Ela estava sentada na margem da lagoa, como o esperasse. Como se estivesse certa de que ele não faltava. «Shoshone» desmontou lentamente e chamou-a:
— Joan.
Ela voltou a cabeça. Vestia um trajo de montar azul-escuro, que fazia realçar extraordinariamente a sua beleza branca e loira. E bailavam-lhe no fundo das pupilas mil diabinhos dourados.
— Olá, «Shoshone».
O índio não estava naqueles momentos para nada não fossem os seus próprios problemas. Nem ele mesmo seria capaz de explicar a si próprio por que comparecera à entrevista.
O corretivo que imaginara dar à jovem interessava-lhe muito secundariamente. Talvez por isso, a beleza de Joan afigurou-se-lhe tão fria como um bloco de gelo. Disse, quase num bocejo:
— Tenho de me ir embora. Ou talvez seja melhor que vás tu.
Joan soltou uma gargalhada. Parecia divertida, ante a rude atitude do índio.
— Tens medo de mim?
— Eu não tenho medo de nada.
Havia um repto, um profundo e descarado repto no fundo das pupilas da mulher.
— Deveras, não me tens medo, índio?
«Shoshone» apertou os lábios. Mulher alguma havia escarnecido dele daquela maneira. E, muito menos, uma mulher branca, que considerava inferior às índias. Uma mulher como Joan não sabia curtir peles, acender fogo ou sobreviver no deserto.
E aquela muito menos. Era apenas uma linda boneca de luxo. Uma boneca de luxo mal-educada que nunca seria uma verdadeira mulher.
Estendeu os seus longos braços, agarrando a rapariga antes que ela pudesse aperceber-se da sua manobra. E, subitamente, puxou-a contra o peito e beijou-a selvaticamente.
Joan Brady não esperava uma reação tão repentina. E, ao que parecia, tão violenta. Portanto, assim que se refez da surpresa, e porque os braços masculinos começavam a magoá-la, lutou para desfazer o abraço, sem o conseguir de todo.
Mas conseguiu libertar a boca e gritou:
— Larga-me! Ordeno-te que me largues!
«Shoshone» riu-se, entre dentes. Os seus olhos negros brilhavam-lhe estranhamente e Joan não pôde deixar de experimentar uma sensação de medo.
—Julgavas que eu seria um fantoche ou uma espécie de ingénuo pobre diabo como todos os que tens encontrado até aqui, não? Pois acho que te enganaste. Não se pode brincar com os homens. Pelo menos, não se pode brincar com os verdadeiros homens, como julgaste até agora.
— «Shoshone», eu...
— Tu, nada, Joan. Nem sequer és uma mulher para tomar a sério. E agora, será melhor que te ponhas a andar daqui.
Libertou-a do seu abraço, com um empurrão que a fez cair. Joan contemplou-o uns momentos com o rosto empalidecido.
Tremia.
Nunca esqueceria aquela entrevista com «Shoshone», talvez porque, pela primeira vez, se sentiu em presença de um verdadeiro homem.
Um homem pai quem a sua feminilidade não era bastante para seduzi-la, por demasiado frívola e artificiosa.
— Queria dizer-te...
— Não há nada que me possas dizer.
— Mas eu...
— Desaparece antes que possas arrepender-te.
Joan compreendeu que «Shoshone» não era um homem vulgar. Devia ter o amor num conceito superior de elevação e pureza. E quase se sentiu envergonhada.
O cavalo pastava tranquilamente a alguns metros de distância. Joan tomou-o pelas rédeas e voltou-se para o índio. Este contemplava-a com a mesma indiferença com que contemplaria um pedaço de pedra.
— Espero que nos voltemos a ver, «Shoshone».
— Espero que não — foi a simples e fria resposta.
Ela parecia ter recuperado uma certa coragem com a distância posta entre ambos. Todavia, «Shoshone» continuava a olhá-la com a mesma indiferença. Em silêncio, muito fixamente, como se quisesse penetrar nos seus pensamentos.
