quarta-feira, 12 de outubro de 2016

KNS074. CAP I. O homem que acertava numa flor solitária

Royal Donovan fez parar o seu grande cavalo negro e, quando as ferraduras do belo animal deixaram de martelar o terreno pedregoso ouviu nitidamente o rumor do combate que devia estar a travar-se em qualquer ponto à sua frente, não muito longe.
— Parece que temos complicação aí para diante, «Dark»... — disse ele, falando com o cavalo. — Que te parece que seja?
Evidentemente que não esperava que a montada resolvesse as suas dúvidas ou lhe desse qualquer espécie de resposta. Apenas, como muitos outros cavaleiros habituados a longas jornadas solitárias, adquirira o costume de se dirigir ao seu cavalo para exprimir em voz alta os seus pensamentos.
— Pode tratar-se de uma incursão dos índios... ou de alguma perseguição de ladrões de gado... ou até, talvez, de alguma ramificação da guerra entre os criadores de Lincoln. Não se sabe! Seja como for não nos convém ir meter o nariz no caso, porque o tiroteio é dos bons.
Alguma coisa, no eco das detonações, fê-lo prestar maior atenção, ao mesmo tempo que uma ruga de preocupação lhe sulcava a testa.
— Estão a aproximar-se muito depressa... — disse ele a meia voz. — Trata-se de um grupo que persegue outro, sem dúvida, e dão a impressão de vir para estes lados.
Roy olhou em volta. Não queria retroceder, mas também não queria que os dois bandos em luta, quaisquer que fossem, o surpreendessem no meio daquela estreita garganta.
Se um dos grupos fosse constituído por índios, atacá-lo-iam, por pouca oportunidade que tivessem para isso; se fossem bandidos a coisa não seria muito diferente; e se se tratasse de duas fações dos ganadeiros em guerra, uns ou outros poderiam tomá-lo por inimigo e as balas matavam do mesmo modo, disparadas por índios, por bandidos ou por ganadeiros em luta.
Uns arbustos, à direita da passagem, ofereciam um bom esconderijo. Roy impeliu para lá o seu cavalo negro, internando-se pelo mato até onde não pudesse ser visto, mas não tanto que deixasse de poder ver.
Nesse momento as detonações ouviam-se já nitidamente, e parecia que os combatentes iam surgir de um instante para o outro na extensão do longo e sinuoso desfiladeiro que Roy podia avistar.
E de facto não tardou que assim fosse.
De um ângulo da passagem irromperam sete cavaleiros que galopavam perigosamente, considerando o terreno desigual e pedregoso da passagem.
Os quatro primeiros pareciam concentrar toda a sua atenção na tarefa de conseguirem obter a máxima velocidade das suas montadas, enquanto os outros três, um pouco atrasados, empunhavam os «Colt» e voltavam-se frequentes vezes nas selas, olhando para trás.
Por momentos não se ouviram tiros, visto que -a curva da passagem impedia que perseguidos e perseguidores pudessem distinguir os alvos. E, durante o breve espaço de tempo em que os últimos tardaram a aparecer, Roy, que era grande apreciador de cavalos, admirou um belo animal que, embora viesse no grupo da retaguarda, tinha de ser constantemente contido pelo seu cavaleiro, pois quando este deixava de lhe puxar as rédeas, o cavalo avançava com a rapidez de uma flecha, de tal maneira que os outros pareciam ficar parados, embora todos eles fossem bons.
Roy não pôde fixar-se em muitos pormenores, porque quase imediatamente a sua atenção foi atraída por outro grupo de cavaleiros, mais numeroso, que acabara de surgir na curva do caminho. Logo que avistaram os fugitivos, os perseguidores começaram a disparar.
Entre os mais adiantados dos perseguidores e os mais atrasados dos perseguidos, havia uma distância de aproximadamente sessenta metros, mas como nem uns nem outros dispunham de espingardas, todo aquele tiroteio era praticamente inútil, visto que as armas curtas não tinham bastante precisão para fazer fogo a tal distância, e só por acaso uma bala encontraria o alvo.
Os cavaleiros passaram em frente do esconderijo de Roy, afastaram-se e acabaram por desaparecer na curva próxima.
— Bem... — murmurou o rapaz... — a única coisa que consegui perceber foi que não se tratava de índios.
