Eram cinco.
Cinco cavaleiros, dispostos em leque, que isolavam agora um grande macho da manada e o desviavam cerca de duzentos metros dos companheiros. Desse modo evitavam que os disparos, deflagrados muito de perto, dispersassem os restantes animais.
«Shoshone» apertou os dentes. Lamb não estava entre os cinco Cavaleiros, mas o índio reconheceu todos eles. E no fundo dos seus negros olhos entendeu-se aquela perigosa chispa que pressagiava o princípio da violência à sua volta.
Um dos caçadores elevou o rifle, apontando ao grande macho que corria agora enlouquecido, sem saber que direção tomar. Durante uns segundos, a imobilidade do homem foi completa.
Até que soou o estampido.
O caçador continuou imóvel durante mais um ou dois segundos. E, de repente, largou o rifle. Parecia querer dizer qualquer coisa, agarrar-se à sela, aguentar-se de qualquer maneira sobre o cavalo. Mas não pôde.
Dobrou-se sobre si mesmo, vacilou ainda uns instantes, e projetou-se no solo, onde ficou imóvel.
Indubitavelmente morto.
Houve outro instante de imobilidade. De silêncio.
O tempo que tardaram os outros quatro caçadores em verificar o que estava a acontecer. Em se aperceberem de que alguém havia matado o companheiro antes que ele pudesse atirar sobre o bisonte. Voltaram-se os quatro ao mesmo tempo, procurando em torno algum sinal que lhes permitisse encontrar o responsável. Mas, em vez do indício procurado, depararam-se-lhes dois cavaleiros imobilizados a menos de cem metros de distância.
Lex Norman.
«Shoshone».
Imóveis como pesadas rochas, mas os rifles atravessados sobre a sela. E do «Winchester» de «Shoshone» escapava-se uma leve coluna de fumo azul.
Tinha sido ele.
Um dos caçadores soltou uma intraduzível imprecação texana, enquanto lançava mão do seu revólver.
Mas Lex não lhe permitiu que chegasse a utilizá-lo.
Pôs o rifle em posição de tiro e disparou rapidamente. O caçador fez uma cabriola sobre o cavalo e tombou por terra, enquanto os companheiros recorriam também às suas armas.
Imediatamente, Lex e «Shoshone» pareceram converter-se em dois furacões devastadores.
O índio esporeou o seu cavalo e lançou-se sobre os três caçadores, que se apressaram a separar-se. Porque ao mesmo tempo que o cavalo iniciava a galopada, «Shoshone» começava a disparar. O primeiro projétil saiu alto, demasiado desviado para atingir o alvo. Lex também disparava, uns metros mais atrás. Outro dos caçadores fez um movimento estranho, mas manteve-se montado. O terceiro caiu em cima de Shoshone» com o revólver engatilhado.
— Maldito traidor! Vou-te...
«Shoshone» sabia já que toda a gente se dispunha fazer qualquer coisa que raramente conseguia pôr prática. Aquele era um deles. Disparou, mas o índio baixou-se, estendendo-se sobre o pescoço do animal e esquivando o corpo à bala. E, logo, cruzando-se com seu inimigo e ao galope do seu cavalo, bastou-lhe estender a mão e agarrar o estribo do caçador, para lhe fazer perder o equilíbrio e obrigá-lo a desmontar violentamente.
A seguir, disparando para o ar, espantou os bisontes. Tiros inofensivos que serviam para afastar a manada dali. Quando acabou, «Shoshone» reparou que Lex tinha em respeito os dois caçadores sobreviventes — o ferido e o que derrubara da montada — e sorria zombeteiro sob a aba do chapéu.
— Os nossos amigos estão um tanto enfurecidos, «Shoshone».
O índio riu. Um riso seco, sombrio, que não era para graças.
— Mais enfurecidos vão ficar, dentro de momentos.
Fez sinal aos dois homens para que desmontassem e desmontou também. Lex levou os cavalos e atou-os a uma árvore. O grande bisonte que os caçadores haviam isolado da planada corria agora no rasto dos seus companheiros. Sete animais mortos assinalavam o local da caçada. «Shoshone» proferiu:
— Tenho o maior interesse em saber por que matais bisontes desta forma. Que eu saiba, existe carne suficiente no acampamento para alimentar o pessoal por mais de uma semana. Quem vos ordena que mateis sem conta nem medida? Lamb?
