Capítulo V
SAUDACAO DE PISTOLEIRO
Luttell foi enterrado debaixo da areia do deserto. Entre Milton e Starza cavaram uma pequena sepultura num Lugar afastado de todos os caminhos. Com ramas secas formaram uma tosca cruz. A India ajudou-os a cravá-la. Depois rezaram os três, com as cabeças baixas e as mãos nas costas. O velho medico, com o corpo bem repleto de álcool, ficou para sempre repousando debaixo da terra sem água.
—Bem, como diabo to chamas?
A pergunta surgiu quase violentamente dos lábios de Carey, apenas se afastaram uns passos da tosca sepultura. A India nao se atreveu a olhá-lo. Tinha ainda a cabeça baixa, e parecia contemplar a crina do seu cavalo.
—Chamo-me Alma. Sou filha de pai espanhol e de mãe India, nascida no México.
Milton contemplou-a com major interesse. Na verdade, a rapariga delatava a mistura de raças que se tinha dado nela. E isso fez-lhe recordar uma das frases favoritas do velho Luttell: «A natureza nunca consegue obras mestras com elementos puros. Se queres um vinho excelente mistura duas classes de vinho. E se queres obter uma mulher que de verdade tenha algo, mistura duas raças.»
—Luttell tinha razão—disse para si mesmo, esporeando o seu cavalo. E aquela sensação de levar a seu lado uma coisa demasiado frágil e excessivamente bela, irritou-lhe os nervos.
— Que fazias to no rancho de Brakam? —perguntou, sem intentar dulcificar a voz.
—Nasci nele, quando os Brakam tinham uma pequena extensão de terreno ao sul do Texas. Meu pai tinha morrido, e minha mãe estava encarregada no rancho de trabalhos muito penosos. Eu segui o seu caminho. No México e aqui.
— Bem, nao era isso melhor que bailar num teatreco?
Alma, que o tinha olhado fixamente, baixou de novo a vista ao escutar aquela frase.
— As minhas relações com Wilburn Brakam nao eram boas. Esse foi o motivo de tudo.
—Brakam nao esta em boas relações com ninguém, creio eu. E por isso to vieste embora roubando uma espingarda e um cavalo?
A rapariga continuava com os olhos pousados no chão, soltou as rédeas, deixando que o seu cavalo fosse livremente a passo.
— É que Wilburn desejava-me — sussurrou Alma. —Tinha-se fixado demasiado em mim, e quando isso acontece no rancho Brakam, uma mulher já sabe qual e o seu destino.
Milton Carey olhava em frente. As chamas da fogueira refletiam-se nos seus olhos, e arrancavam aos seus cabelos doirados um brilho estonteante. Continuava sendo, como lhe disseram anos antes no Missouri, demasiado belo. Mas agora uma expressão sinistra deformava as suas feições, e as suas mãos moviam-se estranhamente, dominadas por um nervosismo que nunca tinha sentido.
Milton Carey cheirava como um coiote o ar da noite. A seu lado, envoltos em mantas, Starza e Alma dormiam separados por um par de jardas de terra parda. Ele estava de guarda. O revolver que levava na sela do cavalo, poisava a seus pés. E agora, pela primeira vez em muito tempo, tinha nele seis cápsulas.
Tinham caminhado a passo durante todo o dia, afastando-se o mais possível de Dusty Plain, procurando que os tragasse o deserto. Agora, protegidos por uma imensidade de terra árida, Milton Carey considerava que os três estavam seguros. Mas a sua situação nao podia continuar por demasiado tempo assim.
Os seus olhos deram uma volta ao diminuto acampamento, e puseram-se na figura indefesa da rapariga. Como um relâmpago doloroso, a visão do poste debaixo do sol abrasador veio-lhe aos olhos. Algo que nao estava acostumado a sentir latiu no seu peito, duma maneira doce, suave, lenta.
Alma moveu-se debaixo das mantas. Deu meia volta para ele e olhou-o com os seus olhos bem negros. Estava desperta. Nao fizeram nenhum sinal, como se os dois tivessem esperado aquilo. Os olhos azuis de Milton e os negros de Alma encontraram-se no caminho da noite. Envoltos no silencio, separados só pelo revolver que Carey tinha a seus pés, os dois sentiam como os seus olhares penetravam como um formigueiro debaixo da sua pele.
Milton, que tinha estado brusco durante todo o dia, intentando desfazer-se da rapariga, descobriu agora que junto dela o invadia uma grande sensação de paz. Apoiando-se no seu bravo estirado, aproximou-se da rapariga.
— Onde pensas chegar com aquele cavalo? — sussurrou.
Tinha debaixo dele o rosto de Alma, que o olhava no silencio com os seus olhos negros.
— Pensava chegar ao México. Aquele é outro país.
—Porque atuaste num local como aquele? Nao te ocorreu pensar que corrias perigo?
— Necessitava de dinheiro. Minha mãe ensinou-me três coisas: a passar fome com alegria, a sofrer em silêncio e a bailar. O dono do saloon fez-me uma prova. Acordamos numa boa quantidade só por dois espetáculos. Era o que eu necessitava para chegar sem apuros ao México. E pensei que os homens de Brakam tinham perdido já a minha pista.
Milton aproximou-se mais dela, tanto que quase podia perceber o seu hálito. E o seu era um hálito fresco e fragante, que acalmava o ardor que continuamente ascendia da terra seca. Uma pergunta queimava os lábios do jovem:
—Que sucedeu com Wilburn?
Alma nao afastou o olhar dele.
— Wilburn é uma hiena.
—E no teu caso...?
—No meu caso nao sucedeu nada porque fugi a tempo. Porque soube roubar uma espingarda e um cavalo.
Milton deu-se conta agora de que tinha retido o ar nos pulmões. E os seus lábios entreabriram-se num sorriso consolador e largo.
— Connosco corres perigo, Alma? — disse.
—Nao. Eu nao corro já em nenhum sítio mais perigos dos que corri até agora. Mas trouxe-lhes ma sorte. Brakam os perseguirá como aos coiotes. Os encurralará no deserto. Amanhã...
Fechou os olhos uns momentos, como se necessitasse de nao ver Milton para poder continuar falando.
— Amanhã os deixarei. Posso chegar só ao México, onde estarei livre da perseguição desse homem. Vocês podem seguir para o norte, para Oregon, pela Serra Nevada. E quase impossível que o exército de pistoleiros a soldo que Brakam porá em movimento, os cace por ali. Esta e a primeira e a última noite que compartilho a tua companhia, Milton.
Carey estava olhando bem no fundo dos olhos negros da jovem. Os olhos mais negros, brilhantes e profundos que jamais tinha visto. Apenas ouviu as palavras de Alma.
Só despertou da realidade quando uma mão oprimiu por detrás da sua cabeça. Suavemente impulsionado, sentiu como os seus lábios se aproximavam dos de Alma. E só ao notar o cálido hálito, advertiu que a mão que tao suavemente o dominava era a da rapariga.
Luigi Starza despertou nesse instante, mas nao os viu beijarem-se. Dizendo uma imprecação, pediu a Milton o revólver e dispôs-se a consumir o seu turno de guarda. A noite era escura, e Milton envolveu-se na manta do seu amigo, afastando-se de Alma. Com uma estranha lentidão estendeu-se do outro lado da fogueira. Mas nao pôde dormir.
Ao amanhecer, Luigi continuava no seu posto, vigiando a imensidade do deserto. Carey, com os olhos ainda abertos, assobiou para chamar a sua atenção.
— Luigi...
O chamado aproximou-se sem fazer barulho.
—Vou levar o nosso revólver. Quero voltar a Dusty Plain, e comprar algumas coisas para a rapariga. Estamos de acordo em que se ira embora hoje, mas nao quero que o faça com essa roupa.
—Maldito seja o dia em que te conheci, Carey. A minha mãe dizia que todos os homens acabavam tornando-se loucos logo que nos seus estúpidos narizes entrava o cheiro duma mulher. Em ti demorou bastante tempo. Que diabo queres procurar em Dusty Plain? Chumbo?
Milton fez um enérgico sinal para que o seu amigo baixasse a voz.
—Tenho de fazer ali duas coisas: comprar roupas para a rapariga e um revolver novo. Com este nao podemos defender-nos os dois.
—Nem o precisaremos, Milton, se atuarmos como atuariam os bisontes, que são mais espertos que nos: pondo terra de permeio. De que to servira o revolver, se tens de enfrentar-te com todos os pistoleiros de Brakam?
Luigi tinha voltado a excitar-se, e Milton temeu que acabasse por despertar a rapariga.
— Também tenho de fazer outra coisa, estúpido: indicar a tua noiva a direção que levamos. Acaso nao queres voltar a vê-la?
Compreendeu que aquele argumento era decisivo para Luigi. O siciliano começou a coçar o queixo e a mastigar o ar.
— Bem, então vou contigo — decidiu por fim. —Estás louco? A minha intenção é passar inadvertido, e penso que só eu poderei consegui-lo. Em troca, se vens comigo, haverá escândalo em Dusty Plain. por isso vou sozinho, e alem disso necessito que alguém fique cuidando da rapariga.
Luigi olhou o suave contorno de Alma debaixo da manta, e depois cravou os seus olhos no rosto de Milton Carey.
— De acordo, Milton. Sorte.
O jovem pôs-se em pé, e arreou o seu cavalo em silencio. Já nao era o poldro que, ferido numa pata, enviou Luttell pelos ares, no Novo México. Aquele jazia enterrado na Gruta de Oregon, numa sepultura simplesmente adorada, como a de um homem. Este era uma espécie de diabo negro, cujos olhos despediam chispas ao pressentir a galopada. Chamava-se «Satan», e o nome era adequado ao seu aspeto.
— Hoje teremos trabalho — disse-lhe Milton ao ouvido, acariciando-lhe o robusto pescoço.
Procurando não fazer o menor ruído, montou e empreendeu o seu caminho, a passo, sem voltar a cabeça. Tinha colocado o revolver numa pequena funda da sela, e revistou-o empunhando-o com a mão esquerda. Luigi ficava desarmado.
«Toda a vida temos sido uns loucos, uns imprudentes», pensou Milton, sentindo que algo novo nascia dentro dele. Algo que, desde logo, nao era agradável nem pacifico. Voltou-se e viu ao longe, imóvel, Luigi Starza. A rapariga tão-pouco se tinha movido.
Roçou com as esporas o cavalo, e este, que tinha estado mordendo o freio continuamente, empreendeu o galope. Passado o meio-dia, depois duma furiosa corrida, chegaram a Dusty Plain.
O sol, no seu apogeu, enviava sobre a cidade os seus espessos raios de luz. O pó, sobre as casas de madeira, era dourado e macio. Carey entrou a trote pela rua principal, sem olhar para os lados. No único armeiro de Dusty Plain teve uma surpresa: o dono era o velho desdentado que duas noites antes lhe dera os seus revolveres.