Ela não pôde deixar de estremecer ante aquele olhar. O olhar mais insistente e perturbante que encontrara em toda a sua vida. Murmurou, confusa:
— Até à vista.
E montou num ágil salto, sem que ele fizesse gesto algum para a ajudar. Já na sela, voltou-se.
— Apesar de tudo, espero que não seja esta a última vez que nos vemos.
«Shoshone» não disse nada desta vez. Limitou-se a manter o mesmo olhar silencioso, até ela se perder no horizonte. Então, deixou-se cair no solo relvado, com o rosto entre as mãos.
*
Joan Brady apagara-se instantaneamente do seu pensamento, para dar lugar ao rosto e à voz de Tondeyaha.
«Perde a esperança em Nalinle e na tribo, se é que alguma vez a conservaste!»
Não. Tinha-a perdido muito tempo antes, embora Nalinle fosse agora sua esposa. No entanto, sabia que Tondeyaha não aprovaria o seu matrimónio. Que a repudiaria a ela também por sua causa.
Não obstante, um guerreiro «shoshone» encarava sempre corajosamente o seu destino. Fosse qual fosse a sorte que lhe reservasse. Sabia que teria de lutar sozinho, visto um renegado nunca ter amigos. Nem mesmo noutros renegados pode encontrar amigos, pois todos eles vivem preocupados consigo próprios.
«Shoshone» sabia que apenas o amor de Nalinle o acompanharia no futuro, e um grande vazio pareceu abrir-se nele. O amor de Nalinle era, certamente, o mais belo e puro que tinha encontrado. Mas viver eternamente sem amigos era perspetiva triste e sombria como um entardecer de Inverno.
Sentiu uma pressão súbita e suave no seu ombro. Durante uns segundos, «Shoshone» não se moveu. Depois, lentamente, teve consciência de que estava alguém junto de si. Alguém que lhe pusera a mão no ombro, apertando-o brandamente. E ergueu a vista.
Deparou-se-lhe aquele rosto curtido e descarnado, aqueles olhos claros que olhavam de frente. O rosto e os olhos de Lex Norman.
— Lex.
— Parece-me que andas muito carecido de ânimo, «Shoshone».
Procurou sorrir, mas não pôde. Recordava-se novamente de Nalinle. E das palavras de Lex na manhã desse dia.
«Talvez case com ela, se ela me quiser.» Se ela quiser!
Libertou-se bruscamente daquela mão amistosa, embora lhe doesse fazê-lo. E disse secamente:
— Tenho de te dizer uma coisa, Lex.
— Muito bem. Mas para isso não é preciso que saltes como se um cardo te picasse.
Não o tomava a sério. Quando se tratava do caso mais sério que se lhe havia deparado na vida.
—E coisa importante, Lex.
Lex Norman verificou que devia sê-lo. E sentando-se em silêncio ao lado do índio, começou a fazer um cigarro, atirando depois com a bolsa do tabaco para as mãos do outro.
«Shoshone» agarrou-a, sentindo um arranhão doloroso na alma. Sabia que Lex era seu amigo.
— Trata-se de Nalinle.
Houve uma leve contração nas pupilas claras que o contemplavam com tranquila expressão. Apenas isso. E, talvez, um ligeiro estremecimento na comissura dos lábios.
— De Nalinle? — a voz tremia-lhe por mais esforços que fizesse para evitá-lo. Lex começava a compreender lentamente. — Muito bem, «Shoshone». Adiante.
— Ela é... minha esposa, Lex.
O pistoleiro quedou uns momentos imóvel, com os olhos fixos no rosto do índio, como se não o visse. Nos seus lhos claros entendeu-se e apagou-se uma pequena chama amarelada. O rosto contraiu-se-lhe.
— Compreendo.