Os dois guardaram deliberado silêncio. «Shoshone» apertou os dentes.
— Muito bem. Vou preveni-los de uma coisa: é que se não me disserem imediatamente o que pretendo saber, ver-me-ei obrigado a usar de métodos pouco agradáveis, aprendidos com os meus antepassados. Meu avô cortou bastantes cabeleiras aos vossos avós. Lembro-vos o facto, admitindo que o tenhais esquecido. No acampamento «shoshone» há ainda quem se adorne com elas.
O terror começou a assomar aos olhos dos dois prisioneiros. Nenhum deles resistiria meio minuto aos métodos índios. «Shoshone» começou a enrolar um cigarro com uma só das mãos e atirou a bolsa do tabaco a Lex, que o imitou em silêncio. Impassível. Como se estivessem a falar do tempo.
— Por onde te parece que comecemos, Lex? O fogo ou o escalpelo?
Lex encolheu os ombros com displicência, enquanto molhava com os lábios o papel gomado e punha o cigarro na boca. Rebuscou os fósforos no bolso e acendeu-o. Depois o de «Shoshone».
— Acho que devíamos guardar para o fim arrancar-lhes a cabeleira, não vão morrer depressa de mais. Seria uma ótima ideia começarmos por lhes arrancar as unhas.
— Acho que tens razão. Será um começo ideal...
Os rostos dos dois caçadores estavam cinzentos. Lex e o índio falavam de os torturar como se fosse a coisa mais natural e aborrecida do mundo.
— Oiçam! Vocês não serão capazes de... de...
— Claro que sim — e Lex afogou um bocejo depois de tirar o cigarro da boca. — Seja como for, não passamos de dois renegados. Dois malditos renegados, como vocês costumam dizer. E não foi na vossa boca que eu ouvi dizer que um renegado é uma espécie de animal feroz que se deve abater a tiro?
Os dois abriram a boca, incapazes de pronunciarem uma palavra. A verdade é que tinham dito aquilo a Lex. Ninguém via com bons olhos aquele alto e felino pistoleiro que vestia quase como um pele-vermelha. Era demasiado índio para ser branco, embora não tivesse a correr-lhe nas veias uma única gota de sangue cobreado.
—É que... é que nós...
— Vocês nada... — e «Shoshone» piscou um olho a Lex, esboçando um ligeiro sorriso. — Lex e eu vamos tratá-los amorosamente. Não é verdade?
— Claro que sim, «Shoshone». Muito amorosamente.
— A não ser que eles nos digam o que desejamos saber, evidentemente.
Depois daquela pequena dissertação sobre o que tencionavam fazer com eles, os dois sequazes de Lamb teriam dito inclusivamente o que não sabiam.
«Shoshone» aproximou-se resolutamente dos dois caçadores, e estes retrocederam um passo. Não era caso para menos. Se «Shoshone» dava a impressão de ser perigoso, menos quando se mostrava calmo, furioso como parecia naquele momento — embora a sua exaltação fosse de um género especial — devia ser terrível. As tranças do cabelo, escapando-se sob o chapéu, e os traços duros que lhe vincavam a boca, davam-lhe um aspeto ainda mais selvagem que o habitual.
— De acordo, rapazes? Estão dispostos a dizer o que sabem do assunto... ou começamos?
— Não... Não se atreverão a torturar-nos... Dizem isso para nos amedrontarem...
Era uma frase desnecessária por natureza. A expressão de «Shoshone» era bastante eloquente para lhes garantir que fariam o que tinham dito. Quanto a Lex, tinha cruzado os braços, com a impassibilidade de um verdadeiro índio, e contemplava a cena em silêncio. Com os olhos convertidos em dois pedaços de quartzo sob a aba do chapéu.
— Mostra-lhes que não são bravatas, «Shoshone». Anda, homem, não percas tempo.
Foi inútil que um dos homens tentasse escapar. Os longos braços do índio agarraram-no. Imediatamente, o velhaco reparou que a mão de ferro do índio lhe puxava os cabelos para cima, por forma a arrancar-lhe um grito de dor. Em seguida, força gigantesca esmagou-o contra o solo e uns dedos poderosos corno tenazes torciam-lhe os pulsos para trás, sem lhe largar os cabelos.
O caçador não soube como era possível que um homem sozinho fizesse tantas coisas ao mesmo tempo. Parecia que «Shoshone» tinha três mãos. Ou quatro. Ou dezoito. E provocavam uma dor horrível. Fossem as que fossem.
