terça-feira, 7 de agosto de 2018

CLF030.01 O homem do cavalo chamado «Ulisses»

«Réus de traição à União, serão fuzilados na manhã de dez de dezembro de 1863, os espiões da Confederação Albert Crooks, Ferguson Mason e Douglas Lyman, que confessaram o seu delito contra o Governo Federal dos Estados Unidos.

«Rio Cobre, dezembro de 1863. Estado de Kansas».


O grupo de curiosos reunidos em torno do panfleto recém colocado na tabuleta de avisos do posto militar de Rio Cobre, trocou entre si os mais diversos comentários. O território de Kansas pertencia à União. Talvez houvesse em Kansas um grande sector do povo e povoações que simpatizassem com a causa da Confederação, mas Rio Cobre era uma cidade intrinsecamente yanque (*) e por ela nunca desfilaram soldados a não ser os que envergavam fardas azuis.
Crooks, Mason e Lyman seriam fuzilados no pátio da prisão, dois dias depois da publicação daquele anúncio. Era o desfecho dum julgamento apaixonante. Um desfecho que tinha satisfeito todos... exceto os três sentenciados.
O juiz militar Arckibald Hodgins saiu do edifício fortificado da guarnição local quando o grupo de curiosos começava a dispersar-se lentamente, com expressões contrariadas na sua maioria e invariavelmente dirigidas para as paredes de troncos que formavam os bastões de Fort Cooper.
 
(•) Yanque é o nome vulgarmente dado à população do Norte dos E. U. A. Naquela data significava os adeptos da União Federal enquanto que os sulistas eram partidários da Confederação, durante a guerra civil que separou as populações do Norte e Sul dos E. U. A. (N. T.).
 