Agitou as rédeas, fazendo com que «Dark» saísse de entre os arbustos, e por instantes imobilizou-se outra vez, atento e à escuta.
O tropel dos cavalos e o eco das detonações foi-se atenuando, como o rolar de um trovão que se perdesse na distância, sem que qualquer outro ruído viesse do ponto de onde tinham aparecido os dois grupos.
— Parece que era só aquilo... — disse Roy, consigo mesmo. — O melhor é pôr-me ao largo antes que voltem.
Lançou o cavalo a trote, e pouco a pouco as altas muralhas do desfiladeiro foram-se afastando e baixando até desembocar num amplo vale ao centro do qual corria uma brilhante fita de água.
Roy fez parar a montada e contemplou a paisagem com verdadeiro prazer. O vale, na sua frente, lembrava um mar de altas e frescas pastagens, entre o qual se viam as manchas negras de muitas reses. Era o sonho de qualquer criador de gado. Um lugar cheio de beleza e de paz...
— Mãos para cima!
A ordem, seca como uma chicotada, era tão imperiosa que Roy apressou-se a obedecer.
«Sobretudo paz...», pensou.
Com os dois braços erguidos, voltou-se lentamente para o sítio de onde viera a ordem, mas embora procurasse o homem que a bradara, esqueceu-se dele quase no mesmo instante.
Quatro cavaleiros tinham aparecido detrás de um frondoso grupo de árvores que, evidentemente, lhes servira de esconderijo, e um deles era capaz de tirar a respiração a qualquer.
Tratava-se de uma linda rapariga, vestida com trajos masculinos, com finas botas quase até à altura dos olhos, calças justas que desapareciam sob as botas e uma blusa branca que moldava um busto esbelto, alto e firme, ao mesmo tempo que a gola aberta formava encantador decote, mostrando as linhas delicadas da garganta.
Roy deixou escapar um ligeiro assobio admirativo, que mais parecia um suspiro, porque a bela amazona ora decididamente o seu tipo.
E decerto havia razão para qualquer expressão admirativa, porque a rapariga era realmente bonita. A pele firme e morena da sua cara numa época em que as mulheres punham todo o cuidado em defender-se do sol, para se parecerem quanto possível com bonecas de porcelana os lábios vermelhos e bem desenhados, uns olhos enormes e claros que o fitavam com curiosidade e alguma desconfiança, e uma magnífica cabeleira de tons de cobre, brilhando ao sol, que lhe caía solta sobre os ombros, convenceram Roy de que nunca encontrara nada tão belo.
— Quem diabo é você?
A pouco amável pergunta arrancou Donovan à sua contemplação um tanto indiscreta, fazendo com que ele notasse os companheiros daquela inesperada Diana com calças. Eram três, e todos lhe apontavam as armas.
O que lhe fizera a pergunta, decerto o mesmo que lhe havia dado ordem para levantar os braços, era um homem corpulento, de cerca de quarenta anos, forte, rijo e curtido pelo ar livre e pelo sol; à direita deste estava outro cavaleiro mais idoso e quase da mesma estatura, de olhos claros e cabelo escuro. Era o mais bem vestido dos três, e a sua parecença com a rapariga, embora não muito acentuada, denunciava a inegável existência de um parentesco entre eles. O terceiro era um tipo novo, magro, muito moreno e de estatura meã; apoiava-se descuidadamente ao arção da sela, desviado e meio inclinado o revólver que empunhava, mas apesar disso dava a impressão de ser o mais perigoso do grupo.
— Descubro-me na sua presença, menina... — disse Roy, com uma leve inclinação de cabeça... e peço-lhe que me desculpe por fazê-lo apenas em sentido figurado. Mas não desejaria que a minha intenção fosse mal interpretada pelos seus belicosos companheiros, que poderiam confundir o gesto com um ato de agressão. Chamo-me Royal Donovan, venho do Texas e procuro trabalho.
A jovem pestanejou levemente, mas os outros não pareceram impressionar-se com as maneiras ironicamente suaves e corteses do forasteiro.
Roy mal notou isso, todavia, porque estava muito interessado em descobrir qual era a verdadeira cor dos olhos da linda amazona. Via-os bem, mas não estava bastante perto para distinguir se eram cinzentos ou verdes. Havia neles um brilho doirado, quase fosforescente, que o desconcertava.