— Muito bem, passarão. Vais cantar imediatamente quanto saibas, incluindo os cânticos dominicais. E depressa!
Afastado alguns metros, sem perder de vista o outro prisioneiro e com uma expressão divertida no fundo das suas claras pupilas, Lex Norman continuava imóvel a contemplar a cena.
«Shoshone» começou a fazer perguntas. Como uma entoação que não admitia outra réplica que a da verdade.
— Quem vos manda matar os bisontes?
— Lamb — respondeu o homem numa voz trémula.
As mãos do índio afrouxaram-se um pouco sobre a dolorida presa. Quase deixou o homem respirar à vontade. Mas não o suficiente para que pudesse chegar a constituir perigo para si.
— Porquê?
—Ë preciso que os «shoshone» se vão embora destas terras.
— Porquê?
— Dizem que são um estorvo.
— Porquê?
— Se continuam na sua reserva de caça, completado este troço do caminho de ferro, terão direito a uma indemnização pela expropriação das suas terras.
Era um assunto simples, claro, sem necessidade de ser esclarecido. «Shoshone» trocou um olhar de inteligência com Lex. Ambos compreendiam agora perfeitamente a razão daquele tiroteio devastador.
— Que ganha Lamb em tudo isso?
— Não sei.
— Não sabes?
E apertou de novo a presa. O homem procurou debater-se entre aqueles dedos que pareciam de aço, mas não conseguiu mover-se uma única polegada.
— Juro que não sei!
«Shoshone» afrouxou outra vez a pressão. O homem devia, na realidade, ignorar os interesses do capataz de caçadores naquele criminoso conluio.
— Muito bem. A iniciativa é exclusivamente de Lamb?
— Também não sei. Embora julgue que não. Já o ouvi referir-se a alguém que está por cima dele.
«Shoshone» pensou imediatamente em Sharp. Aquele engenheiro de olhos de falcão não lhe agradara nada desde o primeiro minuto. Era o tipo de homem que procura enriquecer sem se importar com os que fiquem pelo caminho, esmagados sob os seus pés.
— Sharp? — perguntou suavemente.
— Não sei.
— Alguém alheio ao caminho de ferro?
— Não sei.
Era notório que não sabia grande coisa. «Shoshone largou-o, voltando a extrair o revólver, que apontou aos dois homens.
— As mãos sobre a cabeça e nada de tolices. Vamos acompanhá-los ao acampamento.
Lex espreguiçou-se lentamente, afogando um bocejo.
— Estupendo. Vamos meter-nos num rico sarilho, o que estava a desejar.
«Shoshone» olhou-o por um momento. Apenas um breve momento. E proferiu:
— Lex.
— Quê?
— Prefiro ir eu sozinho.
Lex Norman ficou de pedra ao ouvir aquele disparate. Por muito bom atirador que fosse, estava de antemão condenado. Dois homens ainda podiam livrar-se de apuros, mas um só... A não ser que esse um quisesse suicidar-se:
— Não o consentirei, «Shoshone». Tenho o dever de te ajudar. Já te esqueceste do nosso pacto?
E levantou a mão direita, em cuja palma se apreciava o pequeno golpe feito pelo índio. Mas este abanou a cabeça de um lado para o outro, e durante uns instantes no fundo das suas pupilas brilhou uma centelha de solidão. Dessa terrível solidão que nem o amor de uma mulher nem a amizade de um homem como Lex podiam preencher. Era a solidão do homem que fora expulso do seio da sua raça e precisava por todos os meios de voltar a ele. Lex compreendeu. E concordou:
— Está bem. Irás só. Mas se as coisas correrem mal, juro-te que entrarei no acampamento e que me encarregarei de Lamb ou seja de quem for, sem grandes contemplações.
Até certo ponto, a perspetiva era um verdadeiro consolo. «Shoshone» sorriu levemente e disse:
— Até logo.
— Espero que seja assim.
De um salto, o índio subiu para o seu cavalo. Com as mãos sobre a cabeça os dois caçadores de Lamb foram obrigados a caminhar a pé, à sua frente. Lex viu-os partir com uma peculiar expressão nos seus olhos claros. E suspirou: «Boa sorte, irmão.» Provavelmente, a sua ajuda iria fazer-lhe muita falta.
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