Era um límpido, calmo entardecer.
«Shoshone» estendeu o olhar por todo o acampamento. Os homens descansavam depois da dura jornada. Havia-se terminado um novo troço no traçado do caminho de ferro. Assim, metro a metro, se chegaria ao final da linha. A custa de mortos, de atentados, de problemas para os quais às vezes era necessário recorrer ao revólver como solução única. Mas o caminho de ferro avançava. E a civilização com ele. O que já era alguma coisa.
«Shoshone» começou a fazer um cigarro, como sempre.
Os homens conversavam em grupos. Mas ninguém o convidou a participar na conversação. Era um estranho. Como em toda a parte. Mas agora já pouco lhe impor-tava isso. Tinha Nalinle e era suficiente.
Por uma associação de ideias recordou-se então de Joan. A descarada filha de Maxey Brady. Teria de lhe dar uns bons açoites. Talvez se encontrasse já na lagoa à sua espera. Muito bem. Compareceria à entrevista.
Naturalmente, depois de ter Nalinle, as outras mulheres deixavam de lhe interessar. Mas seria divertido ver até aonde pretendia chegar aquela gatinha branca.
Precisava de uma boa, dura lição. Que a escarmentasse e a fizesse aprender de uma vez para sempre que um homem não é um boneco que se pode manejar d(, qualquer forma e a bel-prazer.
Atravessou por entre os grupos de trabalhadores, rapidamente. As suas longas pernas encurtavam a distância.
De repente, deteve-se.
Pelo extremo do acampamento estavam a entrar meia dúzia de cavaleiros. Mas não eram cavaleiros vulgares. A «Shoshone» o coração parou-se-lhe por um instante, para logo recomeçar a palpitar apressadamente. Tanto, que, por uns momentos, julgou que lhe iria saltar do peito.
«Eles».
Com Tondeyaha à cabeça.
Dez anos mais velhos, mas todos conhecidos. Teria podido dizer os seus nomes, um a um.
Tondeyaha à frente, com as suas três penas de garça presas na trança direita. Um pouco atrás, Witarch, o irmão de Wapatomeka. E Tomepomehal. E Massai, que tinha o rosto atravessado por uma cicatriz que lhe mar-cava em vertical toda a face direita...
Qualquer coisa pareceu cravá-lo ao solo. Imobilizou-o. Impediu-o de andar para a frente. Parecia que o coração se tornava numa coisa pesada e incómoda que lhe ma-goava o peito. E, por uns momentos, teve a sensação de que a sua garganta era um pedaço de lixa, áspera e com um sabor amargo, através da qual não poderia expelir som algum.
Alguém correu a avisar Lamb. Aquele homem era uma espécie de pistoleiro de confiança do engenheiro Sharp, ao que parecia.
Geo Lamb apareceu apressadamente. Oferecia uma expressão pouco amigável quando se apresentou ante o grupo de índios. Os seis estavam em fila, joelho contra Joelho, segundo o costume. E Tondeyaha no centro. Impassível como uma esfinge.
— Pode saber-se que maldito bicho lhes mordeu?
«Shoshone» ter-lhe-ia partido a cara. Mas manteve-se Imóvel, à espera. Desejava saber até aonde Lamb tencionava ir. Tondeyaha alçou um braço. Iam em missão de paz.
— Quero falar com o vosso chefe.
Nem sequer vira «Shoshone». Ou talvez visse, mas não dera mostras de o haver reconhecido. Lamb acariciou a barba em silêncio por alguns momentos. Depois respondeu:
— O senhor Sharp está muito ocupado para perder tempo com um sujo cachorro índio.
«Shoshone» avançou um passo, com os punhos cerrados. Mas a chegada do próprio Gerald Sharp evitou a sua intervenção. O engenheiro saiu do seu barracão com um sorriso de mofa no fundo das suas pupilas. Como se fosse divertir-se imenso com a cena que se avizinhava.
— Deixa-o, Lamb. Porque não hei-de perder um pouco de tempo para saber que diabo pretende o nosso amigo Tondeyaha? É dinheiro, índio? Ou alguma mulher branca para os teus lazeres?
O rosto do chefe «shoshone» continuava impassível. Como se não o estivessem a insultar. Mas no fundo dos seus olhos bailava algo de estranho.
