapariga. E perdoa-me por ter desconfiado de ti. Tirar-te-ei desta enrascada com vida, custe o que custar. Fabricarei para ti um caminho de chumbo.
Duas novas balas embateram no outro lado da rocha, somente a umas polegadas das suas cabeças. Carey compreendeu que não podia mover-se dali. Que quando o fizesse, seria alvo fácil para aqueles pistoleiros.
Admirado por não ter ouvido relinchar o seu cavalo, voltou a cabeça. «Satan» tinha recebido uma das primeiras balas, e jazia lastimosamente no leito de areia, com a cabeça voltada para o seu amo numa posição e olhar inúteis. Nos seus grandes olhos abertos não havia o menor sinal de vida.
Entretanto o outro animal, tinha desaparecido com as primeiras detonações, sem deixar o menor rasto.
— Daqui não poderei fazer nada, Alma —disse Carey, com uma repentina decisão. —Toma, um dos meus revólveres, e dispara duas vezes para o ar. Guarda as balas do teu. Esses disparos farão encolherem-se instintivamente durante umas frações de segundo. Então eu saltarei até àquela rocha à minha esquerda. Desde ali poderei fazer fogo.
— O que tu quiseres, Milton.
A rapariga empunhou o revólver, e disparou duas vezes para o ar, sem descobrir somente a mão. Carey aproveitou aquele momento para saltar um par de jardas até um refúgio mais propício, sem ser hostilizado. Então Alma teve ocasião de contemplar a estranha tática daquele homem.
Completamente estirado sobre a superfície pendente, em sentido contrário a esta, apontou o seu revólver para o monte onde se refugiava Wilburn e os seus homens. O seu braço estendido, recto, formava um cano perfeito de espingarda. Sem mover um músculo, quase sem respirar, aguardou. A sua mão direita parecia completamente morta. Mas quando sobre o monte apareceu o primeiro relevo de uma figura humana, o dedo indicador moveu-se duas vezes com velocidade estonteante. As duas detonações soaram pelo deserto, e duas balas encontraram um bom alvo de carne.
Do outro lado dos caminhos ouviu-se um grito selvagem. Carey não se moveu. Continuava na mesma posição, aguardando outra presa.
Alma, com a cabeça colada à rocha, compreendeu que os seus esforços seriam inúteis ao fim, e sentiu como umas lágrimas espantosamente salgadas queimavam as suas faces.
Durante quase dez minutos não se escutou um só som. Milton continuava quieto. Depois, alguém mais se moveu no monte, pela direita. Carey aguardou. A forma fez-se mais precisa; incluso brilhou a espingarda que apontava para ele. E Carey sorria ao ver o ponto de mira do revólver onde se recortava uma cabeça. Disparou outras duas vezes. Com a testa atravessada, um segundo inimigo caiu para o abismo.
-- Só ficam Brakam e dois pistoleiros — sussurrou Alma. — Brakam e dois pistoleiros...
— Intentarão atacar-nos pelas costas. Vigia tu, Alma.
— Ser-lhes-á muito difícil. Achamo-nos colados ao deserto, e nas nossas costas não há nada. Têm de nos atacar de frente ou de cima.
Milton compreendeu que os homens de Wilburn procurariam um novo lugar para fazer fogo. E só o procurariam durante a noite, quando não pudesse advertir os seus movimentos.
O tempo deu-lhe razão. O sol ocultou-se rapidamente e durante várias horas não se produziu nenhum novo ataque. Mas Carey não se moveu. «Se ao menos tivesse um cavalo, poderíamos tentar fugir durante a noite, quando eles mudassem de posição, pensou. Dar-lhe-íamos um bom chasco. Mas agora é inútil procurá-lo. Tenho de aguentar.»
A sede torturava-o, depois de tão longa exposição ao sol, e constantemente intentava humedecer os lábios com a língua. Mas esta estava seca e áspera. O cantil da água achava-se sobre a areia, entre Alma e ele. Tinha de soltá-la precipitadamente, ao ouvir o primeiro disparo.
«Quando escurecer um tanto mais, intentarei alcançá-la — pensou. —Um trago dar-me-á ânimo.»
Assim aguardou pacientemente meia hora, até que a escuridão se fez por completo. Então começou a deslizar pacientemente para o cantil. Mas uma saraivada de detonações comeu a areia junto dele. Dispararam desde algum lugar sobre as suas cabeças, e depois sem apontar, só para desmoralizá-los.
Carey voltou ao seu esconderijo, rodando velozmente sobre si mesmo. Um glu-glu-glu angustioso deixou-se escutar. O cantil tinha sido atravessado e o seu conteúdo derramava-se agora sobre a areia, que o engolia velozmente.