—Celebro vê-lo por aqui, «Gatilho» —disse, rindo sem cerimónia. —Nao pense que os homens como você abundam nesta parte do Estado. Ao cabo duma temporada, ficam cansados, e vão dormir debaixo da terra. Mas creia-me que se lho digo é porque me alegra ver que você intentara evitá-lo.
— Que venha comprar um par de revolveres nao significa nada — disse Carey. — Agrada-me atirar ao alvo aos domingos de tarde. Vamos, mostre-me esse. O que tem nas suas costas.
O velho voltou-se para tirar do seu gaucho um revolver negro de cano largo, tao bom como o que sonharia um gun-man depois duma borracheira. Milton mirou-o.
— Agrada-me — disse. — Tem o seu par?
—Nao lhe aconselho que leve dois iguais, «Gatilho». Este é para grandes distâncias. Tem balas pesadas, e pode substituir uma espingarda nalguns casos. Para corpo a corpo, leve este outro. É igualmente preciso e pesa menos.
— Nao me agrada atirar com brinquedos. Tenho certa debilidade pelas balas pesadas, que fazem sofrer pouco. Dê-me o par deste e um cinturão.
O velho serviu rapidamente Milton Carey, sem abandonar o seu riso. Os seus olhos brilhavam de gozo.
—Foi um formoso espetáculo o da outra noite — comentou em voz baixa. —Um belo e instrutivo espetáculo.
—Ouvem-se muitas coisas estranhas em Dusty Plain — respondeu Milton, sem olhá-lo. — Acabara dizendo-me que este é um bom sítio para passar uma lua de mel e para a educação da infância. Quanto vale esta artilharia?
— Para si, nada.
Milton olhou-o nos olhos.
—Porquê?
—Wilburn Brakam matou o meu irmão há três anos. E eu sou um cobarde, «Gatilho». Por isso respondo-lhe: para si, nada.
Milton, com um meio sorriso especial, assegurou os seus revolveres nas fundas, e saiu da loja sem voltar as costas.
A sua segunda visita foi ao saloon onde na noite da luta entrara juntamente com Starza.
Milton Carey nao estava acostumado ao que se produziu quando empurrou as portas e deixou que a sua figura se recortasse claramente no umbral. O movimento de surpresa, de admiração dos assistentes, foi uma experiência nova para ele.
Com passos lentos, intentando nao perder de vista ninguém, encaminhou-se para o balcão.
— Rum — pediu, voltando-se de cara para a sala.
Aparentemente, depois da sua entrada, ninguém fazia caso dele já. A dúzia e meia de clientes continuava bebendo, falando e divertindo-se. Mas havia um ambiente hostil e estranho na sala. Milton cheirou-o.
Próximo dele, no balcão, só havia um homem, um tipo de uns quarenta anos, bem vestido, de negro, com expressão serena e nobre.
Enquanto bebia, Milton observou os grupos um por um. Nao soube ver nada de estranho nem perigoso em nenhuma personagem determinada. Entretanto estava abstraindo esta observação, sentiu que lhe puxavam suavemente pela manga.
Era Gina, a noiva de Luigi Starza. Tinha-se aproximado dele em silencio, e olhava-o suplicante com os seus olhos negros. Não tão negros nem tão formosos como os de Alma, pensou Carey.
—Onde esta Luigi? — perguntou, em voz baixa, a bailarina.
—Nao fales demasiado comigo, Gina. Luigi está a salvo no deserto. Amanhã partiremos para Battesville, em Oregon. Recorda este nome! Battesville, em Oregon. Ali nos encontraras, se nos seguires daqui a dois Bias. E agora, beija-me. Intenta abraçar-me!
—Mas...
— Beija-me, Gina! Intenta abraçar-me como se quisesses algo de mim!
Milton tinha falado em voz baixa, e sem olhar para a mulher. Esta compreendeu, e com um movimento desenvolto, intentou beijar Milton, que se afastou violentamente com um sinal de desprezo. Na sala houve uma risada. Foi então quando Milton compreendeu que todos aqueles tipos estavam atentos e que ouviam sem olhá-lo.
—Parece que só to agradam os pistoleiros, Gina — disse um deles, olhando insolentemente a rapariga — Porque não fazes isso comigo?
Gina cuspiu no chão e afastou-se para o fundo do saloon. O estratagema de Carey tinha tido sucesso. Ao que parece, todos pensavam que a bailarina se tinha aproximado dele atraída simplesmente pela sua presença masculina.
Aquele pequeno incidente tinha aquecido o ar. O rancheiro vestido de negro teve agora a suficiente confiança para dar um passo para Milton.
—Sou o dono do «Carver Ranch», amigo. Aqui tem a minha mão.
Milton Carey apertou-a, atraído pela expressão franca do rancheiro. Ao fazê-lo fixou-se num dos tipos, um vaqueiro duns vinte e oito anos, que o olhava de soslaio fingindo ocupar-se somente do seu copo de genebra.
— Chamo-me Milton — disse o jovem, abandonando a vigilância do suspeito. —Sou pesquisador de ouro.
O rancheiro sorriu.
—Há ocupações mais proveitosas que a de procurar ouro na Califórnia, amigo, sobretudo quando o ouro não se encontra. Porque não me faz uma visita no «Carver»? Agora estou sem capataz, e necessito dum homem. Que seja um homem, um verdadeiro homem.
— Se o que quer dizer é que necessita dum pistoleiro, eu não o sou, Carver.
—Não quis dizer isso. Não só me fixo nas mãos dos homens com quem lido, mas também nos olhos. E os seus são claros e límpidos, Milton. Sem desprezar as suas mãos, claro.
Bebeu um gole do copo de rum que tinha diante dele, sem afastar o seu olhar do rosto do seu interlocutor. Juntou, em voz baixa:
— Como você, só vi atirar a um homem, há muitos anos no Texas. Era una tipo tranquilo e que sempre parecia confiar no último segundo. Chamava-se Rody Carey.
Milton sentiu que algo que havia estado separado dele durante muitos anos, voltava a encher-lhe o peito.
— Chamo-me Milton Carey — declarou.
O outro iniciou um sinal de surpresa, mas não teve tempo de concluí-lo. Com a rapidez dum raio, Milton atirou-se sobre ele e rodaram os dois, em confuso monte, sobre o chão de madeira. O som da sua queda confundiu-se com o de uma grande prateleira de cristal ao ser partida por uma bala.
Mesmo no chão, Milton fez fogo com a esquerda, extraindo um dos revólveres negros. O tipo em que momentos antes se fixara, e cujo revólver fumegava ainda na sua mão direita, não recebeu o impacto, mas teve de atirar-se ao chão.
A maior parte dos clientes tinha adotado também esta prudente posição no momento em que o jovem se atirara sobre Carver. Os dois revólveres voltaram a fazer fogo quase simultaneamente. O chapéu do atacante voou da sua cabeça. E então, Milton falou. Falou antes de enviar ou receber a bala decisiva, coisa que não teria feito ninguém. A sua voz era tranquila e suave, mas tinha em cada inflexão urna dureza metálica.
— Retira-te agora, pistoleiro. Retira-te agora, filho remeloso dos porcos de Brakam. Todos estes homens são testemunhas de que não te matarei. Vim a Dusty Plain com intenções pacíficas, e não quero que um passarão como tu me estrague a tarde.
Falava com a cara no chão, apoiado no cotovelo esquerdo e com o braço direito levantado. A mão terminava no revólver negro. Nem uma centésima de polegada se movia o cano. Não vacilava a culatra, sinistramente agarrada pelos seus dedos.
O pistoleiro estava só a uns quinze passos dele, também na mesma pose. Mas o seu revólver não estava firme, e as suas pupilas tinham-se tornado vermelhas.
Era certo que disparariam os dois ao mesmo tempo, e que os dois se alcançariam. Mas assim como Carey podia matar, era de esperar que o seu inimigo não conseguisse colocar a bala num ponto vital, se vacilava somente umas décimas de segundo.
A proposta de Milton, em semelhantes circunstâncias, era mais que razoável. Todos adivinharam, sem embargo, que tinha falado para salvar a tranquilidade da sua consciência, ainda que não desejasse que o outro a aceitasse. Adivinharam também que o pistoleiro não a aceitaria. Os olhos tornaram-se pequenos, brilharam na espera do instante fatal em que as duas balas partiriam em busca das duas vítimas. Até que de repente ocorreu algo. Foi algo tão rápido e alucinante, que os dois protagonistas do drama apenas o advertiram.
Um dos bebedores, um homem que tinha estado contemplando a cena, solitário num ângulo da sala, decidiu intervir para equilibrar a balança, para o lado do pistoleiro de Brakam. O seu revólver saltou do coldre como uma exclamação, e fez fogo. Mas a bala perdeu-se no chão de madeira, porque no momento de surgir, o dono do revólver que tinha disparado já estava morto.
Carver, que conhecia perfeitamente todos os pistoleiros de Wilfurn Brakam, não o tinha perdido de vista. Ao vê-lo levantar-se, ele, que já estava de pé e com a mão direita à altura do coldre, aproveitou o segundo de vantagem.
A bala foi cravar-se no tórax do assassino, meia polegada abaixo do coração. Aquele disparo decidiu também a sorte do primeiro pistoleiro. O ligeiríssimo sobressalto que teve ao sentir sobre a sua cabeça a inesperada trajetória da bala, fez-lhe levantar o revólver. E ainda viu como o dedo de Carey se cerrava sobre o gatilho e teve tempo de responder, mas o seu projétil foi ligeiramente alto. Não obstante, morreu sem conhecer a dor do que sabe que falhou a sua última bala. Quando esta foi estatelar-se na borda do balcão, a de Carey tinha atravessado o frontal, penetrando até ao fundo do seu crânio.
Um longo silêncio caiu sobre a loja, e um penetrante cheiro a pólvora espairecia sobre os dois mortos. Com as feições rígidas, os olhos inexpressivos, Carey enfundou o seu revólver.
—Tem de sair daqui, Milton —disse-lhe Carver, aproximando-se dele. — Saia daqui, e não se lhe ocorra voltar a pôr os pés nesta maldita povoação. Brakam é praticamente o seu dono, e ao terceiro encontro não sairá com vida.
Carey olhou-o, sem lhe responder. De improviso, dando meia volta, dirigiu-se com passo vivo para a porta do local. Um murro embateu-lhe no queixo fazendo-o tremer.
As portas do saloon tinham-se aberto quando ele se dispunha a sair. O homem que entrava quase que chocou com ele. Era alto, forte, e com uma expressão cínica no rosto, apesar de ser bastante belo. Devia ter uns trinta e três anos, e estava no apogeu da sua saúde e da sua força. Ele foi o primeiro a reagir, ao tropeçar com Carey, e como não estava disposto a que ninguém pusesse os pés onde ele pensava colocá-los, o seu punho direito saltou como uma catarata para o queixo do atrevido.
