sábado, 5 de janeiro de 2019

CLT024.07 O cerco

Com um seco sabor a pólvora nas suas gargantas, apertando com os dedos as culatras, dobrados os corpos sobre os cavalos que acabavam de roubar, Luigi Starza e Milton Carey tinham-se feito por uns instantes donos da rua, na pacífica cidade de Dusty Plain.
O êxito do seu golpe radicava-se na surpresa e na audácia com que o tinham planeado. Com efeito, nenhum dos pistoleiros postos na cidade por Brakam tinha podido suspeitar, que junto ao solo, entre as rodas do carro que semanalmente fazia serviço de correio entre o sul da Califórnia e a comarca de Dusty Plain, pudesse haver dois homens armados e dispostos a tudo.
Não tinha sido difícil para Carey deter o correio, pois este não estava protegido. Por causa de dezenas de assaltos, tinha-se determinado não admitir a seu cargo nenhum objeto de valor. E os dois homens que guiavam o carro não quiseram averiguar se aqueles revólveres estavam carregados ou não, quando viram as suas bocas apontando-lhes para o peito.
— Não correm perigo. Não receberão nenhuma classe de dano se se limitarem a ignorar a nossa presença —tinha prometido Carey. — Só queremos entrar em Dusty Plain sem sermos advertidos.




Mas como o carro era pequeno e não ia coberto, aquilo era bastante difícil. Milton e Luigi optaram por sentar-se entre as três sacas de correspondência, nas costas do condutor, até avistarem Dusty Plain. Uma vez que a cidade aparecesse na linha do horizonte, Carey fez uma última advertência.
— Vamos ocultar-nos debaixo do carro, apoiados no eixo das rodas —disse, mostrando significativamente um dos revólveres. — Quero que se detenham à entrada da povoação, e que não façam gesto algum às pessoas que os vejam chegar. Se o fizerem—juntou, acariciando o queixo com o cano —sempre me ficará tempo de entregar-lhes uma carta...
Milton levava barba de três dias, tinha o rosto e as roupas cobertas de pó, e mostrava os dentes com um sorriso nada tranquilizador. Os correios tiveram a clara sensação de acharem-se diante dum pistoleiro profissional. E não fizeram nenhum sinal estranho ao entrar em Dusty Plain.
Dois dos homens de Brakam aproximaram-se, não obstante, do carro com movimentos cautelosos. Não tinha deixado de chamar-lhes a atenção que, a certa distância do mesmo, seguisse um cavalo arreado, sem cavaleiro. —
-- Eh! Tu, Forrest! Onde o roubaram?
O correio mais velho coçou a barba. Era um homem pacífico que tinha filhos e netos na Estaca Vermelha, no outro lado do deserto.
—Vem-nos seguindo desde há um bom bocado. Para mim, acho que o seu ginete morreu de sede...
Os pistoleiros de Wilburn mantinham-se a certa distância, receosos, e com as mãos à altura dos revólveres.
— Esperamos a chegada de dois tipos. Um loiro, alto, e outro com bigode, mais baixo. Não os terás visto, hem, Forrest?
Havia um tão claro desejo de intenção na pergunta do pistoleiro, que o velho empalideceu. E fê-lo muito mais quando viu que o gun-man aproximava perigosamente a mão da culatra do seu revólver direito.
Sabia que aquele homem era desconfiado e teimoso, que lhe abriria a cabeça à pancada, se fosse preciso, para que lhe dissesse a verdade.
Mas o revólver não chegou a sair da funda. Algo soou entre as rodas do carro, e os dedos do pistoleiro ficaram tensos. Com uma rapidez fulgurante, o seu companheiro tratou de «sacar», ao ver as duas figuras que como por artes de magia se tinham descido do carro. Mas tão-pouco teve tempo.
Agora interveio Starza, e meteu-lhe um balázio no joelho, Milton acabou o trabalho, dirigindo uma bala contra a clavícula direita do seu primeiro inimigo. Os dois pistoleiros caíram quase ao mesmo tempo, e ainda que não estivessem feridos de morte, sem ganas para começar outra luta.
Carey e Starza saltaram sobre eles e correram para os seus cavalos, dois animais reluzentes e descansados que se entretinham pegando coices no ar, diante dum dos primeiros edifícios de Dusty Plain.
O combate tinha sido rapidíssimo e de efeitos decisivos, mas havia mais pistoleiros na povoação, sem dúvida alguma, e o eco dos disparos devia ter chegado até ao mais longínquo dos recantos da povoação.
Galopando como loucos, Milton e Luigi saíram da povoação, antes de dar tempo para organizar-se os demais pistoleiros de Brakam. Mas Luigi não deixou de advertir que o seu amigo não fustigava nem conduzia o cavalo, que era este que o levava a ele. Ao olhar as feições do jovem, viu nelas algo que não lhe agraciou.
—Pareces petrificado, Milton. Que se passa? A coisa saiu melhor do que podíamos esperar. Temos os cavalos frescos, e os cantis das selas têm água...