Carey soltou uma imprecação. Depois, com os ouvidos atentos, tentou fixar a posição dos seus inimigos. Inútil. Nenhum som chegava agora de qualquer dos quatro pontos cardiais. Os seus inimigos moviam-se bem. E o mais urgente era ocultar aquele vestido de Alma, cuja cor clara destacaria perigosamente quando a lua aparecesse. Como se adivinhasse os seus pensamentos, a rapariga chegou arrastando-se para junto dele.
-- Não temos água, Milton. Esta tarde desmaiei uma vez, mas antes que me encontrasses, e amanhã te acontecerá o mesmo se não morreres antes. Podes esperar isso.
Carey não parecia escutá-la.
—Tira esse vestido, Alma.
—Como? Pretendes que fique nua?
—Porás a minha camisa. E como saia amarras à cintura a manta que «Satan» levava sempre sobre o lombo. Depois deixarás o vestido branco entre as rochas. Depressa! Despe-te nas minhas costas! Aqui tens a camisa!
Alma obedeceu sem refilar. Carey ouvia os seus rápidos e silenciosos movimentos ao tirar a roupa, e ainda naquelas circunstâncias uma estranha emoção agitou o seu peito. Mas sobrepôs-se a ela.
— Bem. Agora atarei um extremo do vestido à corda da minha cintura. Esconde-te.
Com rápidos movimentos, Carey atou o vestido e lançou-o sobre umas rochas. Ao elevar-se a lua seria visível como uma difusa forma branca. Alma contemplava-o sem despegar os lábios.
--Quando o virem dispararão sobre ele. Tu tens de tirar rapidamente a corda e mover o vestido, como se te ocultasses. Eu me encarregarei do resto.
Duas horas mais tarde a lua apareceu sobre as montanhas do horizonte. Carey pôs-se em pé e aguardou com os revólveres apontados. De entre uns caminhos à sua direita, partiu uma detonação. Alma tirou a corda, e o vestido iniciou um movimento. O disparo voltou a repetir-se.
Milton, que à primeira vez tinha fixado já a posição do atirador, fez um só disparo, deitando-se imediatamente ao chão. Um grito de surpresa e horror brotou das rochas situadas em cima da sua cabeça.
— Só dois inimigos, Alma. Só dois inimigos agora...
Agarrando-lhe a mão, desceram os dois silenciosamente para o deserto. Milton sabia que ali não teriam a proteção das rochas, mas considerava seguro que um dos dois sitiadores tentaria passar rapidamente a cavalo para pedir reforços, e queria evitá-lo.
—Há um carro enterrado ali em baixo—disse Alma, num sussurro—Está cheio de caixotes, e num há moedas de ouro...
Carey olhou-a através da escuridão, sentindo uma nova emoção dentro do seu peito.
—Quando o descobriste?
Ao chegar aqui. Houve um furacão, e removeu a areia. Provavelmente há muitos anos que está enterrado. E, possível que os furacões o tenham posto a descoberto alguma outra vez, mas depois a areia devia cobri-lo em seguida.
Milton suspirou.
— O mundo é muito pequeno, Alma. Ridiculamente pequeno, e por isso mesmo imensamente perigoso. Há muitas probabilidades de que esse carro seja o que enterrou minha mãe por conta da Confederação. Isso lhe custou a vida quando regressava.
E não juntou nenhuma palavra mais. Os dois estavam já no deserto, colados às paredes das rochas.
—Esperaremos aqui. Não tardarão em dar sinais de vida.
Com efeito, uma hora mais tarde, algo como um lento som de cascos ouviu-se sobre a areia. Um cavalo avançava com dificuldade para o deserto. Mas antes que fosse visível a seus olhos, o animal relinchou e depois fez-se um silêncio. O ginete, temendo ser descoberto, tinha voltado as costas.
— Tentarão outra vez— assegurou Carey. — Fizemos muito bem em não dar sinais de vida.
Passaram três horas mais, e uma lenta claridade começou a cair sobre as montanhas do horizonte. O lago de sal despediu os seus primeiros reflexos. Alma estava meio vencida pelo sono e pela fadiga, e Carey sentiu que umas espessas nuvens flutuavam diante dos seus olhos. De repente, algo fê-los pôr-se em guarda. Foi o mesmo barulho de antes, e algo mais. Algo sobre as suas cabeças, instantâneo.
Carey enrodilhou-se, disparando para cima quase sem olhar. Um homem que estava apenas a cinco jardas por cima das suas cabeças, e que se dispunha a matá-los, caiu pesadamente sobre ele, atingindo-o no ventre.