Carey, aturdido pela surpresa e pela dor, não o reconheceu. Não pôde sequer reagir, porque quando ia a fazê-lo, a bota do recém-chegado cravou-se-lhe no estômago. Deu um passo para trás, enquanto se encolhia. Adivinhou que agora viria um gancho definitivo ao seu queixo, senão algo pior, e confirmou esta convicção com a caminhada triunfal do seu inimigo.
Por isso, sem variar a posição em que o tinha deixado o pontapé do intruso, lançou-se como uma fera sobre o vulto que tinha diante, com os punhos fechados à altura da cara.
O gancho que esperava, proporcionado com uma força e uma precisão admiráveis, perdeu-se contra estes. E o choque de Milton contra o seu inimigo, um «laço» ilegítimo de boxe para desequilibrá-lo e ganhar tempo, logrou bom resultado. O intruso vacilou uns instantes, e quando quis reagir, Milton já estava erguido em frente dele e com os braços a postos. O seu punho esquerdo saiu disparado, e num movimento de gancho lateral, lançou-se para diante, selvaticamente, arrancando a sobrancelha direita do recém-chegado.
Este, com um grito de dor, quis responder, e recebeu em pleno nariz um terrível impacto do seu inimigo, que o deixou sem vista. Outro gancho da esquerda atrás da orelha, fez-lhe sentir um zumbido dentro do crânio. A direita atuou fazendo-lhe saltar a metade da sobrancelha que lhe tinha ficado. Um movimento de «um-dois», com ambos os punhos, endereçou-lhe e pô-lo a ponto da série definitiva. Esta veio em seguida, contendo o movimento das mãos do outro, que já se dirigiam aos revólveres. O punho esquerdo esborrachou-lhe os lábios contra os dentes, partindo-os. O direito, golpeando a prazer, pois o homem tinha os olhos fechados e chorosos, cobertos por uma capa de sangue. golpeou na testa, comprimindo-a num choque que podia ser mortal. Um novo «um-dois» ao estômago encolheu a vítima, e por fim, a bota direita de Carey estalou brutalmente contra o seu queixo, partindo-lhe o maxilar e enviando o agressor para fora do local, como um despojo. Passando sobre ele sem dirigir-lhe uma olhadela, pois não queria permanecer por mais tempo naquele sector da cidade, Milton Carey saiu e desatou o «Satan». Carver seguiu-o, branco como um morto.
— Ouça, Milton —disse. —`Tão quero complicar mais as coisas, amigo Carver. Se você me deseja aconselhar a ir embora desta cidade, pode economizar o seu discurso, porque vou fazer isso mesmo.
— Não. Não se trata precisamente disso. É que...
Interrompeu-se, porque naquele instante saíram três homens do alpendre e levando cuidadosamente o derrotado que sangrava por todos os lados e que ainda não tinha recobrado os sentidos. Atrás deles, um tipo ruivo, com nariz de lebre, saiu correndo em direção ao saloon fronteiro. Era denunciante oficial de Dusty Plain, se bem que Milton ainda o não soubesse. Carver desatou também o seu cavalo, um formoso albino de olhos chamejantes.
—Milton, detenha esse tipo com duas balas no chão. Refiro-me ao ruivo. A esse que corre como uma lebre. Vai avisar os pistoleiros.
— Que outros pistoleiros? A quem diabo se refere?
— Maldito seja! Não percamos mais tempo!
Desenfundou o revólver e fez fogo para os pés do ruivo. Mas este achava-se já demasiado próximo do seu objetivo, e ainda que a bala levantasse junto das suas esporas uma nuvem de pó, conseguiu dum salto introduzir-se no local. O informe que ia dar valer-lhe-ia talvez trezentos dólares. Milton e Carver estavam já montados. Foi o rancheiro o primeiro a empreender o galope.
— Pronto! Siga-me! Acompanhá-lo-ei até à saída da povoação, e depois... que Deus o ajude!
Milton compreendeu que se falava num novo perigo, e ainda que não atinasse com a realidade deste, lançou «Satan» a galope, sem fazer novas perguntas. Quando dobraram a esquina imediata, uma saraivada de chumbo voou atrás deles. Milton teve tempo de ver seis ou sete homens que saíam a toda a pressa do saloon onde entrara o denunciante, e que montavam nos seus cavalos enquanto faziam fogo. Carey galopava como um furacão ao lado do rancheiro.
— Quem são esses? Mais pistoleiros de Brakam?
—Essa é uma grande pergunta, amigo. Veio a Dusty Plain justamente quando ele lhe apeteceu dar uma volta pela povoação. E deu de caras com ele na mesma porta. O homem a quem acaba de bater era o próprio Wilburn Brakam!
Milton iniciou com as rédeas um movimento para dar uma volta com «Satan».
—Brakam? De modo que aquele tipo era Wilburn Brakam? Afaste-se depressa, Carver! Dentro de poucos minutos terei depositado no peito desse homem uma bela carga de chumbo.
Mas o rancheiro não respondeu a estas palavras. Com a mão esquerda, e ainda com riscos de perder o equilíbrio, agarrou «Satan» impedindo que este realizasse a manobra exigida pelo seu dono. Milton viu-o encabritar-se, irritado.
— O que é que pretende, Carver? Que fuja?
— Pretendo que não o matem inutilmente, louco! Enfrentar-se agora é como procurar ouro na cabeça dum cavalo! Nem sequer chegaria a vê-lo! Os seus pistoleiros lhe vazariam os olhos!
Milton, ainda dominado pela excitação, compreendeu que o rancheiro falava como homem razoável. Que não lograria voltar ao saloon encontrando no caminho oito pistoleiros dispostos a tudo. Por isso, quando Carver empreendeu de novo o galope, e «Satan» se pôs a seguir, ciumenta mente, o seu companheiro, não fez nada para evitá-lo.
Instantes mais tarde voltava a galopar emparelhados os dois. Os seus perseguidores não tinham tão bons cavalos, e estavam quase a meia milha de distância. Mas eram portadores de esplêndidas espingardas, e Milton adivinhou que quando chegassem à planície intentaria comprovar a sorte no tiro à distância.
— O homem com quem tropeçou era Wilburn Brakam — repetiu Carver. — Vem de vez em quando a Dusty Plain, e sempre o acompanha uma corte de assassinos. Mas deixa-os num saloon próximo ao que ele escolhe. Ê mais elegante, e até agora nunca lhe tinha ocorrido nada em Dusty Plain. Era como se visitasse a sua própria casa.
—Mas, porque me agrediu? Não teve tempo de me reconhecer. Eu apenas o distingui.
—Reconheceu-o? Já o tinha visto antes?
Milton respondeu com uma voz sibilante, arrastando depreciativamente os «s».
— Sim... No Novo México, mas faz já alguns anos. Eu era então uma criança, e ele começava a ser um homem. Fizemos uma boa amizade, mas continuo sem entender porque me bateu sem sequer me olhar.
Naquele momento assobiou sobre as suas cabeças a primeira bala de espingarda. Os dois adivinharam que era um tiro de ensaio, e que os seus perseguidores tinham poucas possibilidades de fazer pontaria, porque se encontravam ainda sobre o lombo dos seus cavalos.
— A Brakam não lhe agrada que ninguém se permita tropeçar com ele, como se fosse um qualquer. O que aconteceu hoje já sucedeu várias vezes em Dusty Plain, com diferença que o que apanha não se atreve a responder-lhe. Wilburn tropeçou consigo sem se importar quem fosse. E teve sorte que a luta se desenrolasse junto da porta. Ninguém pôde sair para avisar os seus pistoleiros.
SAUDACAO DE PISTOLEIRO
Luttell foi enterrado debaixo da areia do deserto. Entre Milton e Starza cavaram uma pequena sepultura num Lugar afastado de todos os caminhos. Com ramas secas formaram uma tosca cruz. A India ajudou-os a cravá-la. Depois rezaram os três, com as cabeças baixas e as mãos nas costas. O velho medico, com o corpo bem repleto de álcool, ficou para sempre repousando debaixo da terra sem água.
—Bem, como diabo to chamas?
A pergunta surgiu quase violentamente dos lábios de Carey, apenas se afastaram uns passos da tosca sepultura. A India nao se atreveu a olhá-lo. Tinha ainda a cabeça baixa, e parecia contemplar a crina do seu cavalo.
—Chamo-me Alma. Sou filha de pai espanhol e de mãe India, nascida no México.
Milton contemplou-a com major interesse. Na verdade, a rapariga delatava a mistura de raças que se tinha dado nela. E isso fez-lhe recordar uma das frases favoritas do velho Luttell: «A natureza nunca consegue obras mestras com elementos puros. Se queres um vinho excelente mistura duas classes de vinho. E se queres obter uma mulher que de verdade tenha algo, mistura duas raças.»
—Luttell tinha razão—disse para si mesmo, esporeando o seu cavalo. E aquela sensação de levar a seu lado uma coisa demasiado frágil e excessivamente bela, irritou-lhe os nervos.
— Que fazias to no rancho de Brakam? —perguntou, sem intentar dulcificar a voz.
—Nasci nele, quando os Brakam tinham uma pequena extensão de terreno ao sul do Texas. Meu pai tinha morrido, e minha mãe estava encarregada no rancho de trabalhos muito penosos. Eu segui o seu caminho. No México e aqui.
— Bem, nao era isso melhor que bailar num teatreco?
Alma, que o tinha olhado fixamente, baixou de novo a vista ao escutar aquela frase.
— As minhas relações com Wilburn Brakam nao eram boas. Esse foi o motivo de tudo.
—Brakam nao esta em boas relações com ninguém, creio eu. E por isso to vieste embora roubando uma espingarda e um cavalo?
A rapariga continuava com os olhos pousados no chão, soltou as rédeas, deixando que o seu cavalo fosse livremente a passo.
— É que Wilburn desejava-me — sussurrou Alma. —Tinha-se fixado demasiado em mim, e quando isso acontece no rancho Brakam, uma mulher já sabe qual e o seu destino.
Milton Carey olhava em frente. As chamas da fogueira refletiam-se nos seus olhos, e arrancavam aos seus cabelos doirados um brilho estonteante. Continuava sendo, como lhe disseram anos antes no Missouri, demasiado belo. Mas agora uma expressão sinistra deformava as suas feições, e as suas mãos moviam-se estranhamente, dominadas por um nervosismo que nunca tinha sentido.
Milton Carey cheirava como um coiote o ar da noite. A seu lado, envoltos em mantas, Starza e Alma dormiam separados por um par de jardas de terra parda. Ele estava de guarda. O revolver que levava na sela do cavalo, poisava a seus pés. E agora, pela primeira vez em muito tempo, tinha nele seis cápsulas.
Tinham caminhado a passo durante todo o dia, afastando-se o mais possível de Dusty Plain, procurando que os tragasse o deserto. Agora, protegidos por uma imensidade de terra árida, Milton Carey considerava que os três estavam seguros. Mas a sua situação nao podia continuar por demasiado tempo assim.
Os seus olhos deram uma volta ao diminuto acampamento, e puseram-se na figura indefesa da rapariga. Como um relâmpago doloroso, a visão do poste debaixo do sol abrasador veio-lhe aos olhos. Algo que nao estava acostumado a sentir latiu no seu peito, duma maneira doce, suave, lenta.