— Tenho a impressão de que Alma não veio aqui —disse Carey, como se soltasse uma imprecação.
—Pode ter ido para Estaca Vermelha, amigo. Tudo... tudo é possível.
— Sim, incluso que tenha ido tem com aquele porco de Wilburn.
Havia tanta fúria contida nas palavras de Milton, que o calabrês se intranquilizou.
—Bem. O importante é afastar-nos daqui, sair da ratoeira. Gina deve esperar-nos em Battesville, Oregon. Aquela é uma boa terra, Milton. A partir dali podemos procurar Alma.
—Sim, aquela é uma boa terra.
Carey falava como um sonâmbulo. Luigi estava contente porque ia ter com Gina. A rapariga tinha seguido ao pé da letra as instruções de Carey, e chegou a Battesville um dia antes que os dois homens. Passavam largas horas sentados no alpendre do único hotel da cidade, até ao entardecer, apoiados um no outro.
Carey, pelo contrário, nem sequer tinha tirado as botas desde a sua chegada à povoação. Pelos olhos esgotados pela insónia, os dedos crispados pelo nervosismo, passeava dum lado para o outro do seu quarto do hotel, cujas paredes lhe pareciam os barrotes duma jaula.
— Alma sabe que pensávamos vir para aqui—disse Starza—, e se tem interesse em encontrar-nos, para aqui se dirigirá. Portanto, devemos ter paciência e não nos mover, ao menos enquanto tivermos dinheiro para pagar o alojamento.
E Milton, apesar da impaciência que o devorava, reconheceu que o seu amigo tinha razão, e que não tinham outro remédio senão esperar, esperar como um leão ferido que está passando fome no seu esconderijo.
— Por outro lado, não que te exibas demasiado, Brakam pode ter amigos aqui.
— Sim, tens razão. Tens razão! Todos convém os teus pensamentos, quanto mais ingratos, são mais razoáveis, maldito Luigi!
Durante três largos dias e três inacabáveis noites, Milton teve de mastigar a sua impaciência, contar as moscas do tecto e limpar os seus revólveres. Por fim, ao anoitecer do terceiro dia, não resistiu mais, e dirigiu-se para a saída da povoação. Não tinha caminhado muito, escutou uma voz que lhe dizia:
—Você deve ser Milton Carey.
A voz tinha soado nas suas costas, e o jovem voltou-se com a velocidade de um relâmpago.
— Não me equivoquei. Você é Carey. E tem um amigo com um grande bigode que se chama Luigi.
O homem que estava falando era um dos tipos mais pitorescos que o jovem tinha visto na sua vida. Montava um cavalo raquítico e quase centenário, com grotescas fundas de tela nas orelhas. a coberto de pó e de porcaria, e do cinto caíam dois revólveres oxidados. Tinha uns cinquenta anos; não parecia perigoso.
— Sim; sou Milton Carey. Quem lhe falou de mim?
—Uma mulher.
Carey quase se atirou sobre o recém-chegado.
—Que mulher? Onde? Vamos, fale, depressa! Donde vem?
O tipo desceu calmamente do alto do seu cavalo, cujas patas pareciam endireitar-se ao ficar aliviado do peso, e encarou Milton.
—Falou-me de si uma mulher chamada Alma.
Está num lugar maldito chamado Chopateoc. Encontrei-a entre uns penhascos, meia desfalecida de fome. Sou pesquisador de ouro solitário, e ultimamente percorri aquela zona.
— Chopateoc? Jamais ouvi esse nome. Onde fica?
—Ë um pequeno deserto rodeado de montanhas. Está situado abaixo do nível do mar, e as suas areias desprendem em alguns pontos emanações malignas. Nem os abutres se aproximam dali. Sem embargo, essa rapariga estava meio desfalecida entre as rochas que rodeavam o deserto.
— Fugia de alguém? E como a deixou? Que lhe disse?
— Deixei-lhe comida e água para três dias. Agora já passaram dois. Disse-me que um tipo dos seus sinais estaria em Battesville, e rogou-me que lhe desse notícias dela. Não pude trazê-la porque o meu cavalo não suporta o peso de duas pessoas, e a pé é impossível sair dali.
A excitação de Carey ia aumentando. Estava quase materialmente colocado em cima do homenzito.
—E ela não tinha um cavalo? Como chegou até ali?
— O cavalo que ela tinha, amigo, está desfalecido de sede e descansando sobre a pança. Não tem forças nem para se pôr em pé. E ele que é um negro com mais estampa que o diabo!
— «Satan»!
Agora já não tinha a menor dúvida de que o homenzinho dizia a verdade.
— Obrigado. Muito obrigado. Torne estas duas moedas de ouro em recompensa das suas notícias. E quanto tenho. Se alguma vez necessitar algo de Milton Carey, conte comigo. Vou para ali.
Correndo como um raio ao longo da rua, foi até à cavalariça onde guardava o seu cavalo, e arreou-o num par e minutos. Revistou com uma olhadela os seus revólveres e partiu ao galope sem avisar sequer Luigi Starza O calabrês estava ali, e não tinha razão para se envolver em novas aventuras.