— Desde quando procura trabalho, Donovan? — perguntou secamente o indivíduo corpulento que já tinha falado.— Não será desde que, há coisa de dois minutos, decidiu salvar a pele, abandonando esse lobo carniceiro que se chama Herbert Coe?
Roy olhou para o homem.
— Não conheço nenhum Herbert Coe... — respondeu, calmo, claramente.
— Deveras? Você veio dessa garganta de rochas por onde acabam de passar dois grupos de homens, aos tiros... e não me dirá que passaram ao seu lado cumprimentando-o amavelmente, de chapéu na mão.
Donovan pensou um momento, antes de responder:
— Se os perseguidos fossem vossos amigos... — disse ele — ...não estariam vocês aqui, com essa menina. De modo que se pode dizer, com quase absoluta certeza, que os vossos amigos eram os perseguidores. Ora bem, como julga que eu tivesse podido passar para cá, se me encontrasse entre os fugitivos, como parece julgar?
O homem fez uma careta.
— Não é difícil... — resmungou. — Essa endiabrada garganta tem muitos recantos. Ter-lhe-ia sido fácil esconder-se.
 — Foi isso o que eu fiz, ao ouvir o tiroteio que se aproximava. E quando passaram continuei o meu caminho. O outro olhou-o com desconfiança.
— Tira-lhe a artilharia, Frank...— ordenou ele, bruscamente. — Desconfio sempre dos tipos espertos.
O cavaleiro jovem e moreno fez avançar o cavalo, obrigando-o a dar uma pequena volta para que em nenhum momento se interpusesse entre o desconhecido e os outros. Guardou o seu revólver no coldre e apoderou-se dos dois «Colts», com coronhas de madrepérola, que Roy trazia no cinturão. Depois viu a espingarda, no coldre da sela, e também se apoderou dela.
— Um verdadeiro arsenal — comentou. — E se medisser que comprou estas armas com o seu salário de vaqueiro, é um mentiroso. Repare na sela, patrão! É uma «Padget», trabalhada à mão e com incrustações de prata! Não lhe deve ter custado menos de trezentos dólares.
— A presença daquela menina tranquiliza-me... — gracejou Roy. — De outro modo recearia que o seu entusiasmo o levasse a despojar-me dos meus pequenos tesouros.
Sem fazer caso, o chamado Frank verificou a carga dos revólveres e cheirou-os.
— Não há dúvida de que foram disparados recentemente... — disse — ...mas não há minutos. Além disso estão limpos.
O homem bem vestido aproximou-se, fazendo avançar o cavalo.
— Isso iliba-o... — comentou. — A espingarda está em boas condições?
O moreno verificou a arma, hábil e rapidamente.
— Carregada e em condições de fazer fogo... — declarou.
— Nesse caso não há dúvidas. Se os homens de Coe tivessem utilizado uma espingarda, os nossos rapazes teriam dado por isso. De qualquer modo, mostre-nos como se serve dessa joia, Donovan.
Roy baixara os braços ao ser desarmado, e concordou, sorrindo.
— Muito bem... — disse. — Experiência número três... Contra quem devo disparar?
O homem olhou em volta e fixou a atenção num cato de grandes folhas, sobre a mais alta das quais aparecia uma flor solitária.
— Veja aquele cato, sobre as rochas, a uns duzentos metros daqui... — disse ele. — acerte na folha mais alta.
Roy olhou para o alvo indicado e assentiu, com um aceno.
— Arrancarei a flor... — disse. — Assim não será preciso irem lá, para verificar se acertei ou não.
Enquanto falava recebeu a arma das mãos de Frank e bateu ao de leve com a coronha no pescoço de «Dark», verificando com satisfação que o cavalo se imobilizava completamente, como ele lhe tinha ensinado. Levou a arma à cara, apontou rapidamente e disparou.
A flor saltou, cortada a haste pela bala, e Donovan olhou, sorrindo, para o homem que lhe propusera a experiência.
— Satisfeito? — perguntou.
— Não demasiado... — respondeu o outro, gravemente. — Nunca gostei muito dos vaqueiros de fantasia, e você leva a palma a quantos encontrei até agora. Seja como for, está provado que nada teve que ver com a incursão de há bocado. Pode seguir o seu caminho. Dá-lhe os revólveres, Frank.
O cavaleiro moreno obedeceu, com uma careta.