Naquele preciso momento, uma saraivada de balas de revólver arrancou nuvens de areia junto dos seus pés. Brakam tentava atravessar o deserto a cavalo, e fazia fogo contra eles. Mas tão irregulares eram os movimentos da sua cavalgadura, que não podia afinar a pontaria.
Alma lançou uma praga. Com os olhos brilhantes de ódio, fez fogo com o seu revólver. O cavalo de Wilburn veio ao chão com um trágico volteio, junto ao lago de sal. Um espantoso, um opressivo silêncio fez-se sobre os três.
Milton Carey avançou lentamente. As suas feições impassíveis tinham os olhos brilhantes cravados em Brakam, que se tinha posto em pé. A sua mão direita empunhava o revólver negro. Avançou para o seu inimigo com a rigidez e a fatalidade duma fantástica figura de chumbo.
Wilburn, com um grito fez fogo. Mas o percutor golpeou no vazio. Não havia mais balas no tambor do seu revólver. Foi para desenfundar o outro, e Carey atravessou-lhe com um só balázio a mão esquerda. Com os olhos desorbitados pelo terror, Brakam viu-o aproximar-se. A sua mão ferida iniciou no vazio uns movimentos espasmódicos. Da sua garganta partiu um murmúrio seco, uni ronco. Carey atravessava já o lago de sal.
— Tu és... Milton, Carey! Tu... és aquela criança! Não pode ser! Não pode...!
Os seus olhos cravaram-se como hipnotizados no cano do revólver que ia fechá-los para sempre. Quase não deu crédito ao que via quando Carey o atirou ao chão.
—Não vou matar-te com uma bala, Brakam. Matar-te-ei com a minha mão. Com a minha mão direita.
Estavam somente a uns passos de distância, e ambos os homens se atiraram como bestas selvagens uni sobre o outro. Foi uma luta feroz, sem quartel e sem piedade. Uma luta de morte que terminou com Brakam afogado, esvaindo-se em sangue sobre o lago de sal.
Milton Carey levantou-se como um fantasma depois do selvático combate. Com os ombros baixos, como que pesando muito, aproximou-se de Alma. Ambos sem falar, começaram a caminhar pelo deserto. O sol projetava as suas sombras, juntas na areia.
Foi três horas mais tarde quando descobriram Luigi e Gina galopando em dois bons cavalos, atrás dos quais levavam atados outros dois. Ao princípio, Milton pensou que se tratava duma miragem. Mas quando os braços morenos de Luigi o abraçaram teve de reconhecer a realidade.
— Aquele tipo pequeno emborrachou-se em Battesville numa noite—explicou Luigi quando se apearam e beberam todos uns goles de água. — Depois de tragar dezasseis litros de licor, começou a explicar a todo o mundo que Brakam lhe tinha pago para atrair-te a uma cilada. Então eu avisei Gina e preparei os cavalos.
-- E aquele tipo? Não se deu conta?
Luigi olhou para o chão com uma hipócrita atitude de desolação.
—Não se deu conta. Pobrezinho! E agradeço-te que me tenhas recordado, Milton. De vez em quando temos de rezar pelos mortos.
Carey pôs-lhe uma mão no ombro, sorrindo.
—Tu sempre procuraste um bom filão, Luigi, para te casares dignamente com Gina. Neste deserto há um. Um mais importante que aquele que pudeste sonhar na melhor das tuas bebedeiras. Agarra nos cavalos e vai-te embora, Luigi.
O calabrês não teve tempo de reagir, pois Milton, depois de dar-lhe um abraço, apressou-se a sentar Alma sobre o lombo dum dos cavalos livres, saltando para o outro.
—Disse-te a verdade, Luigi. Adeus.
E depois de uma saudação com o braço, ambos empreenderam o trote. A Milton não lhe agradavam as despedidas. Luigi encolheu os ombros, e, cantando uma velha canção da sua terra, seguiu para o deserto. Alma e Milton não falaram durante um grande bocado.
— Que vamos fazer agora? —perguntou ela por fim, olhando-o. —Sou mulher, e como tal, agarrada. Ali havia uma verdadeira fortuna...
— A Luigi far-lhe-á mais falta que a nós. Voltaremos agora a Dusty Plain, e procuraremos um homem honrado chamado Carver. No seu rancho há um bom posto para os dois. Um posto digno para ti, Alma.
Ela sorriu, e os dois olharam-se em silêncio. Ao fim de um momento, pareceu ocorrer a Milton uma ideia.
—O teu pobre cavalo parece cansado, Alma. Porque não me acompanhas no meu? Este parece mais forte...
Ela sorriu outra vez. E obedeceu. A julgar pela presteza com que o fez, parecia que nenhuma ordem mais agradável lhe tinha sido dada na sua vida.
FIM
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