Enquanto Milton se afastava, o homenzinho que tinha dado aquelas informações a Carey, chasqueou a língua contemplando a nuvem de pó que o cavalo do jovem ia deixando no horizonte. Os seus olhos brilharam como um rato, e os seus lábios sorriam com uma careta burlona. Por fim, soltou uma gargalhada.
Os índios tinham chamado Chopateoc àquele maldito lugar onde não crescia a erva, morriam os cavalos e desfaleciam as mulheres. Incluso a guerra civil tinha respeitado aquelas paragens que não interessavam a nenhum dos dois exércitos, e onde durante anos e anos não se anunciava a marca dum pé de homem.
Milton Carey não chegou ali senão dois dias depois da sua saída de Battesville. As patas da sua cavalgadura negavam-se já a seguir quando enfiaram pelos atalhos das montanhas, e uma careta de dureza quase granítica, uma expressão de inconformável frieza marcava as feições do ginete quando caminhava pelos atalhos entre os quais Alma devia estar desfalecida.
As suas mãos seguiam inertes sobre os costados, e os seus dedos estavam em íntimo contacto com as duas culatras negras.
O sol caía a prumo, e arrancava das rochas reflexos de metal. Uma hora mais tarde, foi já impossível seguir a cavalo, e Milton, deixando descansar o animal, começou a trepar só pelos lugares mais inacessíveis.
Uma espantosa sensação de desamparo e solidão ao tinham-se apossado do seu espírito ao contempla aquele lugar. Nem um só ruído chegava aos seus ouvidos, e os olhos não divisavam nenhuma figura humana. Até o céu estava limpo de pássaros. E nem o menor rasto de Alma aparecia diante de Milton.
Foi ao anoitecer quando pensou ouvir algo como relincho dum cavalo. Vinha da sua direita, de entre uns atalhos situados à borda do deserto. Com uma expressão ansiosa, abraçando-se às rochas, Milton Carey dirigiu-se para ali.
Chegou a um abismo debaixo do qual se estendia o deserto, uniforme e desolado, sem outra variação na sua imensa superfície que o estreito lago de sal. Próximo deste viam-se umas madeiras surgindo sinistramente entre as areias, como se estivesse ali algum carro enterrado.
Mas nem rasto dum cavalo entre as rochas. Nada. Milton continuou trepando pelos penhascos, e o relincho repetiu-se então outra vez à sua direita. Pensou agora identificar bem o lugar donde partia. Saltando temerariamente sobre as zonas vazias que se abriam debaixo dos seus pés, adiantou-se umas cinquenta jardas mais no labirinto rochoso. O relincho não voltou a repetir-se.
Desalentado, extraía já um dos seus revólveres para disparar para o ar, a fim de chamar a atenção, quando pensou encontrar uma pista da rapariga.
Num monte de areia que se tinha formado entre várias rochas, encontra-se impressa a marca dum pequeno pé.
-- Alma! — gritou. — Alma!
Não obteve nenhuma resposta, mas em troca ouviu um som nas suas costas. O seu cavalo, pouco amigo da solidão, seguia-o. Segurando-o pelas rédeas, o jovem avançou com cuidado. e repente, um relincho quase em cima da sua cabeça, fez-lhe abandonar toda a espécie de precauções.
Era «Satan», não havia a menor dúvida!
Trepando por um estreito caminho entre rochas, não tardou e achar-se junto da rapariga. Alma jazia sem sentidos sobre um pequeno leito de areia, com as feições enegrecidas por causa do implacável sol.
O cavalo, deitado junto dela, babando-se lastimosamente, pugnava por prestar-lhe um pouco de sombra. Ao ver Milton tratou de pôr-se em pé, mas caindo de novo, esteve quase a esmagar a rapariga.
— Alma!
Aquele nome tinha partido como um grito da garganta de Milton Carey. Levantando-a ligeiramente, depressa se convenceu de que não estava morta. Somente desmaiada por causa da espantosa sede.
Junto dela via-se uma pequena garrafa vazia, e Milton admirou-se da quantidade de água ridiculamente exígua que lhe tinha deixado o pesquisador de ouro. Desatou da sela do seu cavalo os dois cantis, um pequeno e outro de grande tamanho, cheios de água. Aproximando o pequeno dos lábios de Alma, derramou sobre a boca desta umas gotas de líquido, para reanimá-la. Quando a jovem entreabriu os olhos, fê-la beber muito espaçadamente uns poucos goles de água.
— Milton! impossível... Milton!
— Vamos. Bebe com cuidado e não fales. Assim, pouco a pouco. Estás salva, Alma, e imediatamente sairemos deste maldito lugar. Abraça-te a mim. Podes pôr-ta em pé? Assim. Tenta-o.
Mas de repente Carey teve de se atirar violentamente ao chão, arrastando no seu movimento a rapariga. Um som comprido, assobiando, parecido a um gemido humano, chegou até eles desde um caminho longínquo. A bala passou sobre as suas cabeças com um estalar surdo. Aquela foi a primeira descarga.

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