Alma moveu-se debaixo das mantas. Deu meia volta para ele e olhou-o com os seus olhos bem negros. Estava desperta. Nao fizeram nenhum sinal, como se os dois tivessem esperado aquilo. Os olhos azuis de Milton e os negros de Alma encontraram-se no caminho da noite. Envoltos no silencio, separados só pelo revolver que Carey tinha a seus pés, os dois sentiam como os seus olhares penetravam como um formigueiro debaixo da sua pele.
Milton, que tinha estado brusco durante todo o dia, intentando desfazer-se da rapariga, descobriu agora que junto dela o invadia uma grande sensação de paz. Apoiando-se no seu bravo estirado, aproximou-se da rapariga.
— Onde pensas chegar com aquele cavalo? — sussurrou.
Tinha debaixo dele o rosto de Alma, que o olhava no silencio com os seus olhos negros.
— Pensava chegar ao México. Aquele é outro país.
—Porque atuaste num local como aquele? Nao te ocorreu pensar que corrias perigo?
— Necessitava de dinheiro. Minha mãe ensinou-me três coisas: a passar fome com alegria, a sofrer em silêncio e a bailar. O dono do saloon fez-me uma prova. Acordamos numa boa quantidade só por dois espetáculos. Era o que eu necessitava para chegar sem apuros ao México. E pensei que os homens de Brakam tinham perdido já a minha pista.
Milton aproximou-se mais dela, tanto que quase podia perceber o seu hálito. E o seu era um hálito fresco e fragante, que acalmava o ardor que continuamente ascendia da terra seca. Uma pergunta queimava os lábios do jovem:
—Que sucedeu com Wilburn?
Alma nao afastou o olhar dele.
— Wilburn é uma hiena.
—E no teu caso...?
—No meu caso nao sucedeu nada porque fugi a tempo. Porque soube roubar uma espingarda e um cavalo.
Milton deu-se conta agora de que tinha retido o ar nos pulmões. E os seus lábios entreabriram-se num sorriso consolador e largo.
— Connosco corres perigo, Alma? — disse.
—Nao. Eu nao corro já em nenhum sítio mais perigos dos que corri até agora. Mas trouxe-lhes ma sorte. Brakam os perseguirá como aos coiotes. Os encurralará no deserto. Amanhã...
Fechou os olhos uns momentos, como se necessitasse de nao ver Milton para poder continuar falando.
— Amanhã os deixarei. Posso chegar só ao México, onde estarei livre da perseguição desse homem. Vocês podem seguir para o norte, para Oregon, pela Serra Nevada. E quase impossível que o exército de pistoleiros a soldo que Brakam porá em movimento, os cace por ali. Esta e a primeira e a última noite que compartilho a tua companhia, Milton.
Carey estava olhando bem no fundo dos olhos negros da jovem. Os olhos mais negros, brilhantes e profundos que jamais tinha visto. Apenas ouviu as palavras de Alma.
Só despertou da realidade quando uma mão oprimiu por detrás da sua cabeça. Suavemente impulsionado, sentiu como os seus lábios se aproximavam dos de Alma. E só ao notar o cálido hálito, advertiu que a mão que tao suavemente o dominava era a da rapariga.
Luigi Starza despertou nesse instante, mas nao os viu beijarem-se. Dizendo uma imprecação, pediu a Milton o revólver e dispôs-se a consumir o seu turno de guarda. A noite era escura, e Milton envolveu-se na manta do seu amigo, afastando-se de Alma. Com uma estranha lentidão estendeu-se do outro lado da fogueira. Mas nao pôde dormir.
Ao amanhecer, Luigi continuava no seu posto, vigiando a imensidade do deserto. Carey, com os olhos ainda abertos, assobiou para chamar a sua atenção.
— Luigi...
O chamado aproximou-se sem fazer barulho.
—Vou levar o nosso revólver. Quero voltar a Dusty Plain, e comprar algumas coisas para a rapariga. Estamos de acordo em que se ira embora hoje, mas nao quero que o faça com essa roupa.
—Maldito seja o dia em que te conheci, Carey. A minha mãe dizia que todos os homens acabavam tornando-se loucos logo que nos seus estúpidos narizes entrava o cheiro duma mulher. Em ti demorou bastante tempo. Que diabo queres procurar em Dusty Plain? Chumbo?
Milton fez um enérgico sinal para que o seu amigo baixasse a voz.
—Tenho de fazer ali duas coisas: comprar roupas para a rapariga e um revolver novo. Com este nao podemos defender-nos os dois.
—Nem o precisaremos, Milton, se atuarmos como atuariam os bisontes, que são mais espertos que nos: pondo terra de permeio. De que to servira o revolver, se tens de enfrentar-te com todos os pistoleiros de Brakam?
Luigi tinha voltado a excitar-se, e Milton temeu que acabasse por despertar a rapariga.
— Também tenho de fazer outra coisa, estúpido: indicar a tua noiva a direção que levamos. Acaso nao queres voltar a vê-la?
Compreendeu que aquele argumento era decisivo para Luigi. O siciliano começou a coçar o queixo e a mastigar o ar.
— Bem, então vou contigo — decidiu por fim. —Estás louco? A minha intenção é passar inadvertido, e penso que só eu poderei consegui-lo. Em troca, se vens comigo, haverá escândalo em Dusty Plain. por isso vou sozinho, e alem disso necessito que alguém fique cuidando da rapariga.
Luigi olhou o suave contorno de Alma debaixo da manta, e depois cravou os seus olhos no rosto de Milton Carey.
— De acordo, Milton. Sorte.
O jovem pôs-se em pé, e arreou o seu cavalo em silencio. Já nao era o poldro que, ferido numa pata, enviou Luttell pelos ares, no Novo México. Aquele jazia enterrado na Gruta de Oregon, numa sepultura simplesmente adorada, como a de um homem. Este era uma espécie de diabo negro, cujos olhos despediam chispas ao pressentir a galopada. Chamava-se «Satan», e o nome era adequado ao seu aspeto.
— Hoje teremos trabalho — disse-lhe Milton ao ouvido, acariciando-lhe o robusto pescoço.
Procurando não fazer o menor ruído, montou e empreendeu o seu caminho, a passo, sem voltar a cabeça. Tinha colocado o revolver numa pequena funda da sela, e revistou-o empunhando-o com a mão esquerda. Luigi ficava desarmado.
«Toda a vida temos sido uns loucos, uns imprudentes», pensou Milton, sentindo que algo novo nascia dentro dele. Algo que, desde logo, nao era agradável nem pacifico. Voltou-se e viu ao longe, imóvel, Luigi Starza. A rapariga tão-pouco se tinha movido.
Roçou com as esporas o cavalo, e este, que tinha estado mordendo o freio continuamente, empreendeu o galope. Passado o meio-dia, depois duma furiosa corrida, chegaram a Dusty Plain.
O sol, no seu apogeu, enviava sobre a cidade os seus espessos raios de luz. O pó, sobre as casas de madeira, era dourado e macio. Carey entrou a trote pela rua principal, sem olhar para os lados. No único armeiro de Dusty Plain teve uma surpresa: o dono era o velho desdentado que duas noites antes lhe dera os seus revolveres.
—Celebro vê-lo por aqui, «Gatilho» —disse, rindo sem cerimónia. —Nao pense que os homens como você abundam nesta parte do Estado. Ao cabo duma temporada, ficam cansados, e vão dormir debaixo da terra. Mas creia-me que se lho digo é porque me alegra ver que você intentara evitá-lo.
— Que venha comprar um par de revolveres nao significa nada — disse Carey. — Agrada-me atirar ao alvo aos domingos de tarde. Vamos, mostre-me esse. O que tem nas suas costas.
O velho voltou-se para tirar do seu gaucho um revolver negro de cano largo, tao bom como o que sonharia um gun-man depois duma borracheira. Milton mirou-o.
— Agrada-me — disse. — Tem o seu par?
—Nao lhe aconselho que leve dois iguais, «Gatilho». Este é para grandes distâncias. Tem balas pesadas, e pode substituir uma espingarda nalguns casos. Para corpo a corpo, leve este outro. É igualmente preciso e pesa menos.
— Nao me agrada atirar com brinquedos. Tenho certa debilidade pelas balas pesadas, que fazem sofrer pouco. Dê-me o par deste e um cinturão.
O velho serviu rapidamente Milton Carey, sem abandonar o seu riso. Os seus olhos brilhavam de gozo.
—Foi um formoso espetáculo o da outra noite — comentou em voz baixa. —Um belo e instrutivo espetáculo.
—Ouvem-se muitas coisas estranhas em Dusty Plain — respondeu Milton, sem olhá-lo. — Acabara dizendo-me que este é um bom sítio para passar uma lua de mel e para a educação da infância. Quanto vale esta artilharia?
— Para si, nada.
Milton olhou-o nos olhos.
—Porquê?
—Wilburn Brakam matou o meu irmão há três anos. E eu sou um cobarde, «Gatilho». Por isso respondo-lhe: para si, nada.
Milton, com um meio sorriso especial, assegurou os seus revolveres nas fundas, e saiu da loja sem voltar as costas.
A sua segunda visita foi ao saloon onde na noite da luta entrara juntamente com Starza.
Milton Carey nao estava acostumado ao que se produziu quando empurrou as portas e deixou que a sua figura se recortasse claramente no umbral. O movimento de surpresa, de admiração dos assistentes, foi uma experiência nova para ele.
Com passos lentos, intentando nao perder de vista ninguém, encaminhou-se para o balcão.
— Rum — pediu, voltando-se de cara para a sala.
Aparentemente, depois da sua entrada, ninguém fazia caso dele já. A dúzia e meia de clientes continuava bebendo, falando e divertindo-se. Mas havia um ambiente hostil e estranho na sala. Milton cheirou-o.
Próximo dele, no balcão, só havia um homem, um tipo de uns quarenta anos, bem vestido, de negro, com expressão serena e nobre.
Enquanto bebia, Milton observou os grupos um por um. Nao soube ver nada de estranho nem perigoso em nenhuma personagem determinada. Entretanto estava abstraindo esta observação, sentiu que lhe puxavam suavemente pela manga.
Era Gina, a noiva de Luigi Starza. Tinha-se aproximado dele em silencio, e olhava-o suplicante com os seus olhos negros. Não tão negros nem tão formosos como os de Alma, pensou Carey.
—Onde esta Luigi? — perguntou, em voz baixa, a bailarina.
—Nao fales demasiado comigo, Gina. Luigi está a salvo no deserto. Amanhã partiremos para Battesville, em Oregon. Recorda este nome! Battesville, em Oregon. Ali nos encontraras, se nos seguires daqui a dois Bias. E agora, beija-me. Intenta abraçar-me!
—Mas...
— Beija-me, Gina! Intenta abraçar-me como se quisesses algo de mim!