Por trás do juiz militar caminhava o comandante Wilkers, com o uniforme impecável e o cintilante sabre pendurado dum cinturão garboso. Ambos se detiveram à saída do fortim.
— Já reparou na expressão desses rostos, juiz? — perguntou Wilkers, examinando de soslaio o grupo de pessoas. — Não parecem muito satisfeitos. Há muita gente que não concorda que Kansas seja um estado da União.
— Isso não nos deve preocupar, comandante — sorriu tranquilamente o juiz. —É possível que esta sentença tenha desagradado aos cidadãos de Fort Cooper, mas isso não alterava os factos nem as conclusões. Crooks, Mason e Lyman eram culpados, portanto não poderia haver outra solução. O mais grave da questão não é a execução dos três espiões confederados, mas sim a existência de muitos mais que se escondem nessa população, passivamente hostil, mas que qualquer dia pode adotar hostilidades ativas. Tenha cuidado, comandante, porque eu não confiaria em nada nem em ninguém. E muito menos nos forasteiros que circulam em Rio Cobre...
— Na sua maioria são desertores do Sul—afirmou Wilkers, pensativo. — Não me agrada ser excessivamente duro com ninguém, a não ser que haja motivos, juiz Hodgins. Por vezes corre-se o risco de cometer uma injustiça.
— Mais vale ser uma vez injusto do que ser tolerante o brando mil vezes — replicou o magistrado militar com um acento ácido e inflexível. — ódio ao Sul, ódio a todo aquele que desobedece à lei, porque não podemos permitir a existência de ilegalidades.
— As ilegalidades não deixam de existir pelo facto de serem contra a lei, juiz — sorriu o comandante. — Eu pergunto: se o Sul vencesse, não seríamos todos julgados por traidores à Pátria, apesar do Governo legal ser o de Lincoln e não o de Jefferson Davies?
O juiz olhou friamente o comandante.
— Cuidado com o que diz, Wilkers, ou me convencerei que também é um traidor, pelo menos ideologicamente, à causa do Norte.
Ao comandante não agradou a réplica do implacável juiz e os seus olhos azuis, límpidos e serenos, estudaram o juiz militar com uma calma hostilidade.
— Seria capaz de me julgar, se um dia me acusassem de tal, Hodgins? — perguntou com afável entoação.
— Sem dúvida — o sorriso que perpassou nos delgados e pálidos lábios do juiz foi terrivelmente sincero, e Wilkers recordou o mesmo modo de sorrir quando o juiz ditou a sentença que provocaria a morte dos três homens, como se lhes estivesse anunciando a próxima libertação. Acrescentou com ironia: — Mas creio que isso nunca sucederá, comandante.
— Confia em mim tão cegamente?
— Não, meu caro amigo. Confio cegamente na sua inteligência.
— Somente nela?
—É suficiente. Você sabe que ganharemos a guerra. Já está praticamente ganha.
— Isso quer dizer que você não acredita na minha lealdade à bandeira que defendo.
— Não creio na lealdade de ninguém, comandante — riu sardonicamente o juiz.
— Nem na sua própria lealdade? — replicou, Wilkers, mordaz.
Houve um silêncio, enquanto que os olhos escuros e penetrantes de Hodgins, procuravam no rosto do comandante, qualquer indício de sarcasmo. Apesar do tom amável em que a interrogação foi feita, este estava tão latente, que Hodgins replicou:
— Sou leal aos meus princípios éticos, comandante Wilkers. Defendendo a bandeira que sirvo, sou capaz de enviar ao cadafalso, qualquer pessoa. Não importa quem seja nem donde venha., Bem sabe que tenho uma filha. Uma filha que amo acima de tudo... exceto acima das minhas convicções profissionais e éticas. Pois bem, comandante, não vacilaria nem um momento, em mandá-la para o cadafalso, se se provasse a sua culpa num caso de traição.
Um estremecimento sacudiu o copo firme e nervoso de Wilkers. Ficou observando aquele homem seco, de alta estatura e rosto anguloso, que possuía nas suas mãos a justiça Militar do Condado de Saline.
Conhecia a sua tremenda, diabólica capacidade de administrar justiça. Não hesitava diante de nada, nem ninguém. Por vezes, nem sequer parecia humano. Um homem que falava nesses termos, era justo, talvez demasiado justo. Mas, onde estava a linha fronteiriça entre o justo e o cruel, o humano e o feroz?
— Tenho que admirá-lo, juiz, por vezes seus princípios—manifestou Wilkers duramente, estendendo a mão. — É evidente que me refiro ao militar. É o comandante Wilkers que admira o juiz militar Archibald Hodgins. Em troca, de homem para homem, juiz, lamento dizer-lhe, que me produz horror, náuseas e um infinito desprezo. Bom dia, e encantado por o haver encontrado...