E «Shoshone» sentiu piedade dele. Mas manteve-se a seu lado, sem dizer nada ou fazer um gesto durante largo tempo. Como se ambos não tivessem nada que dizer um ao outro. O índio proferiu, finalmente:
— Lamento muito, Lex.
— Não. Era o normal. Ela querer a um dos seus...
— Eu não sou um dos seus. Gostava que o compreendesses assim.
—O teu coração pertence-lhes e isso basta. Como o meu pertence aos brancos, embora eles me chamem renegado. Sabes perfeitamente que nunca deixamos de ser o que somos, oponha-se quem se opuser.
«Shoshone» concordou. E compreendeu que seria sempre amigo daquele homem. Que nenhum dos dois estaria jamais sozinho de todo. E mentalmente agradeceu por isso.
Guardaram novamente silêncio. Os seus rostos estavam impassíveis de todo. Embora ambos se encontrassem intimamente agitados por um conjunto de emoções. «Shoshone» disse:
— Talvez não devesse vir.
— Não podias saber de coisa alguma. Deixemos o assunto. Não adianta nada continuar a discuti-lo — e embora não revelasse em absoluto os seus sentimentos, embora o seu rosto não se houvesse alterado, «Shoshone» sabia que qualquer coisa de muito belo se havia desfeito para sempre no coração do pistoleiro. Porque tardaria muito tempo a encontrar outra mulher como Nalinle. — O importante é o assunto dos bisontes e o teu matrimonio. Não me parece que Nalinle esteja muito prevenida para a hipótese de tu a quereres levar agora. E preciso pensar no vosso futuro. Posso emprestar-vos alguma coisa de...
«Shoshone» elevou o braço. Sentia-se comovido no mais profundo do seu ser.
— É o marido quem deve ganhar o seu património, Lex. Assim o manda a nossa lei.
— Mas tu estás agora isolado. Seria apenas um empréstimo.
«Shoshone» assentiu em silêncio. Compreendia que Lex tinha razão. E que contrairia com ele uma divida eterna se aceitasse o seu oferecimento, a sua ajuda. Estendeu-lhe a mão direita. Aprisionou a de Lex e voltou-lhe a palma para cima. Durante alguns momentos, os dois contemplaram-se em silêncio. Depois, o próprio Lex lhe deu a sua faca. E disse:
— Apesar de tudo, dois renegados solitários podem formar por si sós um grupo à parte.
«Shoshone» fez os dois cortes. Um na mão de Lex e outro na sua. E uniu-os o sangue de ambos. A partir daquele instante, eram irmãos. Somente a morte poderia separá-los. Ou um motivo bastante grave para que ambos se matassem num duelo ao estilo «shoshone».
— Apesar de Nalinle, «Shoshone»?
— Precisamente por ela.
«Shoshone» sabia que Lex não o trairia nunca. Embora para isso tivesse de esmagar o coração e reduzi-lo ao tamanho de uma bolota. Durante muito tempo, os dois conservaram-se em silêncio, sem se olharem, fumando com a lentidão e a inexpressividade dos índios. Até que, de súbito, uns disparos distantes romperam a calma daquele anoitecer, fazendo que ambos se levantassem com os corpos tensos.
— Rifles — disse Lex, atento.
— Caçadores — esclareceu «Shoshone». — Estão a matar bisontes, novamente.
Olharam-se então. E pareceram pôr-se de acordo com aquele simples olhar. Com um leve silvo, Lex chamou o seu cavalo. E «Shoshone» foi à procura do dele.
Os disparos chegavam com simétrica exatidão. Um em cada minuto ou minuto e meio. O tempo preciso para escoltar uma peça, isolá-la e deixá-la tombada ao sol.
Já a, cavalo, os dois olharam-se um momento. E com um eloquente gesto, «Shoshone» deu uma palmada nos coldres dos seus revólveres. Lex concordou com um movimento de cabeça e esporeou o seu cavalo até White Rock.
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