— Quero saber por que matais mais bisontes do que os que são necessários. Dei o meu consentimento para que a vossa gente se alimentasse. Em contrapartida, matais manadas inteiras sem que aproveiteis os animais mortos. Porquê ? Será que não vos basta invadir estas terras, que o Governo nos concedeu para sempre? Não vos chega levar às vezes as nossas mulheres, ou também quereis acabar com a nossa raça até ao último guerreiro ?
Sharp contemplou o índio durante um largo minuto. Havia uma expressão de desafio nos olhos de ambos. Depois, Tondeyaha acrescentou:
— Se isso não é bastante, não permitirei que dês mais um passo nas nossas terras. Atacaremos as instalações do caminho de ferro e matá-los-emos a todos, um a um.
Gerald Sharp soltou uma estrondosa gargalhada. E voltou-se para Lamb, que também ria com vontade.
— Ouviste, Lamb? Atrevem-se a ameaçar-nos... a nós. A nós! É a coisa mais divertida que escutei até hoje!
Os seis índios permaneciam impassíveis. «Shoshone» adiantou outro passo, com as mãos a flutuarem muito perto dos revólveres. E disse, de repente:
— Basta de risos. Tenho os dedos muito nervosos.
Todos se voltaram para ele. inclusivamente os seis índios. E nos olhos de Tondeyaha acendeu-se, então, a chispa do entendimento. Avançou o seu cavalo e enfrentou-se com «Shoshone», crispando os punhos nas rédeas de couro.
— Compreendo agora o que acontece — disse deva-gar. — E desprezo-te. E uma reles vingança o que estás a fazer, renegado.
Não lhe chamara pelo seu nome. Winatonah morrera para eles dez anos antes. «Shoshone» sentiu que qual-quer coisa lhe agarrotava a garganta. E por quase meio minuto não pôde pronunciar uma só palavra, atravessado por todos os olhares.
No entanto, apenas «aquele olhar» tinha importância para ele.
O de Tondeyaha.
E não pôde deixar de se recordar de Nalinle, que era agora sua esposa segundo todas as leis dos «shoshones».
Não a esposa de um renegado, nem a de um branco, mas sim a esposa de um guerreiro.
De Winstonah.
Do «shoshone» que ele continuava a ser.
Apertou os lábios. Por fim, conseguiu dizer:
— Não é o que imaginas.
Mas no impassível rosto do chefe, «Shoshone» lera já que ele não acreditaria nem numa só das palavras que pensava pronunciar. E algo lhe doeu dentro de si, com mais ímpeto do que quando evocava os tempos em que podia cavalgar com os seus irmãos de raça e ser um deles.
— Não te acredito.
— Sou apenas um caçador a soldo. E não matei ainda nenhum bisonte.
— Não te acredito.
— Nunca os atraiçoaria.
Lamb soltou uma sonora, insultuosa gargalhada.
— É melhor que não procures convencê-lo! Não te acreditará de maneira alguma! Além disso, não está enganado a teu respeito, não é verdade, «Shoshone»?
— Não é um «shoshone»! — gritou, de súbito, Tondeyaha, com fúria. — Perdeu esse direito há dez anos! Não é um «shoshone» nem voltará jamais a sê-lo! —cuspiu aos pés do renegado e, a seguir, na direcção dos três outros pontos cardeais. Aquele era o maior sinal de desprezo que podia praticar um índio. — Perde a esperança em Nalinle e na tribo, se é que alguma vez a conservaste.
Voltou o cavalo e retirou-se a galope. Já à saída do acampamento, voltou-se. E olhou-os a todos com a sua habitual inexpressividade. Tornava a ser um verdadeiro chefe índio. Impassível a tudo e todos.
— Visto que assim o quereis, esta é a minha última palavra: um único bisonte que mateis sem necessidade, e atacarei. Tondeyaha falou.
E retirou-se, seguido pelos seus cinco guerreiros.
Os homens dispersaram-se, fazendo comentários.
Sozinho, erguido, com os olhos convertidos em duas estreitas fendas negras, «Shoshone» deu meia volta e foi à procura do seu cavalo, sentindo sobre as costas o peso de todos os olhares. Sentia a boca convertida num pedaço de estropalho ressequido. E no peito o peso de uma libra de chumbo. Como se lhe tivessem esvaziado nele um carregador inteiro, à queima-roupa.
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