Milton tinha falado em voz baixa, e sem olhar para a mulher. Esta compreendeu, e com um movimento desenvolto, intentou beijar Milton, que se afastou violentamente com um sinal de desprezo. Na sala houve uma risada. Foi então quando Milton compreendeu que todos aqueles tipos estavam atentos e que ouviam sem olhá-lo.
—Parece que só to agradam os pistoleiros, Gina — disse um deles, olhando insolentemente a rapariga — Porque não fazes isso comigo?
Gina cuspiu no chão e afastou-se para o fundo do saloon. O estratagema de Carey tinha tido sucesso. Ao que parece, todos pensavam que a bailarina se tinha aproximado dele atraída simplesmente pela sua presença masculina.
Aquele pequeno incidente tinha aquecido o ar. O rancheiro vestido de negro teve agora a suficiente confiança para dar um passo para Milton.
—Sou o dono do «Carver Ranch», amigo. Aqui tem a minha mão.
Milton Carey apertou-a, atraído pela expressão franca do rancheiro. Ao fazê-lo fixou-se num dos tipos, um vaqueiro duns vinte e oito anos, que o olhava de soslaio fingindo ocupar-se somente do seu copo de genebra.
— Chamo-me Milton — disse o jovem, abandonando a vigilância do suspeito. —Sou pesquisador de ouro.
O rancheiro sorriu.
—Há ocupações mais proveitosas que a de procurar ouro na Califórnia, amigo, sobretudo quando o ouro não se encontra. Porque não me faz uma visita no «Carver»? Agora estou sem capataz, e necessito dum homem. Que seja um homem, um verdadeiro homem.
— Se o que quer dizer é que necessita dum pistoleiro, eu não o sou, Carver.
—Não quis dizer isso. Não só me fixo nas mãos dos homens com quem lido, mas também nos olhos. E os seus são claros e límpidos, Milton. Sem desprezar as suas mãos, claro.
Bebeu um gole do copo de rum que tinha diante dele, sem afastar o seu olhar do rosto do seu interlocutor. Juntou, em voz baixa:
— Como você, só vi atirar a um homem, há muitos anos no Texas. Era una tipo tranquilo e que sempre parecia confiar no último segundo. Chamava-se Rody Carey.
Milton sentiu que algo que havia estado separado dele durante muitos anos, voltava a encher-lhe o peito.
— Chamo-me Milton Carey — declarou.
O outro iniciou um sinal de surpresa, mas não teve tempo de concluí-lo. Com a rapidez dum raio, Milton atirou-se sobre ele e rodaram os dois, em confuso monte, sobre o chão de madeira. O som da sua queda confundiu-se com o de uma grande prateleira de cristal ao ser partida por uma bala.
Mesmo no chão, Milton fez fogo com a esquerda, extraindo um dos revólveres negros. O tipo em que momentos antes se fixara, e cujo revólver fumegava ainda na sua mão direita, não recebeu o impacto, mas teve de atirar-se ao chão.
A maior parte dos clientes tinha adotado também esta prudente posição no momento em que o jovem se atirara sobre Carver. Os dois revólveres voltaram a fazer fogo quase simultaneamente. O chapéu do atacante voou da sua cabeça. E então, Milton falou. Falou antes de enviar ou receber a bala decisiva, coisa que não teria feito ninguém. A sua voz era tranquila e suave, mas tinha em cada inflexão urna dureza metálica.
— Retira-te agora, pistoleiro. Retira-te agora, filho remeloso dos porcos de Brakam. Todos estes homens são testemunhas de que não te matarei. Vim a Dusty Plain com intenções pacíficas, e não quero que um passarão como tu me estrague a tarde.
Falava com a cara no chão, apoiado no cotovelo esquerdo e com o braço direito levantado. A mão terminava no revólver negro. Nem uma centésima de polegada se movia o cano. Não vacilava a culatra, sinistramente agarrada pelos seus dedos.
O pistoleiro estava só a uns quinze passos dele, também na mesma pose. Mas o seu revólver não estava firme, e as suas pupilas tinham-se tornado vermelhas.
Era certo que disparariam os dois ao mesmo tempo, e que os dois se alcançariam. Mas assim como Carey podia matar, era de esperar que o seu inimigo não conseguisse colocar a bala num ponto vital, se vacilava somente umas décimas de segundo.
A proposta de Milton, em semelhantes circunstâncias, era mais que razoável. Todos adivinharam, sem embargo, que tinha falado para salvar a tranquilidade da sua consciência, ainda que não desejasse que o outro a aceitasse. Adivinharam também que o pistoleiro não a aceitaria. Os olhos tornaram-se pequenos, brilharam na espera do instante fatal em que as duas balas partiriam em busca das duas vítimas. Até que de repente ocorreu algo. Foi algo tão rápido e alucinante, que os dois protagonistas do drama apenas o advertiram.
Um dos bebedores, um homem que tinha estado contemplando a cena, solitário num ângulo da sala, decidiu intervir para equilibrar a balança, para o lado do pistoleiro de Brakam. O seu revólver saltou do coldre como uma exclamação, e fez fogo. Mas a bala perdeu-se no chão de madeira, porque no momento de surgir, o dono do revólver que tinha disparado já estava morto.
Carver, que conhecia perfeitamente todos os pistoleiros de Wilfurn Brakam, não o tinha perdido de vista. Ao vê-lo levantar-se, ele, que já estava de pé e com a mão direita à altura do coldre, aproveitou o segundo de vantagem.
A bala foi cravar-se no tórax do assassino, meia polegada abaixo do coração. Aquele disparo decidiu também a sorte do primeiro pistoleiro. O ligeiríssimo sobressalto que teve ao sentir sobre a sua cabeça a inesperada trajetória da bala, fez-lhe levantar o revólver. E ainda viu como o dedo de Carey se cerrava sobre o gatilho e teve tempo de responder, mas o seu projétil foi ligeiramente alto. Não obstante, morreu sem conhecer a dor do que sabe que falhou a sua última bala. Quando esta foi estatelar-se na borda do balcão, a de Carey tinha atravessado o frontal, penetrando até ao fundo do seu crânio.
Um longo silêncio caiu sobre a loja, e um penetrante cheiro a pólvora espairecia sobre os dois mortos. Com as feições rígidas, os olhos inexpressivos, Carey enfundou o seu revólver.
—Tem de sair daqui, Milton —disse-lhe Carver, aproximando-se dele. — Saia daqui, e não se lhe ocorra voltar a pôr os pés nesta maldita povoação. Brakam é praticamente o seu dono, e ao terceiro encontro não sairá com vida.
Carey olhou-o, sem lhe responder. De improviso, dando meia volta, dirigiu-se com passo vivo para a porta do local. Um murro embateu-lhe no queixo fazendo-o tremer.
As portas do saloon tinham-se aberto quando ele se dispunha a sair. O homem que entrava quase que chocou com ele. Era alto, forte, e com uma expressão cínica no rosto, apesar de ser bastante belo. Devia ter uns trinta e três anos, e estava no apogeu da sua saúde e da sua força. Ele foi o primeiro a reagir, ao tropeçar com Carey, e como não estava disposto a que ninguém pusesse os pés onde ele pensava colocá-los, o seu punho direito saltou como uma catarata para o queixo do atrevido.
Carey, aturdido pela surpresa e pela dor, não o reconheceu. Não pôde sequer reagir, porque quando ia a fazê-lo, a bota do recém-chegado cravou-se-lhe no estômago. Deu um passo para trás, enquanto se encolhia. Adivinhou que agora viria um gancho definitivo ao seu queixo, senão algo pior, e confirmou esta convicção com a caminhada triunfal do seu inimigo.
Por isso, sem variar a posição em que o tinha deixado o pontapé do intruso, lançou-se como uma fera sobre o vulto que tinha diante, com os punhos fechados à altura da cara.
O gancho que esperava, proporcionado com uma força e uma precisão admiráveis, perdeu-se contra estes. E o choque de Milton contra o seu inimigo, um «laço» ilegítimo de boxe para desequilibrá-lo e ganhar tempo, logrou bom resultado. O intruso vacilou uns instantes, e quando quis reagir, Milton já estava erguido em frente dele e com os braços a postos. O seu punho esquerdo saiu disparado, e num movimento de gancho lateral, lançou-se para diante, selvaticamente, arrancando a sobrancelha direita do recém-chegado.
Este, com um grito de dor, quis responder, e recebeu em pleno nariz um terrível impacto do seu inimigo, que o deixou sem vista. Outro gancho da esquerda atrás da orelha, fez-lhe sentir um zumbido dentro do crânio. A direita atuou fazendo-lhe saltar a metade da sobrancelha que lhe tinha ficado. Um movimento de «um-dois», com ambos os punhos, endereçou-lhe e pô-lo a ponto da série definitiva. Esta veio em seguida, contendo o movimento das mãos do outro, que já se dirigiam aos revólveres. O punho esquerdo esborrachou-lhe os lábios contra os dentes, partindo-os. O direito, golpeando a prazer, pois o homem tinha os olhos fechados e chorosos, cobertos por uma capa de sangue. golpeou na testa, comprimindo-a num choque que podia ser mortal. Um novo «um-dois» ao estômago encolheu a vítima, e por fim, a bota direita de Carey estalou brutalmente contra o seu queixo, partindo-lhe o maxilar e enviando o agressor para fora do local, como um despojo. Passando sobre ele sem dirigir-lhe uma olhadela, pois não queria permanecer por mais tempo naquele sector da cidade, Milton Carey saiu e desatou o «Satan». Carver seguiu-o, branco como um morto.
— Ouça, Milton —disse. —`Tão quero complicar mais as coisas, amigo Carver. Se você me deseja aconselhar a ir embora desta cidade, pode economizar o seu discurso, porque vou fazer isso mesmo.
— Não. Não se trata precisamente disso. É que...
Interrompeu-se, porque naquele instante saíram três homens do alpendre e levando cuidadosamente o derrotado que sangrava por todos os lados e que ainda não tinha recobrado os sentidos. Atrás deles, um tipo ruivo, com nariz de lebre, saiu correndo em direção ao saloon fronteiro. Era denunciante oficial de Dusty Plain, se bem que Milton ainda o não soubesse. Carver desatou também o seu cavalo, um formoso albino de olhos chamejantes.
—Milton, detenha esse tipo com duas balas no chão. Refiro-me ao ruivo. A esse que corre como uma lebre. Vai avisar os pistoleiros.
— Que outros pistoleiros? A quem diabo se refere?
— Maldito seja! Não percamos mais tempo!
Desenfundou o revólver e fez fogo para os pés do ruivo. Mas este achava-se já demasiado próximo do seu objetivo, e ainda que a bala levantasse junto das suas esporas uma nuvem de pó, conseguiu dum salto introduzir-se no local. O informe que ia dar valer-lhe-ia talvez trezentos dólares. Milton e Carver estavam já montados. Foi o rancheiro o primeiro a empreender o galope.
— Pronto! Siga-me! Acompanhá-lo-ei até à saída da povoação, e depois... que Deus o ajude!
Milton compreendeu que se falava num novo perigo, e ainda que não atinasse com a realidade deste, lançou «Satan» a galope, sem fazer novas perguntas. Quando dobraram a esquina imediata, uma saraivada de chumbo voou atrás deles. Milton teve tempo de ver seis ou sete homens que saíam a toda a pressa do saloon onde entrara o denunciante, e que montavam nos seus cavalos enquanto faziam fogo. Carey galopava como um furacão ao lado do rancheiro.
— Quem são esses? Mais pistoleiros de Brakam?
—Essa é uma grande pergunta, amigo. Veio a Dusty Plain justamente quando ele lhe apeteceu dar uma volta pela povoação. E deu de caras com ele na mesma porta. O homem a quem acaba de bater era o próprio Wilburn Brakam!
Milton iniciou com as rédeas um movimento para dar uma volta com «Satan».
—Brakam? De modo que aquele tipo era Wilburn Brakam? Afaste-se depressa, Carver! Dentro de poucos minutos terei depositado no peito desse homem uma bela carga de chumbo.
Mas o rancheiro não respondeu a estas palavras. Com a mão esquerda, e ainda com riscos de perder o equilíbrio, agarrou «Satan» impedindo que este realizasse a manobra exigida pelo seu dono. Milton viu-o encabritar-se, irritado.
— O que é que pretende, Carver? Que fuja?
— Pretendo que não o matem inutilmente, louco! Enfrentar-se agora é como procurar ouro na cabeça dum cavalo! Nem sequer chegaria a vê-lo! Os seus pistoleiros lhe vazariam os olhos!
Milton, ainda dominado pela excitação, compreendeu que o rancheiro falava como homem razoável. Que não lograria voltar ao saloon encontrando no caminho oito pistoleiros dispostos a tudo. Por isso, quando Carver empreendeu de novo o galope, e «Satan» se pôs a seguir, ciumenta mente, o seu companheiro, não fez nada para evitá-lo.
Instantes mais tarde voltava a galopar emparelhados os dois. Os seus perseguidores não tinham tão bons cavalos, e estavam quase a meia milha de distância. Mas eram portadores de esplêndidas espingardas, e Milton adivinhou que quando chegassem à planície intentaria comprovar a sorte no tiro à distância.
— O homem com quem tropeçou era Wilburn Brakam — repetiu Carver. — Vem de vez em quando a Dusty Plain, e sempre o acompanha uma corte de assassinos. Mas deixa-os num saloon próximo ao que ele escolhe. Ê mais elegante, e até agora nunca lhe tinha ocorrido nada em Dusty Plain. Era como se visitasse a sua própria casa.
—Mas, porque me agrediu? Não teve tempo de me reconhecer. Eu apenas o distingui.
—Reconheceu-o? Já o tinha visto antes?
Milton respondeu com uma voz sibilante, arrastando depreciativamente os «s».
— Sim... No Novo México, mas faz já alguns anos. Eu era então uma criança, e ele começava a ser um homem. Fizemos uma boa amizade, mas continuo sem entender porque me bateu sem sequer me olhar.
Naquele momento assobiou sobre as suas cabeças a primeira bala de espingarda. Os dois adivinharam que era um tiro de ensaio, e que os seus perseguidores tinham poucas possibilidades de fazer pontaria, porque se encontravam ainda sobre o lombo dos seus cavalos.
— A Brakam não lhe agrada que ninguém se permita tropeçar com ele, como se fosse um qualquer. O que aconteceu hoje já sucedeu várias vezes em Dusty Plain, com diferença que o que apanha não se atreve a responder-lhe. Wilburn tropeçou consigo sem se importar quem fosse. E teve sorte que a luta se desenrolasse junto da porta. Ninguém pôde sair para avisar os seus pistoleiros.
Os cavalos galopavam com toda a sua coragem, e a distância que os separava dos seus perseguidores não diminuía. Talvez por isso os pistoleiros decidiram-se a ensaiar novamente o tiro, e várias balas levantaram nuvens de pó junto dos cascos dos cavalos.
— Atiram com espingarda, Carver. Vá-se embora depressa, se não quer encontrar-se com um dente de chumbo dentro da boca. Não tem nenhuma culpa do que sucedeu.
Carver, agarrado ao pescoço do seu cavalo, voltou ligeiramente a cabeça para olhá-lo.
— Desviar-nos-emos ao chegar ao desfiladeiro. Eu continuarei por ele. Você galopará pela orla do riacho, e meta o cavalo na água quando o tenham perdido de vista. Assim não deixará marcas da sua passagem.
— De acordo, Carver. Mas, e se o apanham? Não lhe acontecerá nada por me ter ajudado na fuga?
— Não me apanham. Mas ainda que o façam, não creio que se atrevam a matar-me. Sou o rancheiro mais importante da Comarca, depois de Brakam, e sabem bem que alguém cobraria a minha morte.
Chegaram ao ponto indicado. Era um estreito desfiladeiro entre duas montanhas de rochas. A esquerda de uma dessas, a meia milha de distância, passava um riacho nem muito amplo nem profundo, de leito pedregoso.
Carver e Milton Carey despediram-se com um sinal, e empreenderam o galope em direções diferentes. Milton, ao ganhar o riacho, viu que os seus inimigos se tinham aproximado perigosamente, ao perder ele uns instantes com o rodeio, e que não se dividiam, preferindo persegui-lo em bloco. Duas balas de espingarda assobiaram a poucas polegadas acima da sua cabeça. «A minha única salvação está na chegada da noite», pensou Milton, enquanto exigia de «Satan» o máximo esforço, fustigando-o com as suas esporas.
Mas o sol começava a declinar naquele momento e demoraria ainda a deitar-se várias horas. Antes, muito antes «Satan» teria deixado a pele pelo caminho. Continuou galopando. Talvez encontrasse na sua rota alguma circunstância favorável; talvez lhe ocorresse alguma ideia.
O terreno era uniforme, e Carey galopava pela orla do rio, ainda que já sem nenhuma esperança de desorientar os seus perseguidores. Duas vezes respondeu ao fogo que lhe faziam, e duas vezes queimou a sua pólvora inutilmente porque a distância era excessiva para tiro de revólver, e nem sequer os obrigou a dispersarem--se.
Apesar da galopada, do calor e do esforço realizado, umas gotas de suor frio começaram a deslizar pela testa de Carey. A montanha cujo perfil ia seguindo, terminou, e uma ilimitada extensão de terra amarela, sem nenhum obstáculo, apareceu diante dos seus olhos. Ali começava o verdadeiro deserto. E no seu interior, a poucas milhas de distância, acampavam Buigi e Alma. «Uma zona ideal para as perseguições inacabáveis», pensou Carey.
E não teve demasiadas ilusões sobre qual iria ser o seu destino. Com a mão direita apontou a um dos ginetes, e com a esquerda apontou aproximadamente a zona em que se moviam os outros.
Quando apertou o gatilho, manteve a vista sobre o revólver justamente o tempo necessário para ver cair o seu inimigo. Instantaneamente, moveu a cabeça, pondo os olhos no ponto de mira da segunda arma.
Como já a tinha apontada, só teve de mover umas décimas de polegada o cano e fazer fogo para ver cair, redondamente, outro inimigo. Os cavalos livres relincharam, encabritando-se no meio do grupo.
Então, os perseguidores fizeram algo que Milton já esperava: dividiram-se em duas alas para rodarem o pequeno monte. Mas os seus cavalos já não podiam atuar com a suficiente rapidez, e Carey não estava desprevenido. Os dois ginetes que formavam os extremos de cada ala, caíram depois de dois novos disparos.
Os quatro restantes foram bastante inteligentes para compreender que, desde as suas selas, nunca fariam bom alvo contra um inimigo escondido, e que intentando rodear o monte, só conseguiam dar voltas a uma nora trágica, até que uma bala os alcançasse. Por isso voltaram costas, e afastaram-se para concentrar-se a uma milha de distância. Milton não disparou mais. Compreendeu que aquele era o seu momento. De um salto, montou de novo «Satan» e obrigou-o a reempreender o galope, correndo em direção contrária à dos seus inimigos. Estes não podiam vê-lo porque o ocultava o monte, e por estarem naquele momento ocupados em pôr uma prudente quantidade de terra de permeio, antes de decidir um novo plano de ataque. Desse modo, quando voltassem costas, já estaria demasiado longe para ser visível. E eles pensariam que continuava escondido nas rochas. O cavalo obedeceu não obstante a pressão das esporas, e poucos minutos bastaram para se afastar com o seu dono dali.
Carey olhou o sol, que estava muito baixo sobre o horizonte. Todo o deserto era já de uma cor ocre escura que mal divisava as silhuetas.
«Desta vez Brakam não terá motivo para convidá-los a beber — comentou em voz alta, acariciando o pescoço da sua cavalgadura. Quatro horas mais tarde, e já de noite, depois de se ter desviado da rota seguida de manhã, alcançou as imediações do minúsculo acampamento. Desde longe divisou a fogueira que tinha acendido Luigi. Alma e o calabrês saíram ao seu encontro com os olhos cheios de expectativa.
— Apaga essa fogueira, Luigi — foi a primeira coisa que disse Milton.
— Maldito seja o momento em que me ocorreu deixar-te ir a Dusty Plain! Que fizeste? Incendiaste o escritório do sheriff? Enforcaste algum juiz? Algo mais deves ter feito para mandares apagar a fogueira, Milton!
—Tive de matar um homem, e depois enfrentar-me com Brakam... utilizando os punhos somente. Vários dos seus pistoleiros perseguiram-me até algumas milhas daqui. Consegui desorientá-los, mas se desse uma batida pelo deserto, esta fogueira seria um bom ponto de referência. Temos de apagá-la em seguida.
Luigi não esperou que lhe repetissem a indicação e começou a patear furiosamente os pequenos ramos secos que tinha empregado como combustível. A fogueira, depois de despedir umas densas fumaradas, apagou-se rapidamente.
Alma tinha contemplado a cena com os olhos baixos, sem dizer palavra. E tão reflexiva era a sua atitude, que Milton ficou intranquilo. Acariciando suavemente o seu queixo, levantou-lhe a cabeça.
— Alma! Estás chorando!
A rapariga afastou-se dele com um brusco movimento, dando-lhe as costas. Naquela atitude meio rebelde estava sobremaneira formosa. Milton avançou um passo.
—Que se passa, Alma? Que sucedeu?
A rapariga voltou-se para ele. Fazia esforços para conter o pranto, mas as lágrimas resvalaram pelas suas faces mansamente.
— Fizeste mal, Milton! Não se pode jogar com Brakam e com os seus homens! Rodeará o deserto! Fará com que morramos de sede e de fome! Não poderemos sair daqui!
Carey segurou-a pelos ombros. Fê-lo com demasiada força e a rapariga tremeu entre os seus braços.
— Mas, que dizes, Alma? Estás louca? Rodear um deserto como este?
— Não fazem falta muitos homens para impedir que três desesperados saiam daqui. Basta situar alguns pistoleiros nas duas únicas povoações que há nos extremos desta maldita comarca. Não existe água em nenhum outro ponto! Cedo ou tarde, teremos de nos dirigir a elas! E então só terá de apertar o gatilho quantas vezes queira! «Apertar o gatilho quantas vezes queira...»
Milton fechou os olhos. Wilburn fez aquilo com seu pai. Apertou o gatilho quantas vezes quis, até que o dedo se estremeceu de prazer.
— Não o conseguirá, Alma. Desta vez não o conseguirá.
— Tu sabes que estamos perdidos, Milton. Porá em pé de guerra toda a sua gente. E se esperas que venha atacar-te até aqui, prepara-te para comer as tuas botas. Aguardará que morramos de sede e de fome. Só há duas povoações aqui e tu bem o sabes. Se pretenderes ir mais longe, chegar a Arizona por exemplo, terias de fazer numa delas provisão de água. Doutro modo, no caminho deixaríamos comida para os abutres.
Falava com exaltação, cravando no rosto imperturbável de Carey o punhal brilhante dos seus olhos negros. Tomou alento, e aproximando-se mais dele, juntou:
— Para Brakam não é nova esta classe de guerra. Tem paciência, sabe esperar o seu momento e atuar com decisão então. Há somente três anos, um homem chamado Yucas Floming zangou-se com ele. Tinha umas mãos ágeis, Milton, e para ele matar um homem era tão simples como enlaçar uma rês para um vaqueiro. Wilburn conseguiu encurralá-lo no deserto. Esperou que agonizasse de sede, e que tivesse de vir à sua guarida mendigando perdão. Eu vi como cavalgava Floming, cabeça baixa, Milton, e como ensaiava com ele o tiro à distância. É esse o futuro que Brakam prepara para ti. Não esqueças que para o sheriff de Dusty Plain tu és um assassino, como Floming, e que não fará nada para impedir que Brakam leve a sua vingança até aos últimos extremos. Carey ainda mantinha as mãos fechadas sobre os ombros da rapariga.
Olhou para longe, e pareceu-lhe cheirar algo no deserto. Saberia sair dali. Tinha vagueado durante quinze anos por todos os caminhos do Sul, e acharia um estratagema para escapar à armadilha de Wilburn Brakam.
— Escaparemos — disse com convicção. — Escaparemos, e então eu procurarei o meu momento para enfrentar-me com esse coiote. Alma fez um enérgico sinal negativo com a cabeça. As lágrimas afluíram aos seus olhos, e agora tinha a boca crispada numa careta de dor.
— Equivocas-te, Milton. Não escaparemos. Não me importa por mim, porque eu já deixei de existir quando Wilburn me pôs os olhos em cima. Mas tu salvaste-me, e ele não te perdoará. Brakam quer-me consigo. Entendes? Quer-me consigo! A teu lado sou a tua própria sentença de morte. Procurar-me-á onde quer que seja, e fará tudo para me encontrar. Ontem à noite — a sua voz vacilou, cortada —, ontem à noite pensei que escaparíamos porque não lhes tínhamos deixado tempo para atuar. Mas agora já é tarde. Só eu poderia, poderia...
A careta dos seus lábios fez-se numa expressão desesperada e, libertando-se dos braços de Carey, voltou-lhe as costas para que não a visse. Com as mãos cobrindo o rosto, pôs-se a chorar como uma criança. Um homem não pode ser sério sempre. Não pode dar o seu exato significado a todas as palavras que lhe dirigem, sobretudo quando está preocupado com problemas onde se ventila a sua própria vida. E Carey deixou que lhe passassem inadvertidos aqueles significativos «Eu poderia... Eu poderia», que Alma pronunciou antes de se afastar dele para começar a chorar. Estava derreado pela grande galopada e as emoções do dia, e as suas pernas negavam-se já a sustê-lo.
Depois dum frugal jantar que começou já com os olhos fechados, e depois de repartir com os seus companheiros o último gole do cantil, deixou-se cair de costas no chão e ficou dormindo. Alma cobriu-o, com uma manta, sem que ele se desse conta disso.
— Tu vigiaste durante todo o dia, Luigi — disse ao calabrês — e apenas dormiste ontem à noite. Descansa um pouco agora. Eu vigiarei.
Movendo os seus bigodes o interpelado iniciou um sinal de protesto.
— Eu ainda sou um cavalheiro, que diabos! Na minha terra...
—Posso vigiar tão bem como qualquer de vocês os dois. Desde criança tenho-me visto obrigada a vigiar pelo deserto e conheço os seus ruídos. Além disso, os índios têm os olhos aguçados e o ouvido fino, Luigi... O calabrês também estava sendo vencido pelo sono e pelo nervosismo dos últimos acontecimentos, que se tinham já transformado numa verdadeira guerra, e terminou cedendo.
— Bem, Alma, vigia, mas um par de horas somente. Depois me chamarás, e estarei desperto até à alvorada. Convém que entre nós os dois vigiemos e deixemos descansar Milton.
Afastando-se uns passos, caiu no chão, e não tardou em ouvir-se os seus ronquidos.
Então Alma sentou-se, cruzando ambas as pernas, e passeou os seus olhos pela imensa e desolada extensão do deserto. A lua começava a elevar-se sobre o horizonte e iluminava os contornos da imensa planície. Nenhum som, fora o da respiração dos dois homens, chegava até ela. Nem sequer as aves de rapina do deserto voavam sobre o pequeno grupo, cheirando a possível presa. Então, Alma fechou os olhos. Sim, ela podia conseguir que tudo mudasse. Poderia conseguir, talvez, que Brakam acedesse a perdoar aos dois homens e levantasse o cerco.
Com os olhos fechados reviveu os últimos dias vividos no rancho, quando a perseguição que aquele homem lhe fazia era insuportável. Nela tinha-se fixado com mais insistência que em nenhuma outra mulher... e sabia que estava disposto a grandes sacrifícios para a conseguir. Talvez que a vida daqueles dois homens não fosse um preço demasiado elevado para ele...
Alma sentiu que as lágrimas voltavam aos seus olhos, enquanto se levantava silenciosamente. Aproximou-se de Milton, e contemplou-o. O jovem dormia nervoso, e tinha um rictus de inquietação nas suas feições. Perguntou-se como era possível que se tivesse enamorado tão depressa dele. Talvez porque era o homem mais arrogante que tinha visto na sua vida. Mas também porque tinha sido o mais valente e o mais generoso com ela. Alma não estava acostumada a receber aquelas coisas boas dos homens.
Levantou a cabeça, percorreu com os seus olhos o deserto inacabável que não lhe enviava nenhum som, e voltou a pousá-los no rosto de Milton. A visão das suas feições serenas deu-lhe força para ficar o pensamento que já se tinha insinuado no seu cérebro. E silenciosamente, caminhando com a agilidade e as precauções de um gato, afastou-se do grupo-
Os cavalos descansavam a poucas jardas, e ainda que não estivessem arreados, para Alma isto não era um obstáculo, pois estava acostumada a montar em pelo. De um salto, montou-se sobre «Satan», e fê-lo empreender a marcha com dois suaves golpes no pescoço.
O animal estava cansado e não tinha comido nas últimas horas, mas conservaria a força suficiente para chegar até ao «Brakam Ranch». Não fez ruído ao arrancar. E pouco a pouco a figura de Alma, que tinha já os olhos secos e a boca crispada pela sua secreta dor, perdeu-se ao longe, insensível e silenciosamente...
— Atiram com espingarda, Carver. Vá-se embora depressa, se não quer encontrar-se com um dente de chumbo dentro da boca. Não tem nenhuma culpa do que sucedeu.
Carver, agarrado ao pescoço do seu cavalo, voltou ligeiramente a cabeça para olhá-lo.
— Desviar-nos-emos ao chegar ao desfiladeiro. Eu continuarei por ele. Você galopará pela orla do riacho, e meta o cavalo na água quando o tenham perdido de vista. Assim não deixará marcas da sua passagem.
— De acordo, Carver. Mas, e se o apanham? Não lhe acontecerá nada por me ter ajudado na fuga?
— Não me apanham. Mas ainda que o façam, não creio que se atrevam a matar-me. Sou o rancheiro mais importante da Comarca, depois de Brakam, e sabem bem que alguém cobraria a minha morte.
Chegaram ao ponto indicado. Era um estreito desfiladeiro entre duas montanhas de rochas. A esquerda de uma dessas, a meia milha de distância, passava um riacho nem muito amplo nem profundo, de leito pedregoso.
Carver e Milton Carey despediram-se com um sinal, e empreenderam o galope em direções diferentes. Milton, ao ganhar o riacho, viu que os seus inimigos se tinham aproximado perigosamente, ao perder ele uns instantes com o rodeio, e que não se dividiam, preferindo persegui-lo em bloco. Duas balas de espingarda assobiaram a poucas polegadas acima da sua cabeça. «A minha única salvação está na chegada da noite», pensou Milton, enquanto exigia de «Satan» o máximo esforço, fustigando-o com as suas esporas.
Mas o sol começava a declinar naquele momento e demoraria ainda a deitar-se várias horas. Antes, muito antes «Satan» teria deixado a pele pelo caminho. Continuou galopando. Talvez encontrasse na sua rota alguma circunstância favorável; talvez lhe ocorresse alguma ideia.
O terreno era uniforme, e Carey galopava pela orla do rio, ainda que já sem nenhuma esperança de desorientar os seus perseguidores. Duas vezes respondeu ao fogo que lhe faziam, e duas vezes queimou a sua pólvora inutilmente porque a distância era excessiva para tiro de revólver, e nem sequer os obrigou a dispersarem--se.
Apesar da galopada, do calor e do esforço realizado, umas gotas de suor frio começaram a deslizar pela testa de Carey. A montanha cujo perfil ia seguindo, terminou, e uma ilimitada extensão de terra amarela, sem nenhum obstáculo, apareceu diante dos seus olhos. Ali começava o verdadeiro deserto. E no seu interior, a poucas milhas de distância, acampavam Buigi e Alma. «Uma zona ideal para as perseguições inacabáveis», pensou Carey.
E não teve demasiadas ilusões sobre qual iria ser o seu destino. Com a mão direita apontou a um dos ginetes, e com a esquerda apontou aproximadamente a zona em que se moviam os outros.
Quando apertou o gatilho, manteve a vista sobre o revólver justamente o tempo necessário para ver cair o seu inimigo. Instantaneamente, moveu a cabeça, pondo os olhos no ponto de mira da segunda arma.
Como já a tinha apontada, só teve de mover umas décimas de polegada o cano e fazer fogo para ver cair, redondamente, outro inimigo. Os cavalos livres relincharam, encabritando-se no meio do grupo.
Então, os perseguidores fizeram algo que Milton já esperava: dividiram-se em duas alas para rodarem o pequeno monte. Mas os seus cavalos já não podiam atuar com a suficiente rapidez, e Carey não estava desprevenido. Os dois ginetes que formavam os extremos de cada ala, caíram depois de dois novos disparos.
Os quatro restantes foram bastante inteligentes para compreender que, desde as suas selas, nunca fariam bom alvo contra um inimigo escondido, e que intentando rodear o monte, só conseguiam dar voltas a uma nora trágica, até que uma bala os alcançasse. Por isso voltaram costas, e afastaram-se para concentrar-se a uma milha de distância. Milton não disparou mais. Compreendeu que aquele era o seu momento. De um salto, montou de novo «Satan» e obrigou-o a reempreender o galope, correndo em direção contrária à dos seus inimigos. Estes não podiam vê-lo porque o ocultava o monte, e por estarem naquele momento ocupados em pôr uma prudente quantidade de terra de permeio, antes de decidir um novo plano de ataque. Desse modo, quando voltassem costas, já estaria demasiado longe para ser visível. E eles pensariam que continuava escondido nas rochas. O cavalo obedeceu não obstante a pressão das esporas, e poucos minutos bastaram para se afastar com o seu dono dali.
Carey olhou o sol, que estava muito baixo sobre o horizonte. Todo o deserto era já de uma cor ocre escura que mal divisava as silhuetas.
«Desta vez Brakam não terá motivo para convidá-los a beber — comentou em voz alta, acariciando o pescoço da sua cavalgadura. Quatro horas mais tarde, e já de noite, depois de se ter desviado da rota seguida de manhã, alcançou as imediações do minúsculo acampamento. Desde longe divisou a fogueira que tinha acendido Luigi. Alma e o calabrês saíram ao seu encontro com os olhos cheios de expectativa.
— Apaga essa fogueira, Luigi — foi a primeira coisa que disse Milton.
— Maldito seja o momento em que me ocorreu deixar-te ir a Dusty Plain! Que fizeste? Incendiaste o escritório do sheriff? Enforcaste algum juiz? Algo mais deves ter feito para mandares apagar a fogueira, Milton!
—Tive de matar um homem, e depois enfrentar-me com Brakam... utilizando os punhos somente. Vários dos seus pistoleiros perseguiram-me até algumas milhas daqui. Consegui desorientá-los, mas se desse uma batida pelo deserto, esta fogueira seria um bom ponto de referência. Temos de apagá-la em seguida.
Luigi não esperou que lhe repetissem a indicação e começou a patear furiosamente os pequenos ramos secos que tinha empregado como combustível. A fogueira, depois de despedir umas densas fumaradas, apagou-se rapidamente.
Alma tinha contemplado a cena com os olhos baixos, sem dizer palavra. E tão reflexiva era a sua atitude, que Milton ficou intranquilo. Acariciando suavemente o seu queixo, levantou-lhe a cabeça.
— Alma! Estás chorando!
A rapariga afastou-se dele com um brusco movimento, dando-lhe as costas. Naquela atitude meio rebelde estava sobremaneira formosa. Milton avançou um passo.
—Que se passa, Alma? Que sucedeu?
A rapariga voltou-se para ele. Fazia esforços para conter o pranto, mas as lágrimas resvalaram pelas suas faces mansamente.
— Fizeste mal, Milton! Não se pode jogar com Brakam e com os seus homens! Rodeará o deserto! Fará com que morramos de sede e de fome! Não poderemos sair daqui!
Carey segurou-a pelos ombros. Fê-lo com demasiada força e a rapariga tremeu entre os seus braços.
— Mas, que dizes, Alma? Estás louca? Rodear um deserto como este?
— Não fazem falta muitos homens para impedir que três desesperados saiam daqui. Basta situar alguns pistoleiros nas duas únicas povoações que há nos extremos desta maldita comarca. Não existe água em nenhum outro ponto! Cedo ou tarde, teremos de nos dirigir a elas! E então só terá de apertar o gatilho quantas vezes queira! «Apertar o gatilho quantas vezes queira...»
Milton fechou os olhos. Wilburn fez aquilo com seu pai. Apertou o gatilho quantas vezes quis, até que o dedo se estremeceu de prazer.
— Não o conseguirá, Alma. Desta vez não o conseguirá.
— Tu sabes que estamos perdidos, Milton. Porá em pé de guerra toda a sua gente. E se esperas que venha atacar-te até aqui, prepara-te para comer as tuas botas. Aguardará que morramos de sede e de fome. Só há duas povoações aqui e tu bem o sabes. Se pretenderes ir mais longe, chegar a Arizona por exemplo, terias de fazer numa delas provisão de água. Doutro modo, no caminho deixaríamos comida para os abutres.
Falava com exaltação, cravando no rosto imperturbável de Carey o punhal brilhante dos seus olhos negros. Tomou alento, e aproximando-se mais dele, juntou:
— Para Brakam não é nova esta classe de guerra. Tem paciência, sabe esperar o seu momento e atuar com decisão então. Há somente três anos, um homem chamado Yucas Floming zangou-se com ele. Tinha umas mãos ágeis, Milton, e para ele matar um homem era tão simples como enlaçar uma rês para um vaqueiro. Wilburn conseguiu encurralá-lo no deserto. Esperou que agonizasse de sede, e que tivesse de vir à sua guarida mendigando perdão. Eu vi como cavalgava Floming, cabeça baixa, Milton, e como ensaiava com ele o tiro à distância. É esse o futuro que Brakam prepara para ti. Não esqueças que para o sheriff de Dusty Plain tu és um assassino, como Floming, e que não fará nada para impedir que Brakam leve a sua vingança até aos últimos extremos. Carey ainda mantinha as mãos fechadas sobre os ombros da rapariga.
Olhou para longe, e pareceu-lhe cheirar algo no deserto. Saberia sair dali. Tinha vagueado durante quinze anos por todos os caminhos do Sul, e acharia um estratagema para escapar à armadilha de Wilburn Brakam.
— Escaparemos — disse com convicção. — Escaparemos, e então eu procurarei o meu momento para enfrentar-me com esse coiote. Alma fez um enérgico sinal negativo com a cabeça. As lágrimas afluíram aos seus olhos, e agora tinha a boca crispada numa careta de dor.
— Equivocas-te, Milton. Não escaparemos. Não me importa por mim, porque eu já deixei de existir quando Wilburn me pôs os olhos em cima. Mas tu salvaste-me, e ele não te perdoará. Brakam quer-me consigo. Entendes? Quer-me consigo! A teu lado sou a tua própria sentença de morte. Procurar-me-á onde quer que seja, e fará tudo para me encontrar. Ontem à noite — a sua voz vacilou, cortada —, ontem à noite pensei que escaparíamos porque não lhes tínhamos deixado tempo para atuar. Mas agora já é tarde. Só eu poderia, poderia...
A careta dos seus lábios fez-se numa expressão desesperada e, libertando-se dos braços de Carey, voltou-lhe as costas para que não a visse. Com as mãos cobrindo o rosto, pôs-se a chorar como uma criança. Um homem não pode ser sério sempre. Não pode dar o seu exato significado a todas as palavras que lhe dirigem, sobretudo quando está preocupado com problemas onde se ventila a sua própria vida. E Carey deixou que lhe passassem inadvertidos aqueles significativos «Eu poderia... Eu poderia», que Alma pronunciou antes de se afastar dele para começar a chorar. Estava derreado pela grande galopada e as emoções do dia, e as suas pernas negavam-se já a sustê-lo.
Depois dum frugal jantar que começou já com os olhos fechados, e depois de repartir com os seus companheiros o último gole do cantil, deixou-se cair de costas no chão e ficou dormindo. Alma cobriu-o, com uma manta, sem que ele se desse conta disso.
— Tu vigiaste durante todo o dia, Luigi — disse ao calabrês — e apenas dormiste ontem à noite. Descansa um pouco agora. Eu vigiarei.
Movendo os seus bigodes o interpelado iniciou um sinal de protesto.
— Eu ainda sou um cavalheiro, que diabos! Na minha terra...
—Posso vigiar tão bem como qualquer de vocês os dois. Desde criança tenho-me visto obrigada a vigiar pelo deserto e conheço os seus ruídos. Além disso, os índios têm os olhos aguçados e o ouvido fino, Luigi... O calabrês também estava sendo vencido pelo sono e pelo nervosismo dos últimos acontecimentos, que se tinham já transformado numa verdadeira guerra, e terminou cedendo.
— Bem, Alma, vigia, mas um par de horas somente. Depois me chamarás, e estarei desperto até à alvorada. Convém que entre nós os dois vigiemos e deixemos descansar Milton.
Afastando-se uns passos, caiu no chão, e não tardou em ouvir-se os seus ronquidos.
Então Alma sentou-se, cruzando ambas as pernas, e passeou os seus olhos pela imensa e desolada extensão do deserto. A lua começava a elevar-se sobre o horizonte e iluminava os contornos da imensa planície. Nenhum som, fora o da respiração dos dois homens, chegava até ela. Nem sequer as aves de rapina do deserto voavam sobre o pequeno grupo, cheirando a possível presa. Então, Alma fechou os olhos. Sim, ela podia conseguir que tudo mudasse. Poderia conseguir, talvez, que Brakam acedesse a perdoar aos dois homens e levantasse o cerco.
Com os olhos fechados reviveu os últimos dias vividos no rancho, quando a perseguição que aquele homem lhe fazia era insuportável. Nela tinha-se fixado com mais insistência que em nenhuma outra mulher... e sabia que estava disposto a grandes sacrifícios para a conseguir. Talvez que a vida daqueles dois homens não fosse um preço demasiado elevado para ele...
Alma sentiu que as lágrimas voltavam aos seus olhos, enquanto se levantava silenciosamente. Aproximou-se de Milton, e contemplou-o. O jovem dormia nervoso, e tinha um rictus de inquietação nas suas feições. Perguntou-se como era possível que se tivesse enamorado tão depressa dele. Talvez porque era o homem mais arrogante que tinha visto na sua vida. Mas também porque tinha sido o mais valente e o mais generoso com ela. Alma não estava acostumada a receber aquelas coisas boas dos homens.
Levantou a cabeça, percorreu com os seus olhos o deserto inacabável que não lhe enviava nenhum som, e voltou a pousá-los no rosto de Milton. A visão das suas feições serenas deu-lhe força para ficar o pensamento que já se tinha insinuado no seu cérebro. E silenciosamente, caminhando com a agilidade e as precauções de um gato, afastou-se do grupo-
Os cavalos descansavam a poucas jardas, e ainda que não estivessem arreados, para Alma isto não era um obstáculo, pois estava acostumada a montar em pelo. De um salto, montou-se sobre «Satan», e fê-lo empreender a marcha com dois suaves golpes no pescoço.
O animal estava cansado e não tinha comido nas últimas horas, mas conservaria a força suficiente para chegar até ao «Brakam Ranch». Não fez ruído ao arrancar. E pouco a pouco a figura de Alma, que tinha já os olhos secos e a boca crispada pela sua secreta dor, perdeu-se ao longe, insensível e silenciosamente...
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