— Acho que teria gostado de o ver enforcado numa árvore... só para poder ficar com estas armas... — disse. — E o cavalo, como o resto, não fica atrás.
— Lamento tê-lo enganado... — troçou Roy.
— O inferno!
— Siga o seu caminho, rapaz. E, se quer ouvir um bom conselho, não aceite qualquer combinação com Herbert Coe. Algum dia o levantaremos do chão, pendurado de uma corda, e com ele os que o acompanham.
Donovan olhou diretamente para o homem.
— É criador de gado, se não me engano... — disse.
— De facto. Chamo-me Daniel Marvin e pertence--me todo o terreno e todo o gado que pode ver daqui.
— Um belo sítio.
— Não posso dizer que esteja desgostoso por isto.
— Disse-lhe que procurava trabalho. Não poderia proporcionar-mo?
— É o meu capataz que se ocupa de contratar o pessoal.
— Compreendido. Falarei com ele, se não tiver inconveniente.
— Nenhum. Aqui o tem. Chama-se Tapworth Roberts, e apesar do tamanho que tem, não sabe dizer que não a ninguém.
Sorrindo do ligeiro gracejo, o ganadeiro Marvin voltou-se para o cavaleiro corpulento que tinha falado em primeiro lugar.
— Que dizes, Tap?... — perguntou.
O capataz tinha-se também aproximado, e fez uma careta.
— Nunca tive um vaqueiro tão janota às minhas ordens... — resmungou. — Receio não me habituar a tratá-lo como aos outros, e começar a tirar o chapéu de cada vez que o encontre. Os outros rapazes também não se sentiriam à vontade. Para não ficarem atrás haviam de querer vestir sempre camisas lavadas e não se atreveriam a descalçar-se se não tivessem peúgas, ou as tivessem rotas. E no fim de contas, que poderia fazer um homem assim com cinquenta dólares por mês. Mal lhe chegariam para sabonetes e lenços. Não parece, Frank?
--- Porque não lho perguntas, a ele? Depois de vê-lo disparar, prefiro suportar o cheiro da sua loção a tê-lo na minha frente, de espingarda na mão. No fim de cintas é capaz de fazer outras coisas igualmente bem.
— Hum!... — resmungou o capataz. — Que diz você a isso, Donovan?
O jovem riu alegremente.
— Não se esqueça de que me fez a pergunta, e suponho que queira uma resposta sincera... — disse ele, em ar de troça. — Sou o melhor cavaleiro do mundo; com o laço apanho borboletas; sei marcar um novilho com um prego, se não houver outra coisa, e a demonstração que fiz há bocado foi uma brincadeira para mim. Poderia ter feito o mesmo... com o dobro da distância. De qualquer modo, o meu forte são os revólveres.
O ganadeiro ria até às 1ágrimas.
— Não digas que não o provocaste, Tap... — disse ele, quando lhe foi possível dominar o riso, limpando os olhos com o lenço.
Roy estava a observar o capataz e viu perfeitamente o brilho divertido que havia nos seus olhos escuros. A cara larga do homem parecia duramente cinzelada, mas havia uma clara expressão de honradez e de bondade nas suas feições.
— Está bem, rapaz... — grunhiu. — Correrei o risco, e veremos se você tem, de bom, metade do que tem de fanfarrão. As condições são cinquenta dólares por mês, comida e equipamento. Tem livres os domingos e os sábados à tarde, salvo quando lhe toque ficar de guarda, o que se faz rigorosamente por turnos. Nesse caso terá um dia da semana para folgar.
— Você é um homem de sorte, patrão... — disse Roy alegremente. — Aceito.
Roberts soltou um resmungo, ante o desplante do novo vaqueiro.
— Pelo menos podes ter a certeza de não deitar fora o teu dinheiro, Dan...— disse ele ao ganadeiro.— Nunca conheci um fanfarrão maior. Durante o «rodeo» havemos de metê-lo entre o grupo de Coe. Hão-de ficar embasbacados a ouvi-lo, que se esquecerão de roubar os nossos novilhos.
— Creio que voltam os nossos rapazes... — disse Frank, naquele momento. — Oiço tropel de cavalos.
Todos prestaram atenção, e de facto, muito fraco ainda na distância, chegou-lhes aos ouvidos o som inconfundível do martelar de ferraduras em terreno duro e pedregoso.

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