Fez uma saudação rígida e retirou-se em passo marcial. O alto e magro juiz, permaneceu no mesmo lugar olhando com maldade para o poderoso fortim. Um brilho metálico cruzou fugazmente as suas pupilas. Apertou a pasta com força debaixo do braço, voltou-se e cruzou a praça enlameada pelas recentes chuvas, mais triste, cinzenta e sombria do que nunca.
Não olhou para nenhum dos transeuntes que passavam por ele. Não dirigiu nem uma mirada ao cartaz de avisos, que ainda estava rodeado por uma série de curiosos, aparentemente pouco contentes.
 Muitos cavaleiros cruzavam as ruas de Rio Cobre. Alguns eram naturais da cidade, outros atravessavam-na depois dos seus passaportes serem fiscalizados pelas autoridades militares ianques, ainda outros confessavam ser desertores dos exércitos sulistas e tencionavam inscrever-se nos exércitos do general Grant cada vez mais vitoriosos.
O juiz cruzou-se em vários, conservando a cabeça cabisbaixa. Estava pensando em Jeff Wilkers, o comandante militar de Rio Cobre. Eram camaradas e supunha-se que eram amigos. No entanto, ele, Archibald Hodgins, só possuía um amigo: o dever. E só um afeto: a lei. Tudo o mais, carecia de valor e de significado vital para ele.
Nunca esqueceria. Preferia recordar, saboreando o ódio alheio. O ódio ao seu implacável modo de ser, o ódio à sua pessoa e aos seus métodos intolerantes, rígidos e duros. Assim, quando chegava a hora, proferia a sentença sem uma hesitação, sem qualquer remorso. Porque não tinha piedade para quem o humilhava ou aborrecia. Também não a teria, para um homem como Wilkers, se um dia tivesse que o enfrentar... com uma mesa entre eles. Estava tão pensativo que quase foi derrubado por um cavalo que se deslocava velozmente. Foi por puro instinto que no último segundo conseguiu desviar-se, quando percebeu os gritos de alarme do cavaleiro. Levantou a cabeça, alarmado, lançando-se para trás. Simultaneamente ouviu:
— Eh, com mil diabos, estava cego?
Tropeçou no solo e oscilou perigosamente, mas à custa dum esforço desesperado que lhe foi ditado para conservar a sua dignidade, conseguiu adquirir o equilíbrio, deixando unicamente cair a pasta.
Pouco a pouco o olhar do juiz ergueu-se, primeiramente sobre o flanco do cavalo, depois uma bota cinzenta de couro onde cintilava uma espora prateada. O seu olhar continuou a subir...
Umas calças azuis levemente desbotadas, um largo cinturão repleto de munições, um revólver assente na anca direita, enfiado num coldre cinzento de couro. Sobre uma camisa amarrotada um jaquetão de pele.
Mais acima, continuando aquela sensação de fortaleza que se desprendia do cavaleiro, um bronzeado pescoço servia de sustentáculo a uma cabeça loira, magra e curtida pelo sol e vento. Os olhos azuis do cavaleiro, transpareciam uma intensa doçura, uns olhos que pareciam incapazes de expressar qualquer violência, apesar dos traços acentuados e duros do rosto. parecerem desmentir vivamente essa doçura. Um largo chapéu azul, originário dos exércitos federais, protegia-o das inclemências do tempo.
— Porque está olhando, soldado? — disse o cavaleiro, observando o militar que mantinha uma atitude altiva. — A culpa não foi minha. Foi você que atravessou a rua como se ela fosse da sua exclusiva propriedade.
Durante alguns momentos nenhum proferiu palavra. O cavaleiro de elevada estatura e o militar observavam-se com hostilidade mutua. Finalmente um sorriso perpassou pelos lábios descoloridos do juiz.
— Perdão — disse mansamente. — Realmente a culpa foi minha.
— Nada — comentou o cavaleiro. Os seus olhos azuis tornaram-se ainda mais doces quando se sorriu — tenha cuidado ou ainda apanhará um cavalo que não travará a tempo. Nem todos têm o cuidado do meu «Ulisses» ...
— Por outro lado, tenha também cuidado em não rotular o primeiro uniforme que lhe surgir como «soldado». Corre o perigo de o tomarem a sério, o que seria desagradável...
— Ofendi-o? Se é assim, cabe-me a mim pedir desculpa.
— Não se preocupe. Como chamou ao seu cavalo?
— «Ulisses». Porquê?
O juiz acariciou a crina do belo cavalo.
— É um nome estranho para um cavalo, não acha? --. observou suavemente.
— Também é estranho para um general. E a Grant parece que lhe agrada (*).
O olhar de Hodgins foi glacial ao encarar novamente o forasteiro que mediria possivelmente um metro e noventa de altura.
— A piada não tem nenhuma graça — replicou, sério. E pode ser tomado como um insulto ao nosso general.
— Perdão, diga ao «seu» general — retificou o forasteiro.
— Será que você não é nortista? — a pergunta de Hodgins era tão suave que só uma pessoa que conhecesse bem o juiz poderia advertir o forasteiro da acidez da indagação.
— Não. Não sou do Norte — afirmou tranquilamente o outro.
 
(*) O primeiro nome do general Grant era Ulisses (N. T.).
 
— Do Sul? Um desertor?
—Também não sou desertor, nem do Sul. Venho do Oeste.
— O Oeste também tem Norte e Sul.
— Geograficamente, sim. Você fala noutro sentido, soldado... Perdão, senhor.
— Escute, amigo. Sou o juiz Hodgins. Magistrado militar neste concelho — o olhar do juiz era de velo —É forasteiro. não é verdade?
—Já lhe disse que sou do Oeste. Quando saio do Oeste começam a chamar-me de «forasteiro». —O sorriso do cavaleiro era jovial e amável. —É muito esperto, juiz.
— Onde obteve esse chapéu?
— Este? — tocou na aba, ligeiramente perplexo. — Foi-me cedido por um soldado do Sul a troco de alguns víveres. Creio que o tinha pilhado a um cadáver de algum ianque, porque os ianques também morrem de vez em quando.
— E essa camisa? — perguntou o juiz estendendo a mão. — Vendeu-a um Yanque que a tinha pilhado a um Sulista, não?
— Você é extraordinário —a voz do forasteiro parecia sincera. — Como adivinhou?
—Terá que me acompanhar ao quartel, se não inventar uma desculpa melhor. Tudo isso é uma história infantil e grotesca, em que ninguém acreditaria.
— Oh, claro, isso é o que sempre sucede, juiz. Admira-me que um juiz ignore estas coisas. Na verdade ninguém acredita. As mentiras é que parecem mais verídicas.
—Como se chama? — perguntou o juiz duramente.
— Oiça, há coisas que me desagradam mesmo que venham dum juiz: uma delas é que me arranquem a camisa. — Suave, mas firmemente arrancou a rédea do cavalo da mão do juiz. Acrescentou, alargando o seu doce sorriso: — Outra é que me interroguem como se tivesse acabado de assassinar Lincoln. Será que agora a tarefa dos juízes é andarem a patrulhar as ruas da cidade na pesquisa de forasteiros? Se é assim, mal vai a vida.
Hodgins não replicou. Chamou secamente:
— Eh, soldados!
Uma patrulha aproximou-se apressadamente ao ouvir o chamamento do juiz. Imediatamente um grupo de quatro ou cinco curiosos que presenciavam o conflito entre o magistrado e o elevado forasteiro, aproximou-se e não desandou apesar das investidas e ordens que os soldados lhe lançava.
— Investiguem os documentos deste homem e a razão da sua presença em Rio Cobre — ordenou secamente Hodgins, apontando o forasteiro que continuava sorrindo alegremente. — Tenho motivos para acreditar que é um homem proveniente do Sul... e talvez mais.
—É um pouco obstinado, meu justo amigo — riu o cavaleiro, procurando no bolso os documentos, com uma calma enervante enquanto os soldados apontavam os fuzis e um cabo estendia a mão com uma expressão decidida.
Puxou uns papéis que entregou ao cabo. Este examinou-os silenciosamente. Em seguida, estendeu-os ao juiz que os arrebatou com nervosismo. Parecia um pouco contrariado ao levantar a cabeça.
— Shady Dolan, hein? Californiano. Ex-coronel de exploradores do território índio, ex-guia de caravanas civis e militares, perito em assuntos índios e na condução e proteção de diligências. Também ex-cavaleiro do «Pony Express» com menções honrosas do congresso atribuídas ao arrojo e valor no cumprimento do dever... — devolveu os papéis com um súbito gesto. Todos o elogiam muito... «coronel» Dolan. Os meus parabéns...
— Obrigado, senhor. — O sorriso de Shady Dolan, o forasteiro, era modesto e simples. Guardou as credenciais e apoiou as mãos na sela.
Uma mecha de cabelo loiro tombou-lhe sobre a testa bronzeada e enrugada. Os seus olhos azuis fixaram o juiz.
— Bem sabe que os títulos com que agraciam os exploradores são mais honoríficos que efetivos. Como Cody e tantos outros... Portanto não se incomode em me chamar de «coronel», nem em saudar-me como tal. Por sorte ou desgraça você continua tendo um posto superior ao meu. Muito prazer, juiz Hodgins... Não é isto que se costuma dizer em situações como esta?
Fez uma saudação trocista. Afastou-se lentamente, com o cavalo a passo e deixando oscilar as suas longas pernas de cada lado da montada.
O juiz Hodgins sentiu a contrariedade aumentar devido aos acontecimentos daquela manhã. Primeiramente tinha sido o incidente com o comandante Wilkers. Depois, o encontro com aquele forasteiro, Shady Dolan, proveniente da Califórnia, impossível de acusá-lo de espionagem em território da União a favor do Sul.
Claro que a Califórnia era Sulista, e que lá simpatizavam com as ideias de Jefferson Davies e Dolan talvez fosse diferente do que apresentava, mas como prová-lo?... Ele tinha sido antipático, muito antipático, mas a antipatia não bastava para perseguir um homem. Seria preciso arranjar provas mais concludentes.
Continuou no seu caminho. Soaram alguns comentários irónicos e trocistas, e mesmo risadas quando ele se afastou. Sabia que todos o odiavam. Sabia que tinham gostado da humilhação que sofrera devido à calma do forasteiro.
Mas Archibald Hodgins não se importava. Quase tinha prazer em ser odiado. Fazia-lhe sentir-se superior. Somente aqueles que dominam são odiados. Do débil, do insignificante, ninguém se recorda ou